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Escolas filosóficas africanas -III

Luís Kandjimbo |*

No início da nossa conversa fiz referência ao nome do filósofo queniano Henry Odera Oruka (1944-1995) que, no contexto do “grande debate” sobre a existência da Filosofia Africana elaborou uma proposta de sistematização das correntes de pensamento. Já em 1978, no XVI Congresso Mundial de Filosofia, realizado em Düsseldorf, tinha chamado a atenção da comunidade de filósofos quando afirmou: “O Ocidente não possui o monopólio da filosofia!”. No calor das controvérsias, não deixou de ter em conta os seis critérios que habitualmente são usados nas operações de classificação de escolas filosóficas. Parece, por isso, interessante caracterizar, em breves linhas, a escola filosófica a que dá origem o método e as práticas do fazer filosófico que Henry Odera Oruka inaugura, no Departamento de Filosofia da Universidade de Nairobi. Ele submete a escola de Nairobi a um teste de consistência com a organização de uma antologia crítica, “Sage philosophy: indigenous thinkers and modern debate on African Philosophy”,(Filosofia dos Sábios: Pensadores Nativos e Debate Moderno sobre Filosofia Africana), publicada em 1990

Filosofia dos Sábios

O volume organizado por Odera Oruka, sob o título  de “Filosofia dos Sábios”, que consagra a escola filosófica de Nairobi,constitui uma antologia que comporta capítulos de proponentes e seus críticos, distribuídos em três partes. A principal tese assenta no pressuposto segundo o qual os sábios são filósofos cuja qualificação não depende de qualquer formação académica.Então, quem merece o estatuto de sábio?

Odera Oruka responde à pergunta enunciando as premissas negativas, definindo o que um sábio não é. Em seu entender, é erróneo pensar que um sábio se confunde com um profeta. Podendo ser um profeta, porém, o sábio não é propriamente um profeta. Outro erro diz respeito a associação que se faz da sagacidade com o analfabetismo. Se o profeta prevê o futuro no interesse da sua comunidade, o sábio no sentido filosófico é aquele que está permanentemente preocupado com questões éticas e empíricas fundamentais relevantes para a sociedade, procurando identificar  soluções adequadas. Odera Oruka conclui que, entre sábio e profeta, não há identidade.Por outro lado, entende que procurar sábios entre as massas analfabetas, não significa que a sagacidade filosófica exista apenas entre os analfabetos. Os sábios existem em toda a parte onde há comunidades humanas. Numa formulação lapidar, Oruka escreve o seguinte: “Todas as sociedades usam os seus sábios ou, pelo menos, as ideias dos seus sábios para se defender e manter a sua existência no difícil mundo do conflito e da exploração intersocietais”.Ora, a argumentação de Odera Oruka, em prol da Filosofia dos Sábios, com base na qual faz apologia de um diálogo com estes pensadores das comunidades não escolarizadas, constitui uma das razões para que a “unanimidade filosófica” fosse tomada pelos oponentes como principal traço de identidade e de assimilação com a etnofilosofia.

 
Escolas civilizacionais ou filosofias étnicas?

Como se sabe, o filósofo beninense Paulin Hountondji foi um dos mais destacados tribunos da crítica contra a etnofilosofia, a corrente filosófica que era atacada com fundamento na presunção de ser uma “hipotética visão do mundo colectiva, espontânea, irreflectida e implícita”. Era assim que Hountondji a caracterizava, no seu livro “Sur la ‘philosophieafricaine’.Critique de l’ethnophilosophie”, (Sobre a “filosofia africana”. Crítica da Etnofilosofia), publicado em 1977. Para o filósofo beninense tratava-se de uma mistificação da antropologia colonial, donde derivava a cartografia de filosofias assentes em classificações etnológicas. Eram invenções ocidentais, tais como “filosofia Bantu”, “filosofia Dogon”, “filosofia Diola”, “filosofia Yoruba”, “filosofia Fon”, “filosofia Wolof”, “filosofia Serer”. Com base nesse diagnóstico, Hountondji advertia: “não é a este sistema de crenças tácitas que todos os Africanos em geral aderem, consciente ou inconscientemente, ou mais especificamente os membros deste ou daquele grupo étnico, desta ou             daquela sociedade africana.”

Essa classificação de  Hountondji, associada à crítica da etnofilosofia, suscitou o interesse de NodjitolabayeKouladoumadji, professor da Universidade de Ndjamena, interpretando-a como mapeamento de “escolas filosóficas” do continente africano, que se poderiam ter desenvolvido, longe de contingências históricas como o tráfico de escravizados e a colonização.  No artigo publicado na revista Ziglôbitha, “RevuedesArts, Linguistique, Littérature & Civilisations”, da Universidade PeleforoGonCoulibaly da Côte d’Ivoire, na sua edição de Julho de 2020,Kouladoumadjiapresenta o resultado da interpretação que faz das propostas críticas de Hountondji. Conclui que se trata de cinco escolas de pensamento: 1)Escola da Filosofia Bantu; 2) Escola da Filosofia Bambara e Dogon;3)Escola da Filosofia Youruba;  4)  Escola de Filosofia Diola.As designações destas escolas poderiam mais adequadamente ser referidas pela importância que têm os sistemas de pensamento profundo, os sistemas linguísticos, a produção discursiva oral e os particulares métodos de filosofar dos sábios das comunidades. Admite-se que essa classificação de Hountondji, não obedecendo a mero exercício lúdico de exemplificação, deveria inspirar a operacionalização do conceito de civilização, numa perspectiva de longa duração. O que conduziria à sua revisão.

 
Paradigma da filosofia dos sábios

Para o professor de filosofia da Universidade de Ndjamena, a releitura daclassificação de Hountondji é instrumental, na medida que visa apenas lançar uma âncora com a qual pode legitimar a definição do que se devia entender por filosofiano sentido estrito. Na sua perspectiva, além de não ser uma”elaboração teórica qualquer,baseada na dedução de conceitos”, a filosofia assim entendida devia ter a Universidade como lugar privilegiado para a sua aprendizagem. Kouladoumadji quer dizer que não existe uma filosofia baseada em contos, lendas, provérbios africanos. Por outras palavras, a produção filosófica não pode comportar textos literários, muitos menos textos literários orais.  Se assim for, tratar-se-á de uma filosofia popular.No contexto do debate que se vem travando a respeito da sagacidade filosófica, o filósofo tchadiano situa-se no campo dos oponentes de Henri Odera Oruka (1944-1995). A este propósito, Nodjitolabaye Kouladoumadji afirma que “o africano adulto que cumpriu  todos os ritos de passagem, o último dos quais é a iniciação, será apenas um homem sábio, um filósofo no sentido popular do termo”.

Sublinho o facto de ter sido Odera Oruka que,em 1978,identificou seis escolas africanas de pensamento filosófico que referimos em textos anteriores: a) etnofilosofia; b) filosofia profissional; c) filosofia do nacionalismo-ideológico; d); sagacidade filosófica e) filosofia hermenêutica; f) filosofia artística ou literária.

O equívoco de Kouladoumadji  e de outros críticos de Oruka consiste em confundir as duas primeiras escolas filosóficas, etnofilosofia e sagacidade filosófica, em virtude de se dedicarem à exploração de “materiais extrafilosóficos” ou “materiais não-filosóficos”.


Materiais extrafilosóficos

Kouladoumadji toma de empréstimo a Paulin Hountondji o termo “materiais extrafilosóficos” para designar “todos os textos que, em África, sustentaram a filosofia popular, mas que constituem também objecto de estudo da etnologia”. Assim, os contos, lendas, provérbios, enigmas, parábolas, mitos, poemas dinásticos e épicos são reduzidos à insignificância.Classifica-os em duas categorias: I) “materiais extrafilosóficos leves”, o conjunto integrado por contos, lendas, fábulas, parábolas, poemas épicos etc.; II) “materiais extrafilosóficos pesados”, conjunto formado por mitos. Parece evidente que, num gesto de imprudência, o professor de filosofia da Universidade de Ndjamena, cai numa insidiosa malha, ao afirmar que “nestes géneros literários não aprendemos, nem a história da filosofia, nem a epistemologia, nem a filosofia da história”.

Quando se passa em revista os livros e artigos publicados sobre a obra de Odera Oruka e de autores que se inscrevem na “escola da sagacidade filosófica”, percebe-se que os fundamentos com que operam os proponentes desta escola contribuíram para a reorientação da perspectiva dos oponentes, os chamados “filósofos profissionais”, tais como Paulin Hountondji que, numa mudança de paradigma, passou a defender os “saberes        endógenos”.

O outro exemplo foi protagonizado por um filósofo, igualmente queniano, Dismas Masolo, que, num livro publicado em 1994, “Self and Community” (Representação de Si e Comunidade), transitou da dúvida e do desacordo para a aceitação da argumentação de OderaOruka. Concluiu que não fazia sentido negar a qualidade de filósofo aos sábios sem formação universitária das comunidades do Quénia. No referido livro, Masolo recorre ao método de observação participante, interpreta os “materiais extrafilosóficos” e o pensamento individual de sábios da comunidade Luo, entre os quais o seu próprio pai.

 
Outros métodos

Na verdade, contrariamente ao sentido de exclusão e menosprezo que subjaz à expressão “materiais extrafilosóficos”, a Filosofia dos Sábios de que fala Odera Oruka não se ergue sobre quaisquer consensos comunitários ou “unanimidades filosóficas”.Estão em causa reflexões de homens e mulheres cuja experiência proporciona saberes com os quais desvendam o que se passa à sua volta. Não é com os ortodoxos métodos da Antropologia que se chega ao pensamento desses homens sábios e mulheres sábias.A metodologia adoptada permite que lhes seja retirada a condição de informantes, de certo modo anónimos detentores de saber, para se tornarem competentes sujeitos de um discurso erudito. Atento às metodologias, o filósofo ugandês Kibujjo M. Kalumba aponta três obras que,nesta escola de pensamento filosófico, podem ser destacadas como exemplares da Filosofia dos Sábios, nomeadamente, “Dieu d’Eau: Entretiens avec Ogotommêli”, em francês, “Conversations with Ogotemmeli”, (Deus da Água. Entrevistas com Ogotemmeli), 1965, do antropólogo francês Marcel Griaule (1898-1956), “Sage Philosophy”,(Filosofia dos Sábios),1990), de Odera Oruka, e “Knowledge Belief & Witchcraft”,(Conhecimento, Crença e Poderes Paranormais),1986, de B. Hallen e J. Olubi Sodipo (1935-1999).

No início da década de 70 do século XX, o filósofo nigeriano J. Olubi Sodipo e o seu colega norte-americano Barry Hallen  tinham lançado o projecto de pesquisa filosófica que os levou ao diálogo com os colegas, os sábios de comunidades Yoruba, os  “onisegun”, terapeutas tradicionais e especialistas da farmacopeia. O trabalho culminou com o referido livro. Apesar de terem realizado o seu trabalho sob inspiração da filosofia analítica inglesa, os métodos adoptados por Olubi Sodipo e o Barry Hallen permitem identificar convergências com a escola da sagacidade filosófica. Há outras filósofas e filósofos na Nígéria. São os casos de Sophie Oluwole (1935-2018) e Campbell Momoh (1943-2006).

Odera Oruka e a Escola Filosófica de Nairobi

O fundador da escola filosófica de Nairobi, Henry Odera Oruka, nasceu em 1944 em Ugenya, na região ocidental do Quénia. Se estivesse vivo, completaria 80 anos de idade em Junho do corrente ano. Após os estudos primários e secundários, matriculou-se na Universidade de Uppsala, Suécia, tendo realizado estudos de Meteorologia, Geografia e Geodesia, acrescendo a disciplina opcional de filosofia. Concluiu a licenciatura em Ciências e Filosofia. Nos Estados Unidos da América obteve o Mestrado, em 1969 com uma dissertação sobre o conceito de punição.Regressou à Universidade de Uppsala, onde se doutorou,em 1970,com uma tese sobre o conceito de liberdade. Nesse mesmo ano, tornou-se docente do Departamento de Filosofia e Estudos Religiosos da Universidade de Nairobi, onde lecionou até sua morte em 9 de Dezembro de 1995, por atropelamento, tendo chegado a professor catedrático em 1987. Esse Departamento tinha sido criado em 1969. A maioria do corpo docente era integrada por padres e teólogos leigos que tinham pouco interesse pela Filosofia Africana. A autonomização do Departamento de Filosofia ocorreu em 1980, tendo Odera Oruka sido o primeiro a chefiá-lo. Ocupou o cargo até 1987.

Alcançou notoriedade académica internacional, tendo leccionado em diversas universidades africanas, Universidade de Ibadan, na Nigéria, e norte-americanas, Haverford College.OderaOruka desenvolveu uma intensa actividade associativa. Foi o primeiro presidente da Associação de Filosofia do Quénia, que publicava a revista “Thoughtand Practice”; Director do Instituto Internacional de Estudos Ambientais; Membro da Academia Nacional de Ciências do Quénia; Secretário-Geral da Associação Africana de Estudos do Futuro; Secretário-Geral da Associação Filosófica Afro-Asiática; Vice-Presidente do Conselho Interafricano de Filosofia; Membro do Comité Director da Federação International das Sociedades de Filosofia.

A década de 90 do século XX foi relativamente conturbada para o Departamento de Filosofia da Universidade de Nairobi. A partir do primeiro ano académico até aos meados de 2000, registaram-se acontecimentos que sucessivamente abalaram a comunidade filosófica dessa Universidade.  D.A. Masolo e Gerald J Wanjohi, professores dessa unidade orgânica, foram afastados, seguiu-se o abandono deFred Ochieng-Odhiambo. Em 1995, ocorreu a morte de Odera Orukae em 2003 morreu Walter M. Nabakwe.

Para a identidade da escola da sagacidade filosófica, Odera Oruka prestou relevantes contributos, admitindo-se que o Departamento de Filosofia da Universidade de Nairobi tenha sido o berço de uma das suas mais fecundas correntes, a nível do continente. À luz dessa polifónica identidade, Godwin Azenabor, professor da Universidade de Lagos,designou-a como”escola purista”. Justifica a denominação invocando a relevância da cultura e da tradição africanas tanto para a filosofia como para os modelos de desenvolvimento africano.

Apesar da morte precoce de Odera Oruka, o fundador da escola filosófica da sagacidade de Nairobi, reconhece-se que ele representou uma inspiração para outros filósofos nessa busca de “sábios filosóficos” para entrevistar, arquivar o registo das suas reflexões de modo a           fazer-se prova desse pensamento original. Alguns dos membros desta escola filosófica prestam testemunho acerca dos exemplos de intelectuais locais com que trabalhavam e que se distinguiam como”sábios populares”.

Do ponto de vista histórico, nos meios académicos quenianos considera-se que esses acontecimentos afectaram o prestígio do Departamento de Filosofia da Universidade de Nairobi, no que diz respeito ao desenvolvimento da filosofia africana. Por isso,constituíram causas do seu declínio como centro de debates filosóficos de alto nível. Donde, em 2005, o Departamento de Filosofia voltou a fundir-se com o Departamento de Estudos Religiosos.

Conclusão

Julgo que as breves notas sobre a escola filosófica de Yaoundé e a escola filosófica de Nairobi fornecem linhas de desenvolvimento do que pode ser considerado como cartografia das correntes de pensamento filosófico africano. De Yaoundé a Nairobi, estamos a caminho de Kinshasa ou de outros centros de ensino, investigação e difusão.  Tais sínteses são necessárias, na medida em que resultam sempre da exploração das fontes bibliográficas, iconográficas e audiovisuais disponíveis. Qualquer iniciativa que vise alimentar proponentes e oponentes dos debates sobre Filosofia Africana, transmitir conhecimento a estudantes universitários e não-universitários ou ainda fornecer informação ao grande público, não pode ser levada a cabo negligenciando o valor dessas fontes. Do mesmo modo que é útil a visão de  conjunto, é possível compreender as dinâmicas das filosofias nacionais africanas, a partir do momento em que o trabalho rigoroso for realizado por força de uma necessidade incessante de alargar o horizonte de conhecimentos sobre o continente. 


* Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 21 de Janeiro de 2024, aqui republicado com a autorização do autor.


**Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 21/01/2024 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/escolas-filosoficas-africanas-iii/

Marcos Carvalho Lopes

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