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Descolonização – a metonímia contemporânea da autodeterminação


Luís Kandjimbo |*

O problema conceptual da descolonização é efectivamente um tópico filosófico relevante, à volta do qual se organizam hoje escolas, correntes, tendências e debates. Em 1978, os peritos do Comité Científico Internacional da UNESCO para Redacção da História Geral de África debateram o tema num colóquio sobre “Descolonização da África Austral e do Corno de África”, realizado, em Varsóvia. Entre outras conclusões, o Comité considerou que uma das realidades mais importantes do nosso mundo contemporâneo tinha sido a descolonização de África.


Já no relatório do referido colóquio os peritos do Comité Científico Internacional da UNESCO qualificaram o uso do termo “descolonização” como insatisfatório, tendo preferido a expressão “luta pela independência”

Descolonização, o neologismo

Na historiografia europeia, o historiador francês, Charles-Robert Ageron (1923-2008), relata que um dos primeiros momentos do uso do termo ocorreu em 1836, quando um jornalista da região de Bordéus se referiu à “descolonização” da Argélia, seis anos após a ocupação francesa. No entanto, a sua consagração em língua inglesa registou-se nas primeiras décadas do século XX, a partir de1927, através da pena do filósofo anticolonial indiano Manabendra Roy (1887-1954). Foi ele que introduziu a “teoria da descolonização” nos círculos do movimento comunista internacional. Manabendra defendia a tese segundo a qual a política de descolonização do imperialismo britânico levaria ao enfraquecimento e dissolução do Império Britânico. A teoria encontrou oponentes no Sexto Congresso da Internacional Comunista (Comintern), em 1928. Mas acabou por ser aprofundada posteriormente pelos teóricos soviéticos. Após o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, a “teoria da descolonização” de Manabendra Royfoi adoptada na União Soviética.

Uma questão mal colocada?

Trazemos uma reflexão sobre a “descolonização”. Quanto a nós, trata-se de um tropo com duplo sentido, na acepção com que opera Olúfẹ́mi O. Táíwò. Em primeiro lugar, é um tropo por constituir figura retórica de pensamento. Neste caso, temos a metonímia, um tipo de metáfora, em que o significado do objecto referido, “descolonização”, com sentido negativo, mantém uma conexão existencial com a fonte do fenómeno de que emanam as propriedades daquele significado, autodeterminação. Em segundo lugar, tropo por designar um fenómeno do mundo e da realidade que evidencia particulares propriedades, situando-se no espaço e no tempo. Por essa razão, se me afigurou oportuno propor uma conversa sobre asideias de Olúfẹ́mi Táíwò. Ele critica as propostas de “descolonização conceptual” e “descolonização da mente”, formuladas, respectivamente, pelo ganense Kwasi Wiredu (1931-2022) e pelo queniano Ngũgĩ wa Thiong’ o. Na sequência do que a este respeito defendi no texto anterior, a contra-descolonização proposta por Olúfẹ́mi Táíwò parece ser uma questão mal colocada. Cai ele na armadilha da dupla negação com a postura de quem desfere críticas “contra a descolonização”, negando a negação da colonização? É o que interessa saber.

A tematização jusfilosófica contemporânea do Direito Internacional Público em África deixa perceber a existência de dois modelos de “descolonização”: i) a descolonização constitucional (por exemplo, no Ghana); e ii) a descolonização revolucionária (por exemplo, na Argélia e na Guiné-Conackry). A principal diferença dos dois modelos reside nos processos de sucessão e formação de novos Estados soberanos. No primeiro, regista-se uma transferência de poder, de acordo com dispositivos constitucionais da potência colonial. No segundo, a independência dá lugar aos novos Estados soberanos ,fundando-se a sua legitimidade na luta anticolonial e ruptura revolucionária. No continente africano, os dois modelos referidos verificaram-se em três grandes vagas de reconquista da soberania e exercício do direito à autodeterminação ou direito à “descolonização”: 1) 1956-1960; 2) 1960-1965; 3) 1975-1990.

Ora, o debate proposto por Olúfẹ́mi Táíwò, convoca justamente interrogações filosóficas, mas não encontra as suas premissas nem no Direito Internacional Público, nem na história das lutas anticoloniais africanas. Neste sentido, é possível identificar uma argumentação, tendencialmente generalista que perde de vista as diferentes experiências históricas africanas.

Obrigação moral, política e jurídica

Para o caso de África, a “descolonização”,entendida como obrigação moral, política e jurídica, tornou-se um fenómeno que se confundia, indevidamente, com a luta anticolonial cujas bases se sedimentaram, durante uma década, entre o quinto Congresso Pan-Africano de Londres, em 1945, e a Conferência Afro-Asiática de Bandung, em 1955. Portanto, a “descolonização” era já uma metonímia, por constituir um dever das potências coloniais, enquanto Estados prestatários, perante as exigências do direito à autodeterminação dos povos e nações.

A “descolonização”, ao abrigo da Carta da Organização das Nações Unidas e do Direito Internacional Público, pode ser definida como processo jurídico-político, por força dos quais uma potência colonial concede a independência política a um povo ou nação, comunidades históricas existente sem determinado território, numa perspectiva de longa duração, que tenha estado sob domínio colonial com o estatuto de território não-autónomo, protectorado ou tutela.

Os dois modelos de descolonização africana impulsionaram a organização de vocabulários da linguagem ordinária e de conceitos operatórios. Assim se explica que, a partir do momento de constituição dos Estados e dos primeiros efeitos da governação, se tivesse intensificado a recuperação do neologismo “descolonização”. O seu uso foi substituindo a palavra mais adequada para designar a autodeterminação, o fenómeno emergente. Ao avaliar o sentido da palavra “descolonização”, com interesse na sua comparação e classificação, percebe-se que o verdadeiro direito humano, dos povos e das nações é o direito à autodeterminação, sendo a “descolonização” o dever de um Estado imperial, associado à consequência do exercício eficaz desse direito de que os povos e nações têm a titularidade. Por outro lado, pode-se concluir que o tropismo semântico do “direito à descolonização” decorre de uma mudança ao nível do vocabulário do Direito Internacional Público contemporâneo. De acordo com o jurista senegalês, Kéba Mbaye (1924-2007), o “direito internacional dos direitos humanos deu origem a direitos subjectivos atribuídos a grupos de indivíduos considerados colectivamente”. Tais grupos são os povos e as nações, sendo os Estados as principais entidades contra as quais se invoca direito à autodeterminação, entendido como “direito à descolonização”. Não sendo relevante distinguir direitos dos povos e direitos colectivos, o problema suscitado por Olúfẹ́mi Táíwò convoca o debate doutrinário sobre uma eventual tensão entre direitos do homem e direitos dos povos que consiste em saber se um indivíduo pode revindicar a titularidade do “direito à descolonização” ou se esse direito é exclusivo dos povos. A este respeito, Kéba Mbaye entendia que a tensão não fazia sentido, na medida em que direitos do homem são direitos dos povos.

Fundamentos da argumentação

O desenvolvimento da reflexão de Olufemi Taiwo sobre o tópico teve início em 2019, quando publicou na revista “The Southern Journal of Philosophy” o seu artigo “Rethinking the Decolonization Trope in Philosophy” [Repensando o Tropo da Descolonização na Filosofia]. Dois anos depois, este texto deu lugar a um livro: “Against Decolonisation: Taking African Agency Seriously” [Contra a Descolonização: Avaliando a Seriedade da Agentividade Africana], 2021.

Como se poderá perceber mais adiante, estou inteiramente de acordo com a argumentação de Olúfẹ́mi Táíwò. Mas, no debate das propostas de Olúfẹ́mi Táíwò sobre a semântica da “descolonização”, não é apenas a história do conceito que tem relevância. A lógica argumentativa, suportada pelas abordagens da morfologia, semântica e lexicologia das línguas, em conexão com indagações filosóficas sobre o Direito Internacional Público, são valiosas ferramentas analíticas. O conceito de “descolonização” é o tropo em causa. De acordo com a teoria filosófica dos tropos entende-se que a “descolonização” designa um fenómeno do mundo e da realidade que evidencia particulares propriedades. Consequentemente, o tropo é particular, na medida em que ocupa uma posição espaço-temporal única, sem qualquer sentido de exclusividade nessa posição.

Tropo metonímico

Os fundamentos invocados por Olúfẹ́mi Táíwò estão subjacentes no facto de considerar que a concepção dominante de colonialismo, no discurso da “descolonização” não leva a sério a complexidade e a historicidade do conceito. Mas, na sua corrente argumentativa, percebe-se que Táíwò tem perfeita consciência do tropismo semântico e do fenómeno que está em causa, a “descolonização” definida por Kwasi Wiredu (1931-2022) e Ngũgĩ wa Thiong’ o. É um termo que remete para outros sujeitos, objectos, propriedades e referentes, apesar de ser usado por estes dois autores para designar realidades que se inscrevem no núcleo do conceito de “autodeterminação”. É esta a conclusão a que chega Olúfẹ́mi Táíwò, ao afirmar que o “projecto de descolonização foi a extirpação do domínio colonial, simbolizada pela colocação dos Africanos no comando de seus Estados e a restauração da agência africana para dirigir os destinos africanos em solo africano.”

Portanto, são dois fenómenos e realidades que, no mesmo contexto político, histórico e filosófico, veiculam diferentes intencionalidades. Acontece que Olúfẹ́mi Táíwò não opera com a necessária suspeita hermenêutica e, por isso, não expurga as ambiguidades do uso formal do conceito de “descolonização”. É que há três situações jurídicas e correspondentes lógicas: 1)O direito à autodeterminação dos povos; 2) O direito dos povos aos benefícios e efeitos jurídicos da “descolonização”; 3) A responsabilidade e obrigação moral, política e jurídica de “descolonização”. Tais situações jurídicas não são equivalentes. A primeira aponta para a existência de um princípio e direito humano dos povos da primeira geração que tem cobertura na Carta Universal dos Direitos Humanos e outros instrumentos do Direito Internacional Público. Desdobra-se em autodeterminação externa e autodeterminação interna. A segunda diz respeito à “descolonização”, enquanto consequência política da acção anticolonial contra a hegemonia colonial, legitimada pelo Direito Internacional Público contemporâneo. A terceira, é a tripla obrigação moral, política e jurídica de “descolonização” que assume a forma de responsabilidade internacional da potência colonial de que resulta a situação passiva do exercício, representada pelo tropo metonímico do “direito à descolonização”.

Duas descolonizações

No seu livro, [Contra a Descolonização: Avaliando a Seriedade da Agentividade Africana], Táíwò abre flancos aos ataques dos seus oponentes, ao abandonar os argumentos que podiam suportar esse tropismo semântico de uma equivalência metonímica do “direito à descolonização”, enquanto efectivação do princípio e do direito à autodeterminação, bem como o direito à independência. Isso ocorre a partir do momento em que prefere operacionalizar uma ficção jurídico-política, introduzindo a dicotomia entre «descolonização1” e “descolonização2”. Com a “descolonização1” conquista-se a independência nacional, a autodeterminação política e económica. A “descolonização2” é a que se segue à reconquista da soberania e da independência. Para Táíwò, a “descolonização2” não pode ter vocação de ubiquidade, tal como defendem alguns dos seus arautos, entre os quais inscreve igualmente os nomes de Achille Mbembe, Charles W. Mills e Adam Branch. Em nosso entender, a inflexão semântica metonímica e o recurso a tropismos da invenção epistémica africana, sem os colonial centrismos subjacentes, apresentam-se como alternativa à “descolonização2”.

Inflexão semântica

As minhas leituras das obras e artigos de referência de Kwasi Wiredu (1931-2022), nomeadamente, “Philosophy and an African Culture, (1980), “Cultural Universal and Particulars. An African Perspective”, 1996,[Filosofia e Cultura Africana], “Conceptual Decolonization as an Imperative in Contemporary African Philosophy: Some Personal Reflections”, 2002, [A Descolonização Conceptual como Imperativo na Filosofia Africana Contemporânea: Algumas reflexões pessoais], ou ainda o livro de Ngũgĩ wa Thiong’ o, “Decolonizing the Mind”,1981, [A Descolonização da Mente], afastam-se da problematização suscitada por Olúfẹ́mi Táíwò. É que o centro do problema semântico da indiferença na utilização do conceito de “descolonização” situa-se na sua fonte, lá onde aparentemente emerge a causa da tensão entre direitos do homem e direitos dos povos. É no Direito Internacional Público contemporâneo que está a fonte dos equívocos. Por isso, a Filosofia do Direito Internacional constitui o eixo ausente do debate desencadeado por Olúfẹ́mi Táíwò. Na verdade, a apologia da agentividade africana contra a “descolonização” adquire maior latitude, se forem tidos em conta os mais poderosos dispositivos convencionais com que se opera nas relações internacionais e interestaduais. Desde logo, a Carta das Nações Unidas que, no nº 2 do artigo 1º e no artigo 55º,consagrouo princípio da igualdade dos povos e do direito à autodeterminação. A agentividade africana de que se ocupa Olúfẹ́mi Táíwò, está aí patente. De resto, os Estados africanos membros da União Africana são todos, presentemente, membros da Organização das Nações Unidas e das suas agências especializadas.

Por conseguinte, a inflexão semântica e a invenção epistémica africana constituem um imperativo. Verifica-se, por exemplo, perante o livro do etíope Messay Kebede, “Africa’s Quest for a Philosophy of Decolonization”, 2004,[ Em Busca de uma Filosofia Africana da Descolonização].O título, apesar de sugestivo, não se revela pertinente com as abordagens propostas. Como se pode concluir, não é de “descolonização” da filosofia, nem de filosofia de “descolonização” que se trata. Se a “descolonização” é principalmente um problema filosófico, a sua abordagem requer métodos da Filosofia Comparada, implicando um diálogo intercivilizacional entre a África e a Europa. É também este o pensamento de Kwasi Wiredu, quando caracteriza a filosofia africana contemporânea pela riqueza que deriva do seu carácter comparativo. Em seu entender, os filósofos africanos contemporâneos pertencem a duas tradições, a africana e a ocidental. De igual modo, o relativismo representa para Kwasi Wiredu uma base de grande interesse para a filosofia africana contemporânea. É inevitável. Uma das suas premissas subsidiárias, diz ele, pode ser encontrada na comunicação intercultural entre os diferentes povos do mundo.

Conclusão

Portanto, a exploração semântica da “descolonização” como metáfora ou metonímia negativa torna-se possível, a partir do momento em que o já referido duplo tropismo permite encontrar relevantes subsídios na Filosofia do Direito Internacional Público. A presença africana na tribuna da Organização das Nações Unidas, durante as décadas de 50 e 60 do século XX, representando a luta anticolonial, produziu decisivos efeitos de mudança nas instituições internacionais e no direito internacional euro cêntricos. Assim, a inflexão semântica aplicada à “descolonização conceptual”, tal como defende Kwasi Wiredu, significará efectivamente submeter a rigoroso exame os conceitos ocidentais fundamentais, abandonando uma visão colonial cêntrica, um outro neologismo que aqui reputamos ser útil. Traduz a ideia de recusa das perspectivas de periodização centradas no cronótopo colonial, assumindo, ao mesmo tempo, uma manifestação da vontade para efectuar a catarse, em sinal de exercício de autodeterminação, por parte de quem realizou a sua formação filosófica no período das hegemonias coloniais.


*Doutorado em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.

[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 14/05/2023: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/descolonizacao-a-metonimia-contemporanea-da-autodeterminacao/

Marcos Carvalho Lopes

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