0

A “Questão de Angola”: da história ao problema jusfilosófico- II

Luís Kandjimbo |*

Em Novembro de 1961,o “Subcomité para a Situação de Angola”, criado ao abrigo da Resolução 1514 (XV) de 14 de Dezembro de 1960, da Assembleia Geral da ONU, preparou um relatório, estruturado em quatro partes, contendo cinquenta e oito páginas. O relatório, que tinha sido recomendado pela Resolução da Assembleia Geral 1603 (XV), de 20 de Abril de 1961, foi tornado público no ano seguinte. Este é o pretexto para a nossa conversa.

Tópico da conversa

O nosso propósito tem a ver com a necessidade de compreender certas dimensões do processo histórico de exercício do direito à autodeterminação do povo angolano e que vai conduzir à criação do Estado, à luz do Direito Internacional contemporâneo. Por isso, o tópico da nossa conversa centrar-se-á em torno de aspectos respeitantes à “Questão de Angola” na ONU, suas conexões com a periodização do Direito Internacional Africano Contemporâneo e problemáticas conceptuais de interesse.

 A leitura do referido relatório tem relevância para justificar o lugar que a “Questão de Angola”deve ocupar na Filosofia Africana do Direito Internacional Contemporâneo. Por outro lado, tal como sublinhámos, o aparato conceptual mobilizado, a produção de princípios e normas, a sua interpretação e aplicação, durante as décadas seguintes, constituem de igual modo razões suficientes para que a “Questão de Angola”seja considerada como um caso “clássico”. Resumo-as em três aspectos: (1) Singularidade da implementação do princípio e do direito à autodeterminação; (2) Tipo de descolonização que implicou o recurso à luta armada; (3) Legitimidade e reconhecimento dos movimentos de libertação nacional com fundamento de base territorial.

Relações internacionais e Direito Internacional

Ao longo da leitura do texto, parecerá haver perguntas implícitas que não tiveram respostas. Algumas delas são as seguintes: Existe um Direito Internacional Africano Contemporâneo? Como se pode caracterizar a Filosofia Africana do Direito Internacional Contemporâneo?

As respostas implicam abordagens preliminares que fornecem elementos descritivos sobre as relações internacionais africanas, os sujeitos e actores que intervêm nos processos da sua efectivação. A este respeito, não há dúvidas quanto ao reconhecimento das Relações Internacionais Africanas, enquanto campo científico e disciplinar. É uma disciplina ministrada nas universidades e objecto de estudo que suscita interesse de investigadores, cientistas políticos, filósofos e outros profissionais. Entretanto, a existência do campo disciplinar das Relações Internacionais Africanas pressupõe um sistema normativo a que corresponde o Direito Internacional Africano.  Para a consagração desses dois ramos do saber destacam-se vários autores Africanos. Além dos que já mencionei em textos anteriores, importa trazer outros nomes, designadamente, o jurista argelino, Mohammed Bedjaoui(1929), o cientista político queniano Ali Mazrui (1933-2014), o jurista camaronês Jean-Marie Bipoun-Woum, o jurista francês Pierre-François Gonidec (1914-2008). Entre outras obras, publicaram, respectivamente, “Terra Nullius, ‘Droits’ Historiqueset Autodétermination”, 1975, [Terra Nullius. “Direitos” Históricos e Autodeterminação], “Africa’ sInternational Relations”, 1977,[Relações Internacionais Africanas]”Le Droit International Africain: Problèmes Généraux, Règlementdes Conflits”, 1970,[Direito Internacional Africano: Problemas Gerais e Resolução de Conflitos], “Relations Internationales Africaines”, 1996, [Relações Internacionais Africanas].

No seu livro, hoje um clássico, Bipoun-Woumtematiza o Direito Internacional Africano e o seu objecto. Vai em demanda dos seus fundamentos históricos, jurídicos, sociais, económicos e dos elementos que permitem caracterizar o particularismo africano. Para o efeito, Jean-Marie Bipoun-Woumdescreve a arquitectura da Organização de Unidade Africana (OUA) e analisa especialmente os órgãos de mediação, conciliação e arbitragem. Em recensão ao livro, um outro jurista francês, Dmitri Lavroff (1934-2014), considerou que Bipoun-Woumproblematizava a instituição do Estado, a construção da nação, a solução de conflitos inter-africanos, além dos “desenvolvimentos sobre a noção de equilíbrio africano, tanto o equilíbrio interno dos Estados como o equilíbrio geral do continente, passando necessariamente pela harmonização de políticas, intangibilidade das fronteira se a vontade de cooperação inter-africana”.Portanto, pode dizer-se que actualmente o Direito Internacional Africano não se confunde com o Direito Internacional Europeu ou Asiático. Mas, pode ser tomado como parte do Direito Internacional moderno, do Direito Internacional contemporâneo ou do Direito Internacional geral. E então, o que se deve dizer acerca dos fundamentos históricos? Levanta-se aqui uma questão que se inscreve no âmbito da periodização.

Periodização e história

Sobre o chamado Direito das Gentes ou Direito das Nações, antepassado e sinónimo do Direito Internacional, existem obras dedicadas à sua periodização e história. Mas essa história do direito das nações não pode ser universal, sem a presença de África. Não há lugar para referências eurocêntricas, situando-se o continente africano na periferia da Grécia e de Roma ou na esfera marginal da Era de Grotius, ocupando este período a dianteira, numa lógica evolucionista. Por essa razão, na Enciclopédia de Direito Internacional Público, publicada em 1984, sob os auspícios do Instituto Max Planck de Direito Público Comparado e Direito Internacional, há um verbete assinado pelo professor nigeriano Taslim Olawale Elias (1914-1991), inteiramente dedicado à história do direito das nações em África. Numa perspectiva de longa duração, opera-se com uma sintética periodização que compreende temporalidades e cronologias que remontam à África Antiga e Pré-medieval, cobrindo geografias da África do Norte e as relações transaharianas, os Estados Africanos, do século IV ao século XVI (300 a 1500 d.C), incluindo o Gana; Império do Mali;Songai; Ioruba; Benin; Reino do Kongo. Seguem-senarrativas sobre relações internas e externas, início do comércio europeu e colonização, culminando com o período do domínio colonial.

Taslim Olawale Elias defende que no período do domínio colonial revela-se necessário ter em conta o desenvolvimento do sistema de mandato como resultado indirecto do processo de colonização europeia de África, além das novas formas de sujeição política, especialmente após a derrota da Alemanha, na Primeira Guerra Mundial. Como se sabe, por força do disposto no artigo 22º do Pacto da Sociedade das Nações, assistiu-se à redistribuição da tutela dos territórios pelos Aliados que tinham infligido a capitulação aos alemães. É o caso do território dos Camarões, dividido em duas partes, tendo sido uma colocada sob mandato britânico e outra sob mandato francês. Aconteceu o mesmo com o Togo, na África Ocidental, passando Tanganica, na África Oriental, para a esfera do mandato britânico, o Ruanda e o Burundi, na África Central, para a Bélgica e o Sudoeste Africano, actual Namíbia, na África Austral, sob o mandato da União da África do Sul. Após a Segunda Guerra Mundial, todos esses territórios passaram para o regime de tutela, de acordo com os capítulos XII da Cartada ONU.

Desenvolvimento do Direito Internacional

Nesse contexto, torna-se possível falar de um processo de formação de um novo Estado fundado no respeito pelo direito à autodeterminação dos povos. Admite-se, assim, que os povos de territórios não-autónomos de África tenham contribuído para o desenvolvimento do Direito Internacional e, por isso, tal como o demonstra Taslim Olawale Elias, ospovos Africanos colonizados, directa ou indirectamente, praticaram actosque os qualificavam como sujeitos nas relações internacionais, legitimando a sua condição, enquanto titulares do direito à autodeterminação.

Para Taslim Olawale Eliasa África continuou a dar a sua contribuição para o desenvolvimento da lei internacional. Em seu entender, tratava-se de uma espécie de contribuição vicária, na medida em que, no período colonial, os povos Africanos raramente se constituíam como partes dos tratados e acordos celebrados, apesar de serem deles beneficiário sem alguns casos.

No que diz respeito aos territórios não-autónomos sob domínio colonial de Portugal, “a questão de Angola”, como vimos, é um caso exemplar, se quisermos compreender a posição da potência colonial e dos povos dessesterritórios, perante a comunidade internacional. Portugal tornou-se membro da ONUem 14 de Dezembro de 1955. Nesse mesmo ano, um dos mais importantes jusfilósofos portugueses do século XX, Luís Cabral de Moncada (1888-1974), fazia prova da existência de um pensamento sobre o Direito Internacional que contrariava a irredutibilidade do regime colonial, através de um ensaio publicado no Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. O título é elucidativo: “Será Possível um Verdadeiro Direito Internacional?”.

No referido artigo, o professor de Filosofia do Estado e do Direito da Universidade de Coimbra, escrevia: “Só quando puder existir uma comunidade internacional assente nestas e noutras bases morais equivalentes, orientada na procura duma forma superior de unidade espiritual, assinalada pelo culto dos mais altos valores ético-religiosos comuns a todos os homens, como aliás hoje todos os dias se proclama, só então o direito entre os povos deixará de ser palavra vã: palavra de simples técnica jurídica só para contentamento e maior glória dos juristas”.O jusfilósofo português revelava a lucidez de quem lia os sinais dos tempos. Em sentido contrário, remavam os políticos portugueses.

No ano seguinte, interpelado pelo Secretário-Geral da ONU, Portugal não admitia o facto de ter sob sua administração territórios que se enquadravam na categoria indicada pelo artigo 73.º da Carta da ONU, os chamados “territórios não-autónomos”. Entretanto, tudo se transformaria, definitivamente, durante a década de 60 do século XX.

Dá-se o prenúncio de um período auspicioso, a partir de 1960, quando a composição e a orientação do voto maioritário da Assembleia Geral foram alteradas com a admissão de dezoito novos Estados independentes, representando a África e a Ásia. O processo de criação de normas do Direito Internacional é afectado por tal circunstância. É a vontade de uma maioria emergente.

Se procedermos à análise historiográfica da Filosofia do Direito Internacional em Portugal, concluiremos que as correntes positivistas e jusnaturalistas dominantes no pensamento jurídico fornecem as bases para explicar os anacronismos portugueses do “paleocolonialismo”, como lhe chamou Agostinho Neto (1922-1979). Portugal negava o fundamento do carácter obrigatório do Direito Internacional, perante as obrigações a que se encontrava vinculado. Mas a leitura de obras filosófico-jurídicas de autores portugueses permite perceber que o jusnaturalismo católico que parece ser a concepção dominante em Portugal, na segunda metade do século XX, produz efeitos contrários aos ventos de mudança.

Aspirações e conceitos

No relatório do subcomité constituído para acompanhar a situação em Angola, publicado em 1962, opera-se com vários conceitos descritivos e normativos. De um modo geral, os sentidos que lhes são atribuídos colocam o caso no cruzamento das diferentes doutrinas contemporâneas, abrangendo áreas como o Direito, a Filosofia Política, a Ética e as Relações Internacionais. Os relatores recolheram abundante informação a respeito dos movimentos de libertação nacional, suas doutrinas ideológicas e representatividade, bem como das populações, dos refugiados e suas condições de vida no exílio. Decorrem daí as conclusões segundo as quais o regime político português não reconhecia a legitimidade de quaisquer aspirações nacionalistas em prol da autodeterminação e independência de Angola.

As audiências e auscultações realizadas em Leopoldville, actual cidade de Kinshasa, permitiram que o Subcomité dedicasse a terceira parte do relatório à caracterização das organizações políticas, associações e movimentos nacionalistas implantados naquele país vizinho. No fundo, procedeu-se à recolha de informação sobre a situação política de Angola, sobre as visões que a população angolana tinha sobre a política portuguesa. É de ontologia política que se tratava.

Por essa razão, a interpretação do sentido dos conceitos com os quais os órgãos da ONU caracterizavam a situação de Angola tem grande importância. Fica demonstrado o antagonismo político concorrente entre o regime colonial português e aqueles que reivindicavam a legitimidade de representantes do povo angolano. Se for analisado à luz do Direito Internacional desse antagonismo concorrente deriva um conjunto complexo de questões, algumas das quais emanam dos conceitos operatórios a que já nos referimos. Para dar uma ideia disso, ilustramos o nosso propósito com a análise conceptual que desenvolveremos na próxima conversa.

Conceito de povo e conexos

1) Conceito de povo. No contexto africano, o conceito de povo já suscitava debate na década e continua a suscitá-lo. O seu potencial para sustentar de batesargumentativos tem um largo espectro de referências. Estende-se desde o conceito político de povo, passando pelos conceitos antropológico de nação até ao conceito sociológico de povo, enquanto comunidade.

2) Autodeterminação. É outro conceito que está plasmado no princípio da autodeterminação. Associado ao de descolonização, ambos pressupõem a existência de um povo. Por isso, no Direito Internacional a definição de povo assenta numa base territorial. Foi adoptada a matriz europeia que se seguiu à Segunda Guerra Mundial.

3) Ónus da descolonização. Configura um desdobramento do direito à autodeterminação, em virtude de ser um direito “erga omnes”, oponível a todos os Estados. Isto quer dizer que todos os Estados devem respeitar este direito. Na “questão de Angola”, o principal destinatário é o Estado colonial português. A aplicação do princípio e direito à autodeterminação obrigava a que Estados terceiros se abstivessem de prestar assistência ao Estado português.

4) Movimentos de libertação nacional. Assim, na “Questão de Angola”, enquanto organizações representativas do povo angolano, os movimentos de libertação nacional têm o direito de recorrer ao uso a força ou luta armada. O continente africano foi berço dos movimentos de libertação nacional, em 1954, com o surgimento da Frente de Libertação Nacional (FLN), na Argélia. A gesta argelina inspirou os movimentos de libertação nacional de Angola, além dos relevantes apoios políticos e militares prestados pelo governo revolucionário.

5) Reconhecimento. De acordo com o Direito Internacional, o reconhecimento dos movimentos de libertação nacional, no quadro da “Questão de Angola”, teve valor “constitutivo”, isto é, a aquisição da personalidade jurídica internacional ocorreu após o reconhecimento da Organização da Unidade Africana e, posterirormente, da Organização das Nações Unidas.


*Doutorado em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.

[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 02/07/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/a-questao-de-angola-da-historia-ao-problema-jusfilosofico-ii/

Marcos Carvalho Lopes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *