Luís Kandjimbo |*
Podemos hoje, sem hesitações, falar de uma historiografia da filosofia africana. Se nos meios académicos os modelos ocidentais ainda exercem uma poderosa influência, a verdade é que a gramática das civilizações africanas solicita a construção de outros modelos. Uma leitura do que se escreve sobre os modelos ocidentais desencadeia suspeitas e legítimas acções de vigilância para os Africanos. É o caso de modelos propostos por alguns autores europeus, tais como Marcel Gueroult (1891-1996), “Dianoematique. Histoire de l’histoire de la philosophie” (Dianoemática. História da História da Filosofia), (3 vols.; 1984-88);Giovanni Santinello(1922-2003), “Storiadellestoriegeneralidella filosofia” (História da História da Filosofia), (1979 ) e Lucien Braun (1923-2020),“Histoire de l’histoire de la philosophie”, (História da História da Filosofia), (1973).
Homenagem a Stanislas Adotevi
Não é apenas pelo facto de a história do presente ser tão importante quanto a do passado que presto mais uma homenagem a um filósofo falecido. Trata-se da morte de uma das mais representativas vozes das filosofias africanas, dias depois do falecimento de um outro vulto seu compatriota, Paulin Hountondji (1942-2024).No passado dia 7 de Fevereiro faleceu em Ouagadougou Stanislas Adotevi (1934-2024), uma figura tutelarque tem um lugar cativo nos grandes debates filosóficos africanos do século XX. É o autor do livro “Négritudeet Négrologues” (Negritude e Negrólogos), publicado em 1972, que constituiu um marco importante na vida intelectual do nosso continente. Foi nessa década que foram igualmente lançadas as bases de uma Filosofia da Literatura em África. As críticas de Adotevi, contra a defesa da negritude de Léopold Senghor (1906-2001), demonstraram isso.
Modelos de história da filosofia africana
Ao passarmos em revista as narrativas ou sínteses da história da filosofia africana, percebemos que há uma longa duração que não se esgota no tempo consumido com os debates que caracterizaram o período contemporâneo. Estou a referir-me às obras que revelam algum pendor de sistematização de que são autores, por exemplo, Théophile Obenga, Alfonse J. Smet (1925-2015),Yporeka Somet, Barry Hallen, Dismas Masolo, Gregoire Biyogo, Hubert Mono Ndjana (1946-2023), Nsame Mbongo e V.Y. Mudimbe. De igual modo, as antologias publicadas por Coeetze e Roux, Tsenay Serequeberhan, Emmanuel C. Eze (1963-2007) e Innocent Onyewuenyi. Estes autores apresentam diferentes propostas de discursividade histórica que, consequentemente, inspiram abordagens historiográficas específicas. Não se trata apenas de reproduzir a fórmula quadripartida de que fala Gueroult Marcial. Isto é, adoptar os modelos ocidentais baseados em quatro pilares: 1) a doxografia; 2) a história das seitas ou comunidades de filósofos; 3) as biografias, catálogosou tabelas; 4) a sucessão de escolas.
Tópicos da filosofia comparada
Numa perspectiva da filosofia comparada, nenhuma das quatro categorias serviriam as iniciativas historiográficas africanas, sem que para tal a história viesse em seu socorro. A problemática da periodização, a historiografia fundada na abordagem histórico-temática bem como o debate acerca da importância de figuras filosóficas históricas ou a historiografia de histórias das filosofias africanas, centrada na selecção das diferentes comunidades históricas, são alguns dos tópicos que mobilizam as reflexões neste domínio.
A este propósito, importa recordar que a questão da periodização é uma das mais controversas.Levanta-se o problema de saber se existe uma periodização histórica significativa da filosofia africana para lá das experiências filosóficas africanas coloniais e após as independências políticas. Ou ainda, procura-se justificar a referência ao período da tradição oral e da história não suportada por documentos escritos como o início da história da filosofia africana. Por outro lado, há a histórica precedência da civilização egípcia.Em suma, discutem-se questões atinentes a uma filosofia africana que deve ter a sua própria periodização. Voltaremos aos tópicos nas próximas conversas, porque agora interessa-nos tratar do filosofar, dos temas e das figuras tutelares.
Testemunho de Mudimbe
Há um filósofo africano contemporâneo, antigo monge beneditino e filho da R.D. Congo, que em diversas ocasiões prestou relevantes contributos para a narrativa histórica da filosofia.Em 1966, V.Y. Mudimbe era estudante da Universidade Louvanium de Kinshasa. Em finais da década, encontrava-se na Europa, entre a Bélgica e França. Após a formação doutoral regressou aos corredores do pólo de Lubumbashi da Universidade Nacional do Zaire.Em 1983, antecipava-se ao que, anos depois, ficaria plasmado em alguns dos seus mais importantes livros autobiográficos. É o caso de “Parablesand Fables. Exegesis, Textualityand Politics in Central Africa” (Parábolas e Fábulas. Exegese, Textualidade e Política na África Central), 1991, e “Tales of Faith: Religion as Political Performance in Central Africa: Jordan Lectures”, (Contos de Fé: Religião como Desempenho Político na África Central), 1993, publicado em1997.
No seu artigo seminal “African Philosophy as an Ideological Practice: The Case of French-Speaking Africa” (A Filosofia Africana como Prática Ideológica: O Caso da África Francófona), publicado na revista “African Studies Review”, V. Y. Mudimbe prestou um relevante testemunho. Partindo do conhecimento que detinha do repertório das obras de filosofia africana,numa paisagem cronológica de três décadas, entre 1950-1980, chamava a atenção para “o grande número de livros de ‘filosofia’ publicados na África Central, principalmente no Zaire”, actual República Democrática do Congo. Ele sublinhava o facto de tal produção bibliográfica ser o resultado da influência dos missionários católicos, durante o período colonial. Por essa razão, refere que, no século XX, os primeiros Africanos a publicar obras de filosofia eram sacerdotes do Rwanda e da R.D. Congo, nomeadamente, Alexis Kagamé (1912-1981), em 1956, André Makarakiza (1919-2004), em 1959, François-Marie Lufuluabo (1926-1998), em 1964, e Vincent Mulago (1924-2012), em 1965. Todos eles eram cultores do que se convencionou denominar por etnofilosofia.
Na sua síntese historiográfica, Mudimbe comenta a proposta do filósofo democrata-congolês François Nkombe Oleko(1946-2014) e do filósofo belga Alfonse J.Smet, (1925-2015), formulada em 1978, num artigo, “Panorama de la Philosophie Africaine Contemporaine”, assinado por ambos e publicado na revista “Recherches Philosophiques Africaines” (Mélanges de Philosophie Africaine). Do meu ponto de vista, a referida proposta é mais interessante do que parece demonstrar a leitura de Mudimbe. Na nossa próxima conversa, dedicaremos uma atenção especial à leitura do nº 3 dessa publicação periódica, tendo em conta a importância dos tópicos aí desenvolvidos para uma melhor compreensão da Escola Filosófica de Kinshasa. Em breves linhas, Nkombe Oleko e Alfonse J. Smet esboçam uma caracterização da filosofia africana contemporânea, analisando-a em duas vertentes: a) estrutura externa; e b) estrutura interna. Trata-se de uma abordagem que é complementada por uma bibliografia selectiva com 80 páginas, num total de 282 páginas que a revista comporta. No que diz respeito à estrutura interna, merece referência imediata a identificação de quatro escolas: 1)a escola da corrente ideológica,é a negação da negação, que se caracteriza pelas reacções às teorias e preconceitos que suportaram o tráfico de escravizados e mais tarde justificaram a colonização; 2) a escola do reconhecimento da filosofia tradicional africana, que defende a investigação de elementos filosóficos, procurando demolir o mito da “mentalidade primitiva” dos Africanos, recorrendo à restauração hermenêutica e coerência das filosofias tradicionais africanas; 3) a escola crítica, que contesta o estatuto filosófico, ataca a etnofilosofia e suscita o problema do uso das línguas africanas na prática filosófica; 4) a escola sintética, que se desenvolve na base de sínteses das tendências opostas, orientando-se para uma hermenêutica filosófica, a busca de novas problemáticas, bem como ensaios bibliográficos e históricos. Estas quatro correntes têm representantes e expressão na prática da Escola Filosófica de Kinshasa.
Escola de Kinshasa e figuras tutelares
No discurso da historiografia filosófica da R.D.Congo,parece consensual o reconhecimento de um determinado elenco de figuras representativas e tutelares da geração que funda a Escola Filosófica de Kinshasa. Todos eles integram os núcleos eclesiásticos católicos e do clero da R. D. Congo. Geralmente, devido à sua maior representatividade, são mencionados os nomes de Alphonse Joseph Smet, Marcel Ignace Tshiamalenga Ntumba (1932-2020) e Théodore Mudiji Malamba Gilombe (1941-2023). Semelhante orientação da perspectiva de V.Y. Mudimbe é adoptada por membros de gerações mais novas de historiadores da filosofia. Tal é o caso de Jean-Serge Massamba-Makoumbou, que defendeu a sua tese de doutoramento em 2018.
Alphonse Joseph Smetera cidadão belga, sacerdote da congregação dos padres passionistas, doutorado em filosofia pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica, 1958. Chegou ao Zaire, actual R.D. Congo, em 1969. Exerceu a docência de 1969 a 1971, foi docente na Universidade Lovanium, Faculdade de Filosofia e Letras. De 1971 a 1974, trabalhou como professor na mesma instituição, depois foi transferido para Lubumbashi com o advento da UNAZA (Universidade Nacional do Zaire). Nessa época, era professor visitante da Faculdade de Teologia Católica de Kinshasa. De 1972 a 1974, assumiu a responsabilidade do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Letras do Campus Universitário de Lubumbashi. Em 1974, deixou o departamento, continuando como professor visitante até 1980. Posteriormente, foi professor no Departamento de Filosofia e Religiões Africanas da Faculdade de Teologia Católica de Kinshasa, de que foi responsável, por três anos. A partir de 1983, tornou-se professor visitante na Faculdade de Teologia Católica de Kinshasa.
O sacerdote congolês Ignace Marcel Tshiamalenga Ntumba é a segunda figura tutelar da Escola Filosófica de Kinshasa. Representa um dos seus mais robustos pilares. Era detentor de dois doutoramentos, um em Filosofia e outro em Teologia.Obteve o doutoramento em Teologia na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, em 1963. Já o doutoramento em Filosofia foi obtido na Universidade de Frankfurt, na Alemanha, em 1980. Abraçou a docência universitária a partir de 1971, tendo sido professor de filosofia na Universidade de Kinshasa. Além disso, dirigiu por vários anos o Departamento de Filosofia das Faculdades Católicas de Kinshasa. Foi professor visitante em diferentes instituições alemãs, designadamente, na Universidade de Witten- Herdecke, de 1987 a 1990,na Universidade de Oldenburg e na Academia Católica de Stafelfels, de 1992 a 1993. De 1973 a 1993, fez parte do Comité Director da Federação Internacional de Sociedades Filosóficas.
A terceira figura tutelar da Escola de Kinshasa é ofilósofo Théodore Mudiji Malamba Gilombe. Fez os seus estudos de Filosofia e Teologia na Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma. Licenciado em Arqueologia e História deArte em 1979, doutorou-se em Filosofia com uma tese consagrada às artes: “Formas e Funções Simbólicas das Máscaras Mbuya dos Phende. Ensaio de Iconologia e Hermenêutica”, em 1981. Por impulso da reflexão desenvolvida com o tema da tese de doutoramentoespecializou-se emFilosofia da Arte, Filosofia Moderna, Metafísica, Filosofia da Cultura e da Religião.Théodore Mudijideu consistência a um pensamento sobre a linguagem das máscaras africanas e o trans-simbolismo. Do ponto de vista estritamente académico, Théodore Mudijitinha vínculos com a Universidade Católica do Congo, onde desempenhou vários cargos. Foi Decano da Faculdade de Filosofia, chefe do Departamento de Filosofia e Religiões Africanas, Director do Centro para o Estudo das Religiões Africanas, chefe do Departamento de Agregação do Ensino Superior, gestor de projectos da Faculdade de Comunicação Social e secretário administrativo da Faculdade de Teologia Católica de Kinshasa.
Novas gerações de filósofos
Se a primeira geração de filósofos da R.D.Congo surge no período colonial, é pacífico reconhecer que as restantes adquirem a sua identidade no período que se segue à independência em 1960. Portanto, a primeira geração é a dos professores. Os discípulos são produtos da semente lançada pelas figuras tutelares. Os membros das gerações seguintes já não serão exclusivamente integrantes das elites de clérigos congoleses. Entre tantos outros, importa destacar-se alguns deles cuja obra e actividade académica lhes dá notoriedade. São eles: Benoit Okolo-Okonda (n.1947), Crispin Ngwey Ngond’ a Ndenge (1939-2015)e Jean Kinyongo Jeki (n.1936).
Benoit Okolo-Okonda,que foi professor de filosofia na Universidade Católica do Congo e na Universidade Santo Agostinho, evidencia-se pelo seu profundo compromisso com os paradigmas hermenêuticos, quando tematiza a tradição africana. Submete à crítica os modelos defilósofos europeus com Martin Heidegger (1889-1978), Hans-Georg Gadamer (1900-2002) e Paul Ricoeur (1913-2005). Realizou estudos nos domínios da Filosofia, Teologia, Línguas e Literatura Africanas. Doutorado em Filosofia pela Universidade de Lubumbashi, obteve o pós-doutoramento em Filosofia na Alemanha, onde trabalhou com o filósofo alemão Hans-Georg Gadamer.
Crispin Ngwey Ngond’a Ndengefoi decano da Faculdade de Filosofia das Faculdades Católicas de Kinshasa. Além da conceptualização da especificidade africana, considerava o “mimetismo existencial e a exaltação inconsistente da africanidade como diferença” e constituíam armadilhas com que se devia ter muito cuidado.
Jean Kinyongo Jeki foi igualmente decano da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Nacional do Zairee chefe do Departamento de Filosofia da Universidade de Lubumbashi. Doutor em Filosofia e em Teologia, é professor emérito da Universidade de Kinshasa. Teórico da discursividade, é um daqueles apologistas de uma filosofia africana comprometida com os “problemas, preocupações, ansiedades, alegrias e vitórias do nosso povo”. Por isso, questionava a pertinência do simbolismo europeu da coruja de Minerva para os filósofos Africanos. No contexto africano, a imagem da coruja como símbolo da nossa filosofia é reveladora do espectro do azar que paira sobre uma casa.
Conclusão
Com a proposta de conversa que traremos na próxima semana, concluiremos a breve síntese sobre o conceito de escolas filosóficas em África. Apesar de não termos tido a pretensão de esgotar o tema neste exíguo espaço, quanto a nós, é possível compreender a urgente necessidade de ensaios bibliográficos e historiográficos. Portanto, ilustraremos essa conclusão, passando em revista o esquema temático da revista “Recherches Philosophiques Africaines” (Mélanges de Philosophie Africaine) cujo editor era, na época, o filósofo belga Alfonse J. Smet, que desempenhava as funções de chefe de Departamento de Filosofia e Religiões Africanas da Faculdade de Teologia Católica de Kinshasa.
* Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 11 de Fevereiro de 2024, aqui republicado com a autorização do autor.
**Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]
Publicado originalmente em 21/01/2024 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/escolas-filosoficas-africanas-vi/