ensaio de Severino Ngoenha e Carlos Carvalho
Écraser l’infâme (esmagar o infame). Esta máxima de Voltaire, se referia às religiões fanáticas que durante cinquenta anos fizeram soçobrar a Europa numa terrível guerra, mas teria sido aplicável às cruzadas, à guerra da Jugoslávia, às deportações na Birmânia e na Palestina, aos conflitos entre Hindus e Muçulmanos na Índia ou ainda aos ataques da Mocimboa da Praia.
Nenhum de nós – intelectuais, políticos, religiosos – poderia imaginar que Moçambique cairia numa guerra em nome das religiões; depois de uma Primeira República – socialista – algo severa e até hostil para com as religiões e uma segunda República permissiva e laxista até para com as seitas, em que a classe política se rebaptizou e, sobretudo nos tempos da eleições, faz peregrinações politeístas em todas as (igrejas, mesquitas, templos (…) em nome do voto. Ninguém suspeitou que o religioso iria fugir das fronteiras compactas das convicções privadas para se desbordar no espaço publico; ninguém podia imaginar que, trinta anos depois da Pax Romana, Moçambique se encontraria mergulhado numa guerra infame, com o religioso ou a forma dele a ser instrumentalizado.
O IESE organizou um Webinar subordinado ao tema “Confissões Religiosas, Prevenção de Conflitos e Promoção da Paz em Moçambique”. As prelecções dos professores Alfredo Manhiça e Abdul Carimo Fadile foram feitas com propriedade, loquacidade e eloquência de quem conhece os livros sagrados, a história e a doutrina da própria religião e crença. Ficou claro que, quer o Cristianismo quer o Islão, têm nos seus múnus axiológicos, que se configuram nos respectivos textos canónicos, nas suas tradições de crenças, e num arraigamento pela paz e pela tolerância.
Um segundo encontro, com os mesmos temas, realizou-se duas semanas depois em Pemba. Entre as duas apresentações haviam analogias. As diferenças estavam na geo-espacialidade dos encontros. O primeiro foi em plataformas digitais e sob a tutela e/ou até vigilância dos bigdatas. O segundo foi em Cabo Delgado, onde mais do que em Maputo e ainda mais dos que nas plataformas digitais, o sofrimento de uma população deportada se alimenta de testemunhos existenciais e pressiona a necessidade de uma solução, da qual as religiões, em comum, querem ser parte.
O comum dos dois encontros é que em nenhum momento as duas religiões se cruzaram e fizeram diá-logos. Apesar de pontos de convergência (monoteísmo, messianismo, origens comuns etc.) elas caminharam em paralelo sem se cruzarem. Mesmo na liturgia e rezas, aparentemente comuns, cada um ficava confinado no seu credo; invocava o seu Deus, na sua língua litúrgica e a partir dos seus livros sagrados. Tratou-se de polílogos intermediados por monólogos apologéticos sobre arraigamento do cristianismo e do islão – mas de maneira separada – a favor da paz, da justiça e fraternidade.
O diálogo tem – filosoficamente – outros pressupostos, outros significados, outras ambições. O diálogo não se contenta em ser pura eloquência, desdobramento do que eu sei sobre mim e a minha crença, demonstração retórica dos meus conhecimentos e das virtudes (proselitismo) da minha religião diante do outro. O diálogo implica o esforço de tentar compreender o outro, entrar nas suas razões, medir as determinações. Isso supõe uma espécie de suspensão de juízo (O que Husserl chamava de epoke) que se aproxima da tolerância.
Esta, a tolerância, impõe-se pela necessidade de viver juntos. Ela é um dos poucos conceitos com dois antónimos, a intolerância e a indiferença, o que introduz o conceito da justiça. A tolerância tem a ver com a capacidade de escutar o outro e permite viver na diversidade. Ela permite viver na polifonia e, ainda bem, porque isso nos faz sair da obsessão de querer propagar e fazer a apologia da própria verdade.
O diálogo é um engajamento existencial e intelectual susceptível de despertar no outro o mesmo desejo de disponibilidade. A empatia é, talvez, a ultima virtude do diálogo. A empatia é uma espécie de viagem em direcção ao outro, viagem que nos obriga a imaginar o que ele pode sentir. Isso sugere que nos introduzamos no mundo do outro, mas como se entra num país estrangeiro. Como escreve um poeta pernambucano, “terra alheia pisadevagar”. Por isso a empatia tem que resultar de uma escolha sincera da nossa parte, frequentar a catequese ou a escola corânica do outro, para entender as suas razões…
O diálogo é importante porque, enquanto elemento de construção social, permite parar com a violência. Permite ser moçambicano sem renunciar ou abdicar da própria ancoragem histórica, a própria obediência religiosa ou doutrinal, não pelas histórias diferentes que as religiões construíram em Moçambique, mas porque os cristãos e os muçulmanos partilham com outros concidadãos – animistas, ateus, agnósticos, budistas, hinduístas – valores (diálogo e tolerância), símbolos que lhes conferem uma identidade comum, um espaço identitário que lhes permite, em liberdade, professar as suas crenças de uma maneira específica e diferentes das práticas dos outros. Permite ser muçulmano e cristão convencidos, mas intransigentemente “laicos”, pois o facto de acreditarmos num Deus não nos dá o direito de o impormos aos outros.
Cristãos e muçulmanos têm tradições – e referências – de crença diferentes. Porém, a tradição não é o passado, ela tem tanto a ver com o passado como com o presente e o futuro. Ela está para além da temporalidade, ela não se reporta ao que aconteceu mas ao que é permanente. Ela não se institui na contracapa das novidades, mas constitui o fundo no qual as mutações têm que se realizar para adquirir significado e duração. A tradição mergulha as suas raízes no imemorial. Toda a tradição é condenada a inovar-se ou então a desaparecer. Sem ela seria impossível sermos o que somos. Agarrados à sua letra, estaríamos em presença dessas sociedades frias, pintadas por Claude Lévy-Strauss, sociedades fósseis que se despojaram da história, e onde cada geração se contentaria de repetir os factos e gestos da geração precedente. Uma tradição que não é continuamente revisitada e reactualizada está destinada a periclitar. Tomar o exemplo daqueles que fundaram e transmitiram os valores em que nos reconhecemos não e só transmitir, é também, por sua vez, um acto de fundação. Isto levanta a questão do que convém transmitir.
Diante dos conflitos actuais, perante a necessidade de parar com as barbaridades da guerra, como é que as religiões podem contribuir para uma educação incisiva, forte, célere em prol de uma sociedade que milite pela paz?
Foi sobre os escombros da guerra de religiões e do Édito de Nantes que Bayle, Locke e Voltaire conceberam os conceitos de tolerância; foi sobre a pressão do laicismo e do ateísmo que se inscreveu na pauta das religiões o conceito de ecumenismo; foi sobre os escombros da guerra fria e do início do fim da história (Fukuyama) que se iniciou um diálogo inter-religioso. Hoje, diante da ameaça da dissolução da pátria, de pertencermos, anti-craverinhamente, a um país que está a deixar de existir, surge o imperativo da reinvenção de uma postura política colectiva, de doutrina moral e de um modus vivendi em consonância com os tempos turbulentos que vivemos.
No livro Mestres e discípulos, George Steiner, coloca uma das questões mais irredutíveis da filosofia moral: o mestre é responsável pelos seus discípulos e se sim até onde? E de que maneira? Steiner sabe que o mestre tem entre as suas mãos o mais íntimo dos seus discípulos, a matéria frágil e incendiária das suas responsabilidades.
A tragédia de Cabo Delgado não resulta, em parte, das nossas pedagogias religiosas, da maneira como educamos os nossos discípulos a ser e a estar com os outros e em sociedade?
Como educar as novas gerações, para que as religiões não sejam reservatórios de fundamentalismos, integrismos, racismo pseudocientífico – posições teóricas que pressupõem uma doutrina (ou pior) de intolerância?
Como é que as confissões religiosas podem incidir, através de uma moral activa para a paz; como é que de forma incisiva, com utensílios e instrumentos adequados à situação que vivemos, elas podem hoje, independentemente das suas diferenças confessionais, projectar-se em direcção a uma maior dinâmica de prevenção de conflitos e de militância pela paz?
A tolerância pode ser encorajada ou contrariada pela educação e pela cultura. Ela tem dois componentes, a primeira, moral, consiste em admitir que as pessoas que temos pela frente são iguais a nós, isto é, reconhecer os outros e a aceitá-los por aquilo que são. A segunda é intelectual: trata-se de aceitar, aprender com os outros, reconhecer que as diferenças culturais descrevem diferentes experiências (colectivas e/ou individuais) fundamentais. Deste ponto de vista não há tolerância sem curiosidade. A tolerância é uma ética. E como tal, ela é sólida e precária ao mesmo tempo; ela releva de um trabalho de cada um sobre si mesmo e das sociedades sobre elas próprias. É um problema de cultura.
A verdadeira questão é como construir uma sociedade de tolerância, como reduzir os riscos de intolerância. Antes de combater a intolerância nos outros, convém combatê-la em nós próprios. Não existe um determinismo económico ou social da tolerância. Mas também não existe um determinismo institucional: a tolerância deve ser objecto de um trabalho, de um inquietação permanentes da sociedade. A educação e a tolerância têm que ser incessantemente retomadas. Neste ponto de vista não é indiferente que as confissões religiosas sejam vigilantes e eliminem posturas, discursos, pregações com vectores potenciais de intolerância.
A tolerância tem a ver com a capacidade de escutar o outro e permite viver na diversidade, na polifonia; ela se faz pela necessidade de viver juntos. Porém, ela é, repetimos, um dos poucos conceitos com dois antónimos, a intolerância e a indiferença. Os professores Alfredo Manhiça e Abdul Carimo Fadile insistiram, copiosamente, que a paz é fruto da justiça (o que é contrário à indiferença), querendo insinuar que uma das razões fundamentais dos conflitos é a ausência da justiça. A justiça pode ser entendida como dar a cada um o que é seu (Aristóteles) e como direito a participar na construção comum das instituições (Rawls). Mas a justiça que precisamos em Moçambique hoje, é uma justiça costureira.
As destruições económicas, mas sobretudo sociais, culturais e morais provocadas pela guerra de Cabo Delgado estão a levar os espíritos e a sociedade à decomposição. Os conflitos, pretextualmente religiosos, exprimem na verdade outros interesses, mas transbordam para o interior das colectividades, dos grupos e das famílias. As estruturas políticas estão a ser profundamente postas à prova pela rotura da unidade.
O nosso grande problema é costurar, cozer, é fazer com que os moçambicanos, todos, participem a costurar Moçambique, para que a solução dos nossos problemas passe não através das redes sociais (aquilo que Deleuze chamava ‘rizomas’), mas pelo verbum/ logos e pelo dia-logos. Como é que o Cristianismo, o Islão, o Budismo, o Hinduísmo, as religiões tradicionais, podem servir esta justiça, costurando, cozendo os moçambicanos – pretos, brancos, chineses, indianos – para terem uma identidade comum de reconhecimento recíproco, na tolerância?
Persiste a questão de sabermos como nos defendemos dos troantes que, em nome da (s) religiões (s) manipulam jovens inocentes e transformam crenças, credos, religiões não em instrumentos de ligação, de costura – a palavra religião significa religar (religere) – mas em ideologias de conflitos, de guerras infames e sanguinárias?
A coexistência entre confissões religiosas foi sempre estabelecida (na modernidade) por uma série de tratados que se situam fora de todo e qualquer debate doutrinal. O Édito de Nantes, que põe fim a cinquenta anos de guerra de religiões, convida em 1598 os protestantes e católicos a não renunciarem à sua fé mas simplesmente a viverem “como irmãos, amigos e concidadãos” (art. 2) é o que é reactualizado pelo Papa Francisco na Encíclica Fratelli Tutti.
A filosofia com Espinosa, Locke, Voltaire, J. Stuart Mil fez da tolerância um imperativo categórico da vida comum, da vida em sociedade. A aprendizagem da tolerância se faz pela necessidade de viver juntos.
Hoje, como ontem, se queremos continuar unidos e em comunidade (cum-munnia – partilha de bens materiais e espirituais), devemos nos erguer e em uníssono gritar e combater, com Voltaire, a infâmia das falsas religiões (e de tribalismo) que se alimentam de sangue, de guerras, de mortes, não de progresso para todos…
Severino Ngoenha e Carlos Carvalho