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Escolas filosóficas africanas – II

Luís Kandjimbo |*

Pairam muitas ameaças e riscos sobre as Filosofias Africanas Contemporâneas. A glossobalcanização é uma dessas ameaças. Estão em causa doenças típicas do modelo de Estado-nação ocidental. É dele que deriva a ideia de filosofia nacional. Deste modo, as referências que se possam fazer a escolas filosóficas africanas confundem-se com comunidades de filósofos que mantêm vínculos com um Estado-nação e uma língua. Se na Europa parece ser fácil classificar as correntes do pensamento filosófico, tal não acontecerá em África onde o pluralismo linguístico territorial convoca um outro fundamento para definir as filosofias nacionais. Pode dizer-se que no continente africano o espectro glossobalcanização, devido ao seu carácter artificial, constitui o maior perigo para o desenvolvimento das Filosofias Africanas Contemporâneas

Riscos e ameaças

Temos vindo a denominar por glossobalcanização a ameaça que se revela sob a forma de um preconceito, legado do colonialismo, segundo o qual existe uma impossibilidade de diálogo intercultural africano ao nível do pensamento filosófico. O nigeriano Jonathan Chimakonam, líder da Escola Filosófica de Calabar, não se refere a essa ameaça, especificamente, quando se debruça sobre “preocupações e perigos relativos à prática da Filosofia Africana”.Entretanto, identifica três riscosque a filosofia africana contemporânea corre. O primeiro consiste em assumir que os filósofos Africanos não realizam nada que seja sério, limitando-se ao estéril debate meta filosófico, presumível necessidade de construção de sistemas e questões substantivas. O segundo risco, no dizer de Chimakonam, decorre do facto de os filósofos não terem interlocutores, trabalhando sob a ilusão de serem personagens exóticas, preocupadas com coisas sem relevância para outras pessoas. O terceiro risco tem a ver com a suposição de que não há interlocutores no continente africano, sendo o isolamento a alternativa. Para Chimakonam isso conduz à liquidação instrumental do raciocínio filosófico. Ao invés, a soluçãoreside na criaçãode plataformas de diálogo interdisciplinar. Por essa razão, o professor de Calabar afirma que o filósofo Africano “deve aprender a meter o nariz nos negócios de outras disciplinas”. O quarto risco prende-se com a construção de casas erguidas com argumentos sem objectivos, castelos de contradições, dando aos estranhos a impressão de que não são convidados para o banquete da Filosofia Africana. O quinto risco, que afecta o desenvolvimento da filosofia africana,emerge do “Silencioso Inconsciente Colectivo”, em inglês “Silent Unconscient Collective”. SUCO emabreviatura.O sexto e último risco, segundo Chimakonam, diz respeito ao anacronismo, na medida em que determinados autoresnão citam os seus colegas Africanos. Tratam de determinadas matérias, tematizando problemáticas como se fossem os primeiros a abordá-las, exprimindo”a síndrome do primeiro a fazer”, quando evitam intencionalmente o diálogo intertextual. Por vezes, praticando actos imorais de  apropriação de ideias alheias.

 
Escolas de pensamento

Como vimos, na classificação das diferentes escolas de pensamento predomina o critério 6) da grelha que usámos para caracterizá-las. Esse critério aponta para a proeminência de uma determinada corrente cuja denominação serve como identificador.O referido critério revelou-se operatório na sistematização das correntes de pensamento proposta pelo filósofo queniano Henri OderaOruka (1944-1995), no contexto do “grande debate” sobre a existência da Filosofia Africana. Ele começou por formular uma definição da filosofia, argumentando que tal operação podia conduzir a dois sentidos. Em primeiro lugar, a filosofia como visão geral de primeira ordem cuja competência qualquer humano possui. Em segundo lugar, a filosofia como avaliação crítica da visão de primeira ordem, entendida como reflexão livre sobre ideias e conceitos como espelhos da realidade.

Pretendendo estar à altura dos desafios do seu tempo, o malogrado filósofo queniano, em vida, identificou seis escolas africanas de pensamento filosófico: a) etnofilosofia; b)filosofia profissional; c)filosofia do nacionalismo-ideológico; d); sagacidade filosófica e) filosofia hermenêutica; f) filosofia artística ou literária. Actualmente, os manuais de Filosofia Africana consagram o uso dessa sistematização para fins pedagógicos.

Na presente conversa, é pouco relevante o tratamento exaustivo da proposta de Odera Oruka. Em breves linhas, talvez valha a pena reconhecer uma alusão remissiva de referências que estão na origem da sistematização a que o filósofo eritreu, Tsenay Serequeberhan, atribui importante utilidade pedagógica. Aetnofilosofia é uma escola temática representada pela actividade desenvolvida pelo missionário belga Placide Tempels (1906-1977), e os filósofos ruandês Alexis Kagame (1912-1981) e queniano JohnMbiti (1931-2019), entre outros.

A filosofia profissional conta com os oponentes da etnofilosofia, formados em universidades ocidentais e que reivindicam outros métodos filosóficos. São os chamados filósofos profissionais. A filosofia do nacionalismoideológico centra-se na produção do discurso que emana das ideologias dos movimentos de libertação nacional.A sagacidade filosóficavem provar a existência desábios que representam a tradição filosófica antiga. Seguem-se a filosofia hermenêutica e a filosofia artística ou literária.

 
Filosofias nacionais?

Foram dois filósofos da “escola profissional”, Paulin Hountondji (n.1942) e Peter Bondunrin (1936-1997) que operaram com a ideia de filosofia nacional, quando suscitaram um debate acerca de parâmetros como a intencionalidade,  a geografia nacional e o uso da escrita. Assim, discutia-se a pertinência das referências que se faziam a escolas filosóficas africanas,podendo confundir-se com comunidades de filósofos que mantêm vínculos com um Estado-nação e uma língua. Ao elaborar uma síntese dessas controversas definições, o filósofo ganense Safro Kwame conclui que Paulin Hountondji e Peter Bondunrin definem a filosofia africana entendida como trabalho ou produto final de uma pessoa de qualquer sexo, raça ou cor que tenha em conta a sua experiência peculiarmente africana para suportar, significativamente, no tratamento de uma questão ou problema filosófico.

Num registo diferente, encontramos o filósofo camaronês Hubert Mono Ndjana (1946-2023), que classifica a Filosofia Africana Contemporânea tendo como critério as línguas oficiais europeias dos Estados africanos. Admite a existência de três filosofias nacionais, em língua inglesa, língua francesa e língua árabe, a que designa por filosofia magrebina. A Filosofia Africana potencialmente escrita em língua portuguesa é por ele ignorada.

 
Escola filosófica de Yaoundé

Não cabendo aqui uma abordagem exaustiva das filosofias nacionais africanas, assumimos o compromisso de privilegiar a escola filosófica de Kinshasa. A actividade de ensino e investigação na R.D.Congo será observada numa perspectiva de comparação com uma outra produção filosófica da África Central. Refiro-me à escola camaronesa deYaoundé, que é considerada por alguns historiadores da filosofia como sendo uma das mais poderosas do continente, no século XX. Os seus pioneiros e figuras tutelares formaram a primeira geraçãodefilósofos de que fazem parte Pierre Meinrad Hebga (1928-2008), Marcien Towa (1931-214), Basile-Juléat Fouda (1934-2020),FabienEboussi-Boulaga (1934-2018), Bernard Nanga (1934-1985) e Ebénézer Njoh-Mouellé (n.1938). Surgiram outras gerações. À segunda pertencem os filósofos que se formaram imediatamente após a independência dos Camarões, tais como Hubert Mono Ndjana(1946-2023) Robert Ndébi Biya (n.1946), Nsamè Mbongo, Charles-Robert Dimi, Rachel Bidja Ava, uma das poucas mulheres filósofas.

 
Conselho Inter-africano de Filosofia

Ora, o conhecimento dessas duas tradições filosóficas da África Central e outras do continente parecerá fragmentário,se não esboçarmos um breve recorte das publicações especializadas e do associativismo profissional dos filósofos. Semelhante visão de conjunto conduz-nos às escolas filosóficas dos países de língua inglesa. Conclui-se que a segunda metade do século XX foi fecunda.  A constituição do Conselho Inter-Africano de Filosofia, em 1973,foiuma prova disso. A sua sede inicial estava situada em Cotonou e, tal como diria Paulin Houtondji, o seu primeiro secretário-geral, o Conselho Inter-Africano funcionava como Federação de Associações Nacionais e Departamentos de Filosofia das universidades em África.A partir do ano seguinte, passou a ser publicada a revista “Consequence”. No editorial do seu número inaugural, Paulin Hountondji assinalava as circunstâncias da génese do Conselho Inter-Africano e escrevia: “Éramos cerca de vinte professores de filosofia africana dos mais diversos países, realizando investigação nos mais diversos e variados ramos da nossa disciplina. Reunimo-nos para analisar juntos a situação filosófica actual no nosso continente, medir a nossa miséria teórica, avaliar osnossos motivos de esperança e para definir as nossas tarefas. Nesta reunião histórica, concordámos pelo menos num ponto, numa evidência negativa, mas frutífera.  Concordámos, juntos, sobre o que a filosofia não é”.

 
De Ibadan a Legon

Os registos da história da Filosofia Africana Contemporânea fornecem relevantes informações acerca das diferenças do seu desenvolvimento e contextos nacionais. A natureza do colonialismoeuropeu e suas tradições filosóficas, bem como a turbulência relativa dos países africanos de língua inglesa, se for comparada com os países africanos de língua francesa. Das tradições filosóficas que herdam do colonialismo, distinguem-se a tradição analítica inglesa e a tradição continental francesa.

Devido à sua demografia, a Nigéria situa-se na linha da frente, em matéria de mapeamento de universidades e departamentos de filosofia. Destacam-se as universidades com Departamentos de Filosofia, entre as quais a Universidade de Ibadan, Universidade Obafemi Awolowo, Ile-Ife, Universidade de Lagos, Universidade da Nigéria, Nsukka, Universidade de Port Harcourt, Universidade de Calabar, Universidade de Benin e Universidade de Oyo. A Universidade Federal de Ibadan é a mais representativa, tendo aí surgido historicamente a primeira escola filosófica.A mais recente corrente de pensamento é a escola filosófica de Calabar. Traduz bem o dinamismo do ensino e da filosofia na Nigéria. O seu líder, Jonathan Chimakonam, formulou a ideia de filosofia conversacional, que articula a  Filosofia cultural  e a  Filosofia intercultural. O método intercultural, o chamado conversacionalismo, faz apologia do combate aos centrismos culturais.

No entanto, não se pode perder de vista a importância da escola de Legon, que tem conexões com a Universidade do Ghana. A escola de Legon conta com três filósofos representativos entre os seus fundadores e figuras tutelares, nomeadamente, Kwasi Wiredu (1931-2022), William E. Abraham (n.1934) e Kwame Gyekye(1939-2019). Após a independência do Ghana, em 1957, eles foram o esteio do Departamento de Filosofia da Universidade de Gana, campus de Legon. O seu estilo de filosofar constitui a linha de orientação e consolidação de uma tradição filosófica, a que Martin Odei Ajeiqualificou como “praxis filosófica transmodernista”. Isto significa que sistematicamente desenvolve-se “uma apropriação consciente de conceitos e princípios fundamentais do cânone modernista”. Para Odei Ajeios três filósofos de Legon demonstraram destreza nas suas opções e respostas conceptuais. Por outras palavras, quer dizer que com essas opções transpõem intencionalmente as visões modernistas. Assim, eles constroem uma tradição filosófica que, no entender de Martin Odei Ajei, permite detectar um centro que é o “humanismo racional”, um método filosófico e três temas substantivos: 1)a relevância da tradição para a modernidade; 2) a busca de formas apropriadas de democracia como meio de legitimar o poder político; 3) o estatuto relativo da pessoa e da comunidade. Assim, estes temas não se inscrevem nas correntes filosóficas ocidentais modernas ou da pós-modernidade.

 
Conclusão

Portanto, numa perspectiva global, os riscos e ameaças subsistem. Por isso, as escolas filosóficas nacionais continuarão a ser expressão da balcanização linguística, se não for rentabilizado o pluralismo linguístico cuja importância pode, de forma positiva, contribuir para a reconfiguração das territorialidades filosóficas nacionais. O método intercultural de que fala Jonathan Chimakonam apresenta-se como instrumento adequado para obter respostas exigidas pelas interrogações que o perigo da glossobalcanização suscita.


* Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 14 de Janeiro de 2024, aqui republicado com a autorização do autor.


**Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 7/01/2024 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/escolas-filosoficas-africanas-ii/

Marcos Carvalho Lopes

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