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Devolver o Cetro ao Príncipe

por Severino Ngoenha, Luca Bussotti, Augusto Hunguana e Samuel Ngale

Em 1985 o politólogo italiano, Gianfranco Pasquino, publicou um livro intitulado Devolver o Cetro do Príncipe. O livro é uma denuncia a usurpação das funções do(s) parlamento(s) pelo(s) executivo(s) que, mediante decretos e votos de confiança sobre si próprios, retiram as competências à(s) assembleia(s) legislativa(s), legítima(s) representante(s) do(s) povo(s). Esta tendência vai-se acentuando urbi (em Roma) et orbes (mundo) e hoje, em muitos países – e em quase toda a África – os parlamentos  são um poder residual e decorativo.

A rendição (Glasnost) aporética e paradoxal de Gorbatchev em 1991, não significou só o fim do mundo bipolar, mas sobretudo a instauração, no espaço mundo, do primeiro verdadeiro regime único, democratura iliberal (a nova Perestroika), que falsifica a democracia imposta por um falso liberalismo – contraria a teorização de  pensadores como A. Locke ou J. Stuart Mill.

Nas encruzilhadas históricas desse processo de transição, foram em África – melhor para a África-redimensionados os sistemas – enfeudados – mono partidários (revolucionários) de esquerda e  (ditaduras) de direita, e substituídos com o modelo triunfante e hegemónico da globalização  iliberal.  Muitos africanistas viram nesta transição a panaceia que traria, enfim, para a África a liberdade e a democracia sob forma do que se chamou glocalização: pensar e agir localmente com pensamentos e ações que teriam impacto global (Boaventura Sousa Santos).

Isso era sem contar com as hipocrisias – intramuros – dos regimes que tentariam sobreviver, mesmo a custo de vender a própria alma, e passaram a vestir, sem remorsos, a camisola da ideologia que tinham combatido ( José Luís Cabaço, Quando Eu era Nós); extramuros, com as tramóias de um colonialismo que nunca se desconfessou e via nas mudanças em curso a derrota das revoluções de esquerda mas também das auto determinações africanas; ou ainda a entrada em cena (retorno ou reafirmação) de novos colonizadores globais: FMIBM, multinacionais (Mozal, Rio Tinto, Total, Vale…) apostados,  mordicus, em garantir, positivamente, o monopólio neocolonial dos recursos e, negativamente, assegurar-se que, com uma aparente democracia imposta e sem democratas (democratismo), os africanos continuassem anestesiados, adormecidos, embebedados pela música pop, danças, futebol, NBA, telenovelas, álcool barato (…).

Em retrospetiva – e com uma relativa distância histórica – pode-se depreender que as observações dos peritos internacionais de então (como Patrick Chabal) que, face as incongruências do nosso democratismo anteviam, um gradualismo garantido por um mínimo democrático salvaguardado pelos processos eleitorais, eram presságios de mau auguro.

O gradualismo se revela hoje uma distopia retrocessiva e os processos eleitorais – o mínimo democrático – foram viciados/capturados/adulterados, como também foram trapaceados outros âmbitos da soberania democrática que, supostamente, residem no povo. Alguns transfuges da política rebateram-se na economia mas, quando ficou claro que a política é o verdadeiro trampolim para o dinheiro, aumentou sobre ela o apetite de todos os gananciosos e transformou-se de política serviço (ministerium) a instrumento de enriquecimento.  Os  familiares diretos de presidentes, ministros e demais políticos representem hoje os empresários mais talentosos (?) e ricos do(s) país(es). Esta situação configura um acesso desigual a recursos, o que contraria alguns dos princípios sagrados de um Estado de Direito: todos – segundo o pensamento liberal de Smith até Ricardo, passando pelo heterodoxo Keynes -, devem competir em pé de igualdade!

Mas se a política entrou na economia, a economia também condiciona a política. O interesse comum desapareceu a favor de enriquecimento individual e familiar. O mito do “bom governo”, celebrado por Platão desde a idade antiga, deixou lugar a uma política sem ética (Bayart), em que o ventre fala mais alto do que o espírito.  Num país como Moçambique, desprovido de mecanismos de gestão do relacionamento entre esfera política e esfera económica, a dolarcracia conseguiu uma fácil vitória; aumentando a injustiça social e, com ela, o despontar de mais conflitos, raiva popular, manifestações e do incremento da violência.

Neste “Tudo Económico” (Arcénio Cuco), a Frelimo governa (pensa, discute, delibera e decide)sozinha (solipsista) o sistema multipartidário – não por razões ideológicas ainda menos de patriotismo como outrora, mas por razões pecuniocráticas – mas, por sua vez, ela é também governada (antidemocraticamente) por um grupo restrito que gravita envolta do seu (partido)/nosso (país) presidente, com uma concentração de poderes (político-económicos) superiores ao Rei Sol (Luís XIV). O binómio político-económico dificulta, ulteriormente, os processos de alternância política, não só entre partidos mas também entre pessoas no interior dos partidos – basta pensar nas tergiversões do presidente Guebuza que levaram a eleição de Nyusi, e deste agora ou nos conflitos na Renamo – e esvaziam-se as prerrogativas dos outros poderes constituídos.

A “casa do povo” (a Assembleia da República) está esvaziada de poder e confinada a função residual de mera aprovação de decretos e projetos de lei propostos pelo executivo ou, na melhor das hipóteses, de protestos estéreis das oposições. Hoje, salvo felizes exceções, o parlamento moçambicano não consegue aprovar propostas legislativas de sua iniciativa, não consegue fiscalizar a ação do governo, ele é  uma mera sala em que se ratifica o que o executivo pretende aprovar.

As instituições de justiça que, em muitos países,  representam o baluarte extremo de garantia do Estado de Direito, em  Moçambique estão ainda excessivamente ligados ao poder executivo de quem, em última instância, dependem. Os poderes do Estado continuam concentrados, inseparados, com boa paz de Montesquieu e Tocqueville. Esta falta de separação é, mutatis mutandis,  um dos meios para garantir a continuidade política de uma elite minoritária que precisa de instituições frágeis, ao seu dispor, para manter o acesso privilegiado aos recursos económicos do país. Sem uma modificação do mecanismo de nomeação e de revogação dos juízes (desde o supremo, ao presidente do Conselho Constitucional), nunca poderá haver uma eleição transparente e justa, que reflita a vontade dos eleitores.

Com o descontentamento popular crescente, Moçambique está hoje numa encruzilhada: devolver o Cetro ao verdadeiro Príncipe – o povo – ou soçobrar /sucumbir no príncipe de Maquiavel: senhor todo poderoso que detém nas suas mãos a vida e a morte dos seus sujeitos. Na nossa Constituição o Príncipe – como em todas as democracias do mundo- é o povo (par. 1 do art.º2). Mas, como ele não pode exercer a sua soberania de forma directa – como acontecia na Atenas do V século – a Constituição estabelece as formas através das quais o Príncipe (o povo) deve exercer  as suas prerrogativas, dentro de um poder multifacetado. O art.º 133, o primeiro entre os Princípios Gerais, identifica 5 órgãos de soberania: o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo, os Tribunais e o Conselho ConstitucionalDevolver  o Cetro ao Príncipe significa, distribuir os poderes que a Constituição – apesar de uma acentuada concentração dos mesmos nas mãos do Chefe de Estado – delineia de forma inequívoca. O primeiro pressuposto desta devolução tem a ver com a atividade da Assembleia da república, a dita “Casa do povo”.

Quando o primeiro parlamento no sentido moderno  –  Curiae generales de Rogério II de Palermoem 1130, no início do Reino da Sicília – foi convocado, a sua função era principalmente consultiva, ou, na melhor das hipóteses, confirmativa. Com o evoluir da história política, os parlamentos chegaram a desempenhar uma função de proponentes e aprovação de leis. Em 1688, com a Revolução Gloriosa na Inglaterra, o soberano foi obrigado a aceitar o Bill of Rights, transformando a monarquia num regime monárquico, com forte base parlamentar. A partir de então, é o parlamento que determina as escolhas principais na vida política inglesa e, no geral, das democracias modernas, com as várias formulações de divisão dos poderes de Locke até Montesquieu (…). Em Moçambique o Presidente da República sempre prevaleceu sobre o Parlamento, esvaziando-o não só  dos poderes  que a Constituição lhe confere, mas também da capacidade de exerce-los.

Uma primeira contradição tem a ver com o princípio básico que regula a vida da Assembleia da República. Segundo o art.º 168, o Parlamento representa “todos os cidadãos Moçambicanos”porém,  os nossos parlamentares defendem, in primis, os seus interesses (mordomias e reeleição)obedecendo cega e acriticamente, os seus respetivos  partidos.

O fenómeno crescente de abstenção pode querer significar uma perda de confiança nas funções da política, no geral, em resolver os problemas dos cidadãos, e do parlamento de forma ainda mais específica. Este primeiro problema tem soluções complexas, mas não impossíveis. Algumas delas podem ser encontradas nos mecanismos da lei eleitoral que leva os deputados à Assembleia da República; um mecanismo completamente nas mãos dos partidos políticos, com listas fechadas, em que o eleitor configura-se como elemento passivo, que só pode votar na lista do partido, sem escolher o seu representante. Introduzir, dentro de tais listas, mecanismos de escolha (e/ou de competição) entre os candidatos selecionados pelos partidos poderia reanimar um eleitorado decepcionado e ausente. Em segundo lugar, isso permitiria que os deputados fossem porta vozes dos problemas das comunidades, com as quais eles deveriam discutir e, em última análise,  prestar contas.

O outro elemento que poderia devolver uma parte do Cetro ao Parlamento tem a ver com a capacidade de iniciativa por parte dos grupos parlamentares, da maioria assim como da oposição. O art.º 173 da Constituição estabelece que cada deputado pode “submeter projectos de lei, resoluções e demais deliberações”; ora, há anos isso não acontece, a Assembleia da República – salvo poucos parlamentares da oposição – exerce um poder de confirmação, aprova o que executivo propõe, sem mudar sequer uma vírgula, como era costume na Idade Média. Quanto dinheiro a Assembleia da República absorve, sem conseguir exercer o seu poder de legislar e controlar a atividade do governo? Entre as competências exclusivas do deputado consta também (art.º 179) aprovar a lei eleitoral e o regime do referendo. Isso nunca aconteceu, inclusive no que diz respeito a um dos poucos elementos de democracia directa, o referendo, está previsto pela Constituição, mas não tem um regulamento.

Por fim, e no que diz respeito à função de controlo, esta prerrogativa deveria ser exercida, em prevalência, pela oposição. Para fazer isso, para além de ter deputados capazes e comprometidos (o que é uma escolha dos vários partidos no momento de formação das listas), existem mecanismos institucionais que o regulamento interno do parlamento poderia prever. O acto principal de qualquer parlamento é a aprovação da lei do orçamento do Estado. Em quase todos os regimes parlamentares quem preside a comissão parlamentar do Orçamento e Finanças é um membro da oposição. Em Moçambique todas as comissões internas à Assembleia, inclusive as com função de controlo, são presididas por membros da maioria, o que significa, que o poder de fiscalização é quase nulo.

Sem uma reforma séria dos mecanismos de controlo do executivo, dificilmente a Assembleia poderá exercer as suas funções fundamentais, estabelecidas pela própria Constituição, e o Cetro pendera para sempre para o lado do Príncipe de Maquiavel.

por Severino Ngoenha, Luca Bussotti, Augusto Hunguana, Samuel Ngale

Marcos Carvalho Lopes

Um Comentário

  1. Muito bom. Não perco uma leitura deste grupo ,Severino Ngoenha, Luca Bussotti, Augusto Hunguana, Samuel Ngale, pessoal bem atento, só espero que continuem

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