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O sagrado feminino em A Tempestade

por Marcos Carvalho Lopes

Quando o amigo e roadie Reginaldo Faria ligou para Renato Russo e perguntou sobre como o compositor avaliava o recém-lançado disco, em 20 de setembro de 1996, A Tempestade ou O Livro dos Diasouviu como resposta “Ainda não defini o masculino e o feminino no disco”.  Foi a última vez que Reginaldo falou com Russo, que faleceu no dia 11 de outubro de 1996. A avaliação de Renato teria ficado como um enigma não resolvido, aquela “frase filosófica” teria permanecido sem sentido.

A avaliação de Renato Russo era uma crítica severa ao resultado que o disco trazia. Isso porque ele pretendia que o álbum fosse duplo e que houvesse todo um lado dedicado ao feminino, a mulher. Em A Tempestade estão as canções Natália, Leila, 1º de Julho e Soul Parsifal (parceria de Russo com Marisa Monte) que fariam parte dessa dimensão feminina. Os versos de 1º de Julho, canção feita para Cássia Eller, são inequívocos:

Sou fera, sou bicho, sou anjo e sou mulher

Sou minha mãe e minha filha, minha irmã minha menina

Mas sou minha, só minha e não de quem quiser

Sou Deus, tua Deusa, meu amor

Provavelmente, entrariam no lado feminino imaginado por Renato Russo As Flores do Mal, Marianne e Clarisse, canções que foram lançadas no póstumo Uma Outra Estação (lançado em 1997). A letra de Clarisse especialmente teria deixado os colegas de banda assustados com a cena de auto-mutilação de uma menina de 14 anos no banheiro. A letra sentenciava.   

A violência e a injustiça que existe

Contra todas as meninas e mulheres

Um mundo onde a verdade é o avesso

E a alegria já não tem mais endereço

A auto-mutilação feminina em Clarisse provavelmente seria um contraponto a autodestruição masculina – através dos carros, da velocidade e dos desafios mortais – cantada em Dezesseis. O resgate da dimensão feminina já acena nas canções da Legião Urbana, como Eduardo e Mônica. No disco solo Equilíbrio distante o cantor fez cantão de gravar Dolcissima Maria, enfatizando sua devoção e resistência aos atos de desrespeito a imagem de Maria de Nazaré.  Recuperar o feminino é recuperar a nossa própria possibilidade como humanidade.   

De todo modo, tendo em vista a tristeza das canções de A tempestade, os colegas de banda vetaram o formato que Renato Russo queria dar ao álbum. Ele entendeu e chegou, mesmo severamente debilitado, a dar entrevistas explicando canção por canção. Mas seria interessante ter um álbum com a ordem das canções e lados como projetados por Renato Russo.  Assim, seria  Via láctea a abertura do disco, deixando claro o seu sentido de despedida.

Provavelmente, também faria parte do lado feminino a canção L’Avventura. Mas, para justificar isso precisaríamos tratar do filme de mesmo nome de Michelangelo Antonioni, que dramatizou de modo genial a incomunicabilidade das relações entre masculino e feminino, utilizando o silêncio e as paisagens vazias durante a narrativa.  O indeciso e contraditório gesto de consolo da personagem Cláudia (Monica Vitti) diante da traição de Sandro (Gabriele Ferzetti) que fecham o filme L’Avventura deixam em aberto o sentido do amor e a forma da relação entre masculino e feminino. Este é o enigma que permanece válido.

Marcos Carvalho Lopes

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