0

DEUS E OS FILÓSOFOS

A felicidade transita as sendas da fé, não da ciência. Deus é sempre tratado pelos filósofos de uma forma racional

Gonçalo Armijos Palácios*

A concepção dos filósofos da relação ente o divino e o humano é fundamental para entender seu pensamento. Todos os grandes filósofos, de uma ou de outra maneira, se pronunciaram sobre ela. Apesar de os primeiros filósofos terem criticado a concepção antropomórfica dos deuses que vemos nas obras de Homero e Hesíodo, não deixam de afirmar uma ou outra concepção sobre Deus que é importante para entender seu pensamento. Xenófanes (aprox. 570-528 a.C.), por exemplo, queixa-se de que “tudo aos deuses atribuíram Homero e Hesíodo, tudo quanto entre os homens merece repulsa e censura, roubo, adultério e fraude mútua”1. Reclama que os poetas tenham atribuído aos deuses nossas imperfeições morais e chama a atenção sobre termos projetado neles nossa própria imagem em dois belos fragmentos: “Os egípcios dizem que os deuses têm nariz chato e são negros, os trácios, que eles têm olhos verdes e cabelos ruivos”. “Mas se mãos tivessem os bois, os cavalos e os leões e pudessem com as mãos desenhar e criar obras como os homens, os cavalos semelhantes aos cavalos, os bois semelhantes aos bois, desenhariam as formas dos deuses e os corpos fariam tais quais eles próprios têm.” (Loc. cit.). Xenófanes, no entanto, não está negando, com isso, a existência de Deus. Apenas criticando uma concepção de Deus para ele inaceitável, o politeísmo antropomórfico de sua cultura. No seu lugar, Xenófanes propõe uma concepção monoteísta afastada de qualquer antropomorfismo: “Um único deus, entre deuses e homens o maior, em nada no corpo semelhante aos mortais, nem no pensamento”. Para o filósofo, esse único deus “todo inteiro vê, todo inteiro pensa, todo inteiro ouve”. Além disso, “sem esforço ele — deus — tudo agita com a força pensante da mente”. (Ibid.)

Por uma via puramente racional, Xenófanes é levado a concluir a impossibilidade de uma existência de vários deuses e, ainda, de deuses que tenham nossas características físicas e morais. Num sentido, Xenófanes antecipa e delineia o que seria uma concepção racionalista de Deus compartilhada por vários filósofos posteriores. Nos diálogos platônicos encontramos inúmeras passagens em que Sócrates critica o antropomorfismo da religião helênica e as conseqüências nefastas que, para a educação, a moralidade e a própria ordem política, tal antropomorfismo acarreta.

No período medieval, os filósofos cristãos procuraram, também por via puramente racional, resolver problemas que se derivavam de concebermos Deus com certos atributos. Com efeito, da onisciência divina surge um problema: se Deus sabe tudo, como eu poderia agir de uma maneira que já não esteja predeterminada pelo conhecimento que Deus tem de meus atos? Posso agir de uma outra maneira daquela que Deus já sabe que vou agir? Sou livre, então, se não posso fazer nada que Deus já não saiba que vou fazer? E, no fundo, quem é responsável pelas minhas ações se eu não sou realmente livre para escolher outra linha de ação daquela que Ele já sabe que vou tomar, Deus ou eu? Há outro problema que se deriva da perfeição de Deus, do fato de ser criador de todas as coisas e de ser onipresente: se o mal existe, como Deus pode existir? Pois, se o mal existe, Deus não poderia tê-lo criado, por ser perfeito. Mas Ele é criador de todas as coisas. Se o mal existe, o mal deveria ser obra de Deus. Se não é obra de Deus, mas existe, como poderia Ele ser onipresente? Certamente não pode estar onde o mal está, por ser perfeito. Bem, alguns filósofos medievais procuraram resolver esses problemas e o fizeram da maneira mais lógica e racional possível — como compete ao filósofo. A fé não entra nesses argumentos que são admiráveis pela sua beleza racional, pelo seu brilho e sua elegância. Recomendo, por exemplo, os argumentos de Santo Agostinho. De qualquer forma, Deus era uma das principais preocupações dos filósofos medievais e dedicaram páginas inspiradas nas quais procuravam esclarecer-se racionalmente sobre problemas relativos a Deus e à relação entre Deus e os homens.

Curiosamente, os filósofos modernos não abandonam Deus. Muito pelo contrário, Deus passa a ser o segundo grande suporte de seus argumentos mais importantes. Com efeito, Descartes não poderia provar que o ser humano conhece se não for pela existência de um Deus não enganador. Para que seu argumento, puramente racional, chegue à conclusão desejada, Descartes se vê obrigado a provar duas vezes, e não só uma, que Deus existe. A garantia, portanto, de que posso conhecer o mundo está em Deus. Outros filósofos modernos importantes, como Hobbes e Locke, não deixam de recorrer a Deus para fechar seus argumentos políticos.

Hobbes recorre às Escrituras para ver “o que elas ensinam relativamente às mesmas questões”. Ele está se referindo ao problema de quanto poder deve deter o soberano. Hobbes tinha argumentado que o soberano possui todo o poder e seu poder absoluto deve ser centralizado nele, no soberano. Tais teses, contudo, estão baseadas em argumentos puramente racionais. Mas no capítulo 20 do Leviatã, esses argumentos puramente racionais são complementados por inúmeras passagens das Escrituras. John Locke, por sua vez, desenvolve uma linha política completamente diferente e, para provar que a teoria divina não tem sustentação, apela também às Escrituras. Locke quer mostrar que nada há nelas que indique quem é o legítimo herdeiro do poder de Adão sobre o resto dos homens. O objetivo é provar que nenhum rei pode legitimar seu poder usando as Escrituras como fundamento.

Um filósofo mais próximo a nós no tempo, Hegel, constrói todo seu sistema filosófico na idéia central de que a história humana não é outra coisa que o processo de realização e de busca da autoconsciência do Espírito Absoluto, chegando a reconhecer que, no fundo, seu sistema filosófico é uma teologia, isto é, é o conhecimento da essência do próprio Deus.

Não obstante, Deus é sempre tratado pelos filósofos do único modo que eles devem tratá-Lo, de uma forma racional. A relação fé/razão é estabelecida de um modo que a razão possa, de alguma maneira, dar subsídios à fé.

Seja como for, penso que, com toda a ciência que possamos adquirir, há uma dimensão no ser humano da qual depende, em muito, nossa felicidade. Não é o conhecimento, é a fé. Porque o caminho pelo qual transitam nossos anseios e esperanças não é propriamente o saber, é a fé.

1 Os pré-socráticos. Trad. José Cavalcante de Souza et. al. São Paulo : Abril Cultural, p, 70. (Col. Os Pensadores)

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *