Luís Kandjimbo |*
O caminho que nos leva à Escola de Kinshasa já passou por Yaoundé e Nairobi. Mas a conversa sobre as propostas de Odera Oruka (1944-1995), um dos mais proeminentes filósofos quenianos e fundador da Escola de Nairobi juntou à mesa filósofos dos territórios da África Ocidental, nomeadamente o Benin, o Ghana e a Nigéria. De Legon e Ibadan foram feitas breves referências. Por isso, sugerem-se visitas às Escolas de Cotonou/Porto Novo. Há dois filósofos beninenses que constituem testemunhas da prosperidade da Escola de Kinshasa. Estou a referir-me a Paulin Hountondji e Issiaka-Prosper L. Lalèyê. Está assim enunciado o itinerário da nossa conversa
Hountondji, o filósofo globetrotter
O surgimento do Centro Africano de Estudos Avançados em Porto Novo, integrado na Universidade de Abomey-Calavi, antiga Universidade Nacional do Benin, parece constituir o marco da afirmação de uma Escola Filosófica nesse país da África Ocidental. Paulin Hountondji, que foi o seu fundador, faz confissões reveladoras, no seu livro “Combats pour le Sens”.(Combates em busca do Sentido). Na década de 70 do século XX, Paulin Hountondji frequentava os meios académicos de Lubumbashi, Kinshasa, Ibadan, Ifé e Nairobi. Em 1971, tinha tido a iniciativa de criar os “Cahiers Philosophiques Africains” na Universidade Nacional do Zaire. Já a Faculdade de Letras da Universidade de Ifé era dirigida por um amigo seu, o filósofo nigeriano Olubi J. Sodipo (1935-1999), antigo chefe do Departamento de Filosofia que tinha criado a revista “Second Order”, em 1976. Entretanto, em 1973 tinha sido realizado o congresso constitutivo do Conselho Inter-Africano de Filosofia, onde Sodipo foi eleito presidente. Foi em Maio de 1978 que o debate com o seu antigo colega e compatriota, o linguista Olabiyi Yai (1939-2020), se agudizou, por ocasião de uma sessão do grupo de investigação multidisciplinar que se realizou em Ifé, sob o patrocínio de Olubi Sodipo, durante a qual Olabiyi Yai apresentou o livro de Paulin Hountondji, “Sobre a ‘Filosofia Africana’”. O livro começava a ser alvo de ataques dos autores que representavam acrítica da crítica da etnofilosofia. Hountondji reconhecia que tinha sido “uma contracrítica devastadora”. A versão desse texto de Yai foi publicada nesse mesmo ano pela revista “Présence Africaine”, sob o título “Teoria e Prática na Filosofia Africana: Miséria da filosofia especulativa (Críticas de P. Hountondji, M. Towa e outros)”. Como se sabe, ao coro das críticas contra os críticos da etnofilosofia juntaram-se outras vozes, tais como o próprio Sodipo, Koffi Niamkey, Abdou Touré e Oyeka Owomoyela (1938-2007). Mas foi a partir da morte de seu pai, ocorrida em 1983, durante o congresso da Federação Internacional das Sociedades de Filosofia, em Montreal, que, curiosamente, se propôs rever as suas posições e reler a etnofilosofia cujos autores Placide Tempels e Alexis Kagamé, etextos ele criticava. Para todos os efeitos, Paulin Hountondji era um verdadeiro globetrotter da Filosofia Africana Contemporânea que cultivava a negação de si mesmo. Inevitavelmente, a negação daria lugar, décadas depois, à afirmação, neste caso ao reconhecimento de saberes filosóficos endógenos.
Escola Filosófica de Cotonou
Os indícios da revisão das críticas contra a etnofilosofia evidenciam-se efectivamente em três momentos. Em primeiro lugar, está a publicação do artigo “Langues Africaines et Philosophie: L’hypothèse relativiste” (Línguas Africanas e Filosofia: A hipótese relativista), publicado em 1982 pela revista “Les Études philosophiques”. Em segundo lugar, vêm as reflexões sobre o conceito de “desconexão”,formulado por Samir Amin. Corria o mês de Dezembro de 1986, em Dakar. Nessa altura, apresentou uma comunicação, no âmbito de um workshop realizado pelo Fórum do Terceiro Mundo, dirigido pelo economista egípcio que vivia então na capital senegalesa. Em terceiro lugar, seguiram-se o seminário de investigação sobre o conhecimento endógeno que organizou na Universidade Nacional do Benin, em 1987-1988 e outros dois eventos de que falaremos mais adiante.
Ora, sobre os ombros de Paulin Hountondji recaía a responsabilidade de ser a figura tutelar do que poderia ser a Escola Filosófica no Benin. Quanto à denominação, qual seria o lugar da sua sede, Cotonou ou Porto Novo? Os acontecimentos subsequentes permitem privilegiar Porto Novo. Em 1997, foi criado nessa cidade o Centro Africano de Estudos Avançados, posteriormente integrado na Universidade de Abomey-Calavi. O carácter institucional tem relevância. Até aí, poder-se-ia dizer que o estatuto de figura titular dessa escola beninense era disputado com Olabiyi Yai. Mas o linguista beninense não era um filósofo ortodoxo. A interdisciplinaridade era a sua divisa. Além disso, não revelava tal propensão como parecia ser com Hountondji. O dogma filosófico do “saber endógeno” que Hountondji passou a defender era tardio. Quando se lêem as actas do seminário de Cotonou organizado em 1987/88 e reunidas em livro, “Les Savoirs Endogénes. Pistes pour une Recherche” (Saberes Endógenos. Pistas para Investigação), percebe-se, definitivamente, que o pensamento do filósofo beninense tinha sofrido um abalo profundo. Esse “saber endógeno” já defendido pelos críticos da crítica da etnofilosofia, entre os quais Olabiyi Yai, tornou-se um conceito operatório da nova escola de filósofos do Benin. O fazer filosófico do grupo que se reúne sob os auspícios do Centro Africano de Estudos Avançados de Porto Novo tem aí o seu centro de gravidade.
Não é casual que o referido seminário de Cotonou tenha sido realizado no âmbito de um mestrado em filosofia e sociologia. As actas desse seminário de Cotonou, organizado em 1987/88, foram publicadas apenas em 1994 com a chancela do Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais em África (CODESRIA).
Reabilitação da etnofilosofia
A necessidade de releitura da obra “etnofilosófica” de Alexis Kagamé (1912-1981) a que Paulin Hountondji toma forma no referido artigo de 1982. O filósofo beninense reavalia a sua perspectiva. Atribui muitos méritos ao filósofo e teólogo ruandês. Considera que o linguista francês Emile Benveniste (1902-1976)traz um suporte teórico muito posterior ao que tinha sido antecipado por Alexis Kagamé. De igual modo, refere que o mimetismo do modelo aristotélico, acusação de que era alvo o teólogo ruandês não faz sentido, na medida que equivalia a manifestações de ignorância, relativamente aos pressupostos com que ele operava. Hountondji considera que a hipótese do relativismo linguístico de Alexis Kagamé é uma das suas mais fecundas propostas, tal como formula nos seus dois livros “dedicados à filosofia”, nomeadamente, “La Philosophie Bantu-Rwandaise de l’Être”, (A Filosofia Bantu-Ruandesa do Ser) e “La Philosophie Bantu Comparée”, (A Filosofia Bantu Comparada).
Entretanto, reconhece que no período em que trabalhava na R.D. Congo, antigo Zaire, um dos mais fortes defensores do relativismo linguístico já era o filósofo Marcel Ignace Tshiamalenga Ntumba (1932-2020) que “em várias conferências que causaram agitação no Zaire, assumiu a causa deste relativismo, associando-o à filosofia alemã da linguagem e, mais directamente, à chamada hipótese Sapir-Whorf.”
Palavras de Hountondji
O filósofo beninente rende-se, quando escreve: “Saudei a perspicácia de Kagame que percebeu claramente, pelo menos dois anos antes de um artigo tão famoso de Émile Benveniste, tudo o que as categorias de Aristóteles devem de facto à sintaxe da língua grega.”
A partir dessa leitura cuidadosa, Hountondji extraía a lição segundo a qual “o particular existe e deve ser levado em conta.” Por aí vai ao encontro de um filósofo da Escola de Legon/Ghana. Trata-se de Kwasi Wiredu (1931-2022) que criticava o hábito de os filósofos Africanos pensarem exclusivamente em línguas europeias. Conclui que Wiredu e Kagame atribuíam valor e reconheciam importância ao relativismo linguístico. Não se esquece de sublinhar a apologia do filósofo da Escola de Legon do regresso às línguas africanas, reivindicação que visava uma verdadeira descolonização conceptual.
Porto Novo e o paradigma endógeno
A leitura das confissões reveladoras de Paulin Hountondji, no seu livro “Combats pour le Sens” (Combates em busca do Sentido), não deixa margens para dúvidas. A Escola Filosófica de Cotonou/Porto Novo adquire identidade na década de 90 do século XX. Em conclusão, a sua consagração institucional consumou-se em 1997com a criação desse centro de excelência, o Centro Africano de Estudos Avançados. Correspondia ao resultado da mudança de paradigma que se traduziu no abandono dos dogmas grafocêntricos da filosofia por parte de Hountondji. Por conseguinte, pode dizer-se que a Escola de Nairobi encontra ecos no Benin. Ambas as escolas fazem apologia da existência de duas realidades: 1) dos sábios com estatuto fundado nas culturas e tradições antigas; 2) dos saberes endógenos antigos.
As duas cidades beninenses, Porto Novo e Cotonou, tornavam-se centros de divulgação e meditação filosófica. OCentro Africano de Estudos Avançados organizou colóquios, sucessivamente, em 2002e em 2006. Os respectivos temas deixam perceber as conexões com os “saberes endógenos”. Com o primeiro evento propõe-se a reflexão sobre “O encontro das racionalidades”. As suas actas foram publicadas sob o título “La Rationalité, une ou Plurielle?” (Racionalidade, una ou plural?). O segundo evento reúne diferentes oradores para tratar do tema “Conhecimento tradicional e ciência moderna”. A publicação que reúne as comunicações tem o seguinte título: “L’Ancien et le Nouveau. La Production du Savoir dans l’Afrique d’Aujourd’hui”, (O Antigo e o Moderno. A Produção do Saber na África Contemporânea).
Hountondji e a Escola de Kinshasa
Da Escola de Kinshasa, Paulin Hountondji mencionou o nome Tshiamalenga Ntumba e uma revista. Enquanto filósofo globetrotter, reivindica a criação dos”Les Cahiers Philosophiques Africains”, no antigo Zaire, actual R.D. Congo. Na época, Kinshasa e Lubumbashi eram placas giratórias. Hountondji era professor de filosofia, vinculado ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade Nacional do Zaire, no campus de Lubumbashi. A revista começou a ser publicada em 1972, tendo sido ele o primeiro editor. No seu texto inaugural, defendia a necessidade de se estabelecer um outro debate que fosse importante, um debate teórico que devia juntar as pessoas e povos Africanos.
Como veremos na próxima conversa, as dinâmicas dos centros universitários de Kinshasa e Lubumbashi, na R.D. Congo, não eram comparáveis ao que se passava no Benin, no capítulo do ensino da filosofia. Por essa razão, facilmente se compreende que só duas décadas depois se tivessem reunido condições para o surgimento de uma escola filosófica. A propósito de publicações periódicas universitárias será necessário falar de outras tantas, quer na área da teologia, quer na de filosofia. Destaca-se a “Revue Philosophique de Kinshasa”, (Revista Filosófica de Kinshasa) que era uma publicação da Faculdade de Filosofia e Religiões Africanas da Universidade Católica do Congo, também conhecida como Universidade Lovanium.
A referência ao nome de Marcel Ignace Tshiamalenga Ntumbarevela-se como uma preocupação com as vozes mais representativas da Escola de Kinshasa. Trata-se de uma das suas figuras tutelares. Com ele Hountondji travou muitos debates. Aliás, mencionou-o a propósito do relativismo linguístico como pressuposto legitimador da filosofia africana defendido por Tshiamalenga e para o qual Hountondji nunca tinha prestado atenção.
Conclusão
No contexto da África Ocidental, a Escola Filosófica de Cotonou/Porto Novo, por razões que parecem óbvias, desde logo se tivermos em atenção o peso demográfico, desenvolve-se em condições que não põem em causa a proeminência que se reconhece às comunidades, publicações e instituições do ensino da filosofia de países como o Ghana e a Nigéria, por exemplo. A comparação é também um método útil à história da filosofia. Por isso, o conjunto de indicadores que sustentam os critérios com os quais classificamos as escolas filosóficas parecem solicitar desdobramentos de carácter interpretativo. Ocorre uma pergunta. Com que critério se articula o referido peso demográfico? Certamente, serão o 3), 4) e 5). O primeiro tem a ver com a institucionalização do ensino da filosofia e seu reconhecimento pelo Estado. O segundo diz respeito aos processos de reprodução dos dogmas filosóficos das figuras tutelares, implicando isso a existência de várias comunidades, população de oponentes e discípulos. O terceiro concretiza-se através da existência de população de propoentes que cultivam práticas particulares do fazer filosófico ou filosofar.
Chegados aqui, fica a promessa de voltarmos à conversa na próxima semana com a perspectiva de considerarmos a comparação como método que pode inspirar a exploração dos subsídios que provêm da geopolítica do conhecimento.
* Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 28 de Janeiro de 2024, aqui republicado com a autorização do autor.
**Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]
Publicado originalmente em 21/01/2024 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/escolas-filosoficas-africanas-iv/