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Dialética e sofística II: A dialética: de Parmênides a Platão

O sofista foge do diálogo como o diabo, da cruz. A velha dialética, como em Parmênides e Sócrates, é um dos caminhos para o conhecimento e o sendeiro da filosofia

Gonçalo Armijos Palácios*

O problema da diferença entre a maiêutica socrática e platônica levantou a necessidade de distinguir entre dialética e sofística. Com efeito, se a maiêutica socrática é um instrumento para desmascarar pretensos sábios e a platônica, pelo contrário, para produzir conhecimento, qual é a diferença específica do método que o próprio Platão chamou de dialética e que se opõe à sofística? É isso que pretendemos esclarecer.

Tínhamos visto no artigo anterior que a maiêutica socrática deve ter sido inspirada no método discursivo de Parmênides, quem acostumava levar seus diálogos filosóficos por meio de perguntas e respostas. Isso, ao parecer, foi presenciado por Sócrates quando era jovem — se formos acreditar o que Platão relata no Sofista.

Antes de vermos a passagem do Sofista em que se explica uma parte desse método dialético, vejamos o que disse o próprio Sócrates sobre sua técnica num outro diálogo platônico, no Teeteto. Nesse diálogo, Sócrates pergunta a Teeteto se não sabia que a mãe do filósofo era parteira e que ele próprio tinha a mesma ocupação. Teeteto responde que não sabia e Sócrates passa a explicar-se. As parteiras, diz Sócrates, só chegam a exercer este ofício quando elas mesmas não podem mais conceber e engravidar nem, portanto, dar à luz os frutos dessa concepção. E são elas que sabem, melhor do que ninguém, quem está grávida e quem não, por um lado, e, de outro, como fazer para que as que estão para dar à luz entrem em trabalho de parto. Assim, elas sabem não só quem está gravida e quem não, mas como fazer para induzir o parto, ou, então, para abortar, caso seja necessário tomar essa medida.

Sócrates diz ainda que, apesar de o ofício das parteiras ser nobre, sua arte é muito mais importante que a delas. Elas, explica, não fazem dar à luz crianças reais e, ao mesmo tempo, cópias muito semelhantes dessas crianças. Se assim fosse, continua, a parte mais difícil do seu ofício consistiria em distinguir a cópia do real. Tudo o que vale para as parteiras, diz o filósofo, vale para ele. A diferença está em que, no seu ofício, ele não se ocupa com mulheres e sim com homens, e que o trabalho de parto tem a ver com suas mentes, não com seus corpos. Mas há uma semelhança, diz, entre as parteiras e ele. Assim como elas já não podem gerar seus filhos, ele não tem idéias próprias para gerar. Noutras palavras, ele não produz teorias. Reconhece com isso que todos os que o criticam por forçar os outros a dar definições, sem ele próprio fornecê-las, têm razão. Mas a causa disso é a missão divina de fazer exatamente aquilo: sem, ele próprio, ter algo positivo, teoria ou tese, para contribuir, forçar os outros a tentar fazê-lo, ou a reconhecer sua ignorância. Sua sabedoria — lembremos — consistia justamente em ser ciente de sua ignorância.

Nessa passagem vemos que o autor, Platão, começa a misturar as duas formas de maiêutica, a de seu mestre, e a sua, pois, pelo que Sócrates diz no trecho que estamos considerando, sua arte não se limita a provocar contradições nos outros, como os leva a produzir conhecimentos. De fato, a contradições eram levados os sofistas ou todos aqueles que diziam saber o que não sabiam. Ao passo que os que sempre o acompanhavam, seus discípulos, eram levados da ignorância ao saber. Vejamos como o diálogo continua. Aos que se associam comigo, diz Sócrates, alguns deles muito ignorantes, à medida que nossa relação avança fazem grandes progressos. E diz ainda: “E é claro que eles conseguem isso não porque tenham aprendido alguma coisa de mim, mas porque eles mesmos descobriram muitas coisas e as trouxeram à luz. Mas o parto é devido ao deus e a mim”. (Teeteto, 150d) A analogia com as parteiras não pára por aí. Assim como as parteiras sabem quando uma mulher está grávida, ele sabe quando um jovem está prenhe de alguma idéia e, por meio do seu trabalho de parto intelectual que consiste em perguntas e respostas, faz que dê à luz essas idéias: “Tenho te dito tudo isto tão detalhadamente, meu caro rapaz, porque suspeito que tu, como tu mesmo acreditas, sentes dor por estares prenhe de algo dentro de ti. Aplica-te, então, a mim, lembrando que sou o filho de uma parteira e que eu mesmo tenho os dons de uma parteira, e faz o possível por responder as perguntas que te faço. E si, depois de eu ter examinado qualquer uma das coisas que tu dizes, fica claro que eu a considero uma mera imagem e não o real e, portanto, a retiro com cuidado de ti e jogo fora, não te aborreças como as mulheres que perdem seu primeiro filho. Pois muitos, meu caro amigo, têm por isso ficado em tal estado mental contra mim que estiveram prestes a me morder caso eu retirasse alguma noção deles, sem acreditar que fazia isso por bem … [pois] está fora de cogitação que eu permita uma impostura ou destrua a verdade”. (Teeteto, 151b-151d)

Ficam claras, nestas passagens, as semelhanças e diferenças entre a maiêutica negativa (contra os sofistas) e a positiva (com os discípulos), isto é, o diálogo que pretende mostrar a ignorância do interlocutor daquele que busca levar o interlocutor a encontrar a verdade e o conhecimento.

Num sentido, são dos momentos do mesmo método pois para encontrar a verdade devemos, em primeiro lugar, reconhecer que não sabemos; devemos, isto é, estar cientes de nossa ignorância. Assim, a certeza de um elemento negativo, a ignorância, torna-se, per si, o primeiro momento da possibilidade de sua superação e, portanto, constitui, também, um momento positivo. Sofista é quem se nega a aceitar sua ignorância; filósofo é quem se sente insatisfeito por causa dela. Assim, e sem sombra de dúvida, o caminho que nos afasta do primeiro momento e nos permite superá-lo é, já o sabiam Parmênides e Sócrates, o diálogo.

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005

Marcos Carvalho Lopes

3 Comentários

  1. Parabéns! Muito rico o texto pois esclarece a diálogo como algo necessário a ilusão dos pensamentos perante a reflexão filosófica.

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