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Escolas filosóficas africanas -VII

Luís Kandjimbo |*

Escritor

As escolas filosóficas comportam gerações e cada geração revela-se por intermédio de um restrito núcleo de distintos membros, especialmente daqueles que sondam outros caminhos para renovar as indagações e os ângulos a partir dos quais pensam acerca do sentido cuja interpretação é suscitada pelos objectos que se multiplicam à nossa volta. O tópico da nossa conversa sugere que voltemos a mencionar os nomes de duas figuras tutelares da Escola Filosófica de Kinshasa, nomeadamente o democrata-congolês Marcel Ignace Tshiamalenga Ntumba (1932-2020) e o belga Alfonse J. Smet, (1925-2015). É que a singularidade desta escola reside na pertinácia com que nos debates sobre as religiões africanas, os filósofos resistem à diluição das fronteiras do seu campo do mesmo modo que os teólogos reivindicam a sua legitimidade. Ao lado daquela está a Escola Teológica de Kinshasa.

Filosofia, religião e teologia

Será necessário contar com os métodos da história da filosofia e, consequentemente, consultar as fontes através das quais se pode chegar ao cerne do pensamento que, em África, é produzido sobre as próprias religiões africanas. Chega-se à conclusão de que não existe qualquer vontade de exercer a hegemonia, negando o pluralismo religioso. Os filósofos e os teólogos Africanos não lutam pela conquista de qualquer tipo de monopólio. Prova disso é que, em 1966/67, já tinha sido criado o Centro de Estudo das Religiões Africanas (CERA) na Faculdade de Teologia Católica de Kinshasa. A este respeito, como vimos, o quadro de organização do ensino universitário da Filosofia e da Teologia,e não só bem como as publicações que veiculavam os trabalhos resultantes de pesquisas, não deixam apreender dúvidas. Foram as reformas forçadas desencadeadas pelas autoridades políticas no princípio da década de70 do século XX que conduziram à autonomização da Faculdade de Teologia e da  Faculdade de Filosofia. Por isso, surgiu o Departamento de Filosofia na Faculdade de Teologia de Kinshasa, desdobrando-se seguidamente em Departamento de Filosofia e Religiões Africanas. Importa proceder à leitura do que se pensa e se escreve. Da “Revista Filosófica de Kinshasa” temos informações suficientes, por um lado. Por outro,  não nos debruçaremos sobre a “Revista de Teologia Africana”. Desta vez, seleccionou duas publicações: o já referido nº 3 da revista “Recherches Philosophiques Africaines”, (Investigações Filosóficas Africanas), 1978; e uma edição comemorativa do décimo primeiro aniversário do CERA, 1979, que, desde a sua criação, publicava semestralmente os “Cahiers des Religions Africaines”,(Cadernos de Religiões Africanas).Na verdade, a religião é a epistémica região de intersecção da filosofia e da teologia, mantendo cada campo a sua autonomia.

 
Filosofia, serva da teologia?

Esse número dos “Cadernos de Religiões Africanas” reúne as comunicações apresentadas ao Colóquio Internacional de Kinshasa, que decorreu de 9 a 14 de Janeiro de 1978.Um dos textos publicados, que suscita interesse imediato, “Elements Fondamentaux de la Religion Africaine” (Elementos Fundamentais da Religião Africana), é assinado pelo filósofo e teólogo democrata-congolês Vincent Mulago (1924-2012), então professor da Faculdade de  Teologia Católica de Kinshasa e Director do CERA. A religião tradicional africana é definida por Mulago com base em quatro elementos fundamentais: 1) A unidade de vida e de participação; 2) A crença no acréscimo, decréscimo e interacção dos seres; 3) O símbolo como meio principal do contacto e união; 4) Uma ética que emana da ontologia. Nesta definição, Mulago enuncia já as linhas de um pensamento que não se compromete com o sentido do brocardo em latim “philosophia ancilla theologiae”, segundo a qual a filosofia  é apenas uma serva da teologia.

A uma distância de quatro décadas, V.Y. Mudimbe atribuía méritos aos Mais-Velhos do Rwanda e da R.D. Congo, os primeiros Africanos que publicaram obras filosóficas, nomeadamente, Alexis Kagamé (1912-1981), em 1956, André Makarakiza (1919-2004), em 1959, François-Marie Lufuluabo (1926-1998), em 1964, e Vincent Mulago (1924-2012), em 1965. Ao mesmo tempo, observava a negligência que se traduzia em crise, enquanto especialista de história das ideias, interrogando-se sobre as condições de possibilidade que inspiravam a fundamentação de ontologias regionais em África. A crise derivava da dependência das actividades reflexivas relativamente às exigências externas do ensino, especialmente à influência das pontifícias instituições romanas de ensino superior. Por isso, recorria à metáfora usada pelo francês Claude Digeon (1920-2008): a crise alemã da crise do pensamento francês. Ora, o diálogo que, em Kinshasa, as escolas de filosofia e de teologia estabelecem, configura um exemplo da resistência à crise. Portanto, a filosofia não é apenas uma serva da teologia.

 
Diálogo filosófico-teológico de Kinshasa

Nos países africanos de língua inglesa, as manifestações da recusa perante os ditames que emanam da expressão latina “philosophia ancilla theologiae” encontram a sua figura representativa no teólogo e filósofo da religião, o queniano John Mbiti (1931-2019) cujas obras têm uma assinalável importância neste capítulo: “African Religions and Philosophy”, (Religiões Africanas e Filosofia), 1969, e “Introduction to African Religions” (Introdução ao Estudos das Religiões Africanas),1975.

Em países africanos influenciados pela igreja de Roma, a crise tem outros sintomas. A leitura dos “Cadernos de Religiões Africanas” permite concluir isso mesmo. Por ocasião do colóquio internacional do CERA, o bispo auxiliar de Kinshasa era o Reitor da Universidade Nacional do Zaire. Ao mesmo tempo, exercia a docência como professor da Faculdade de Teologia Católica de Kinshasa e dirigia a “Revista de Teologia Africana”. Ele reiterava o tom do debate dominante, na comunicação que apresentou: “L’Afrique Noire et le Christianisme” (A África Negra e o Cristiaismo). Estamos a falar do eminente teólogo democrata-congolês Tharcisse Tshishiku Tshibangu (1933-2021). Na sua breve alusão ao processo de formação do “pensamento teológico africano”, a filosofia não é um saber serviçal da teologia. Demonstra-o quando refere como balizas as conclusões do II Congresso de Escritores e Artistas Negros, realizado na cidade de Roma, em 1959. Tinham sido aprovados dois documentos: 1) Resolução da Subcomissão de Filosofia; 2)Resolução da Subcomissão de Teologia. Estavam definidos os papeis dos filósofos e dos teólogos, sendo a religião o seu objecto epistémico comum.

 
Centros filosóficos

A qualidade das reflexões produzidas e publicadas em Kinshasa pode, igualmente ser avaliada através da leitura dos exemplares da revista “Investigações Filosóficas Africanas”. Na última frase do seu editorial, Alfonse J. Smet, que era o chefe do Departamento de Filosofia e Religiões Africanas, em síntese, refere-se ao que representava o conjunto de trabalhos submetidos ao escrutínio dos leitores. Escrevia o seguinte: “Estas pesquisas filosóficas africanas reflectem as posições dos cinco centros filosóficos do Zaire”. Parece ser uma referência a Kinshasa, Kimwenza, Kisangani, Lubumbashi e Mayidi. Em seguida, temos breves anotações de três deles.

Apesar de não ter a história de outros centros de formação em filosofia, Kimwenza é, hoje, um topónimo reconhecido, enquanto sede de uma instituição de ensino da Companhia de Jesus na África Central. Em 1954, foi aí erguido o escolasticado de Saint Pierre Canisius. É actualmente um campus da Universidade Loyola do Congo. Em Kinshasa, existe a Faculdade de Filosofia de Saint Pierre Canisius, desde 1992. A sua revista, “La Raison Ardent”, (A Razão Ardente), foi criada em 1975, quando era apenas Instituto de Filosofia. O malogrado filósofo nigeriano-americano Emmanuel Chukwudi Eze (1963-2007),fez os seus estudos no Colégio Saint Pierre Canisius de Kimwenza e posteriormente em Kinshasa.

Tal como temos vindo a sublinhar, Lubumbashi foi um pólo importante na história do pensamento filosófico da R.D. Congo. Para tal, contribuíram vários dispositivos institucionais, o Departamento de Filosofia, as suas duas revistas, “Cahiers Philosophiques Africains” (Cadernos Filosóficos Africanos) e “Archives de Philosophie Africaine” (Arquivos de Filosofia Africana), o Centro de Estudos e Investigação em Filosofia Africana localizado em Lubumbashi, além de eventos, jornadas filosóficas, seminários e conferências.

Outro pólo situava-se em Kisangani, antiga cidade colonial de Stanleyville, onde, em 1963, se desenvolveu o núcleo do ensino universitário protestante, que daria lugar à Universidade Livredo Congo. Acabou por ser transferida para Kinshasa, tendo sido integradana Universidade Católica de Lovanium, de 1964 a 1966. Retomou a sua actividade em 1967. Durante o último ano de existência (1970-1971), contava já com sete faculdades: Teologia, Filosofia e Letras, Psicopedagogia, Economia, Ciências, Agronomia e Medicina. Entretanto, a sua extinção foi consequência da criação da Universidade Nacional do Zaire em 1971, quando se procedeu à fusão das três universidades, Kisangani, Lovanium (Kinshasa) e Lubumbashi.

 
Temas e problemas

Situemos a leitura da edição nº 3 da revista “Investigações Filosóficas Africanas” da Faculdade de Teologia Católica de Kinshasa, no contexto da década de 70 do século XX (1978). A síntese do editor não deixa de ter interesse. Mas, quanto a mim, vale dedicar algum tempo aos seguintes textos: Elungu Pene Elungu(1936-2015), “La Philosophie Africaine Hier et Aujourd’hui” (A Filosofia Africana Ontem e Hoje); J.M.Van Parys (1929-2019), “Philosophie en Afrique. Analyse du Séminaire sur la Philosophie Africaine d’Addis Abeba (1-3 décembre 1976)”, (A Filosofia em África. Análise do Seminário sobre a Filosofia Africana, Addis Abeba, 1976); Mbambi Monga Oliga, “L’Approche Herméneutique de la Philosophie Africaine. Une Lecture Critique” (A abordagem Hermenêutica da Filosofia Africana. Uma Leitura Crítica); Ngoma-Binda, La Récusation de la Philosophie par la Société Africaine” (A Rejeição da Filosofia pela Sociedade Africana); Nkombe Oleko (1946-2014) e A.J.Smet, “Panorama de la Philosophie Africaine Contemporaine” (Panorama da Filosofia Africana Contemporânea).

Todos eles tematizam o problema do momento, inscrevendo-se no âmbito do “grande debate”. Procuravam-se respostas ao espectro dos cepticismos dos chamados “filósofos profissionais” ou “universalistas” que negavam a existência de uma Filosofia Africana.

O artigo de Elungu Pene Elungu, bem como o que é subscrito por Nkombe Oleko e A.J. Smet, solicita a máxima atenção dos leitores, na medida em que procura interpretar a polifonia de vozes e a multiplicidades de correntes filosóficas africanas. Mas a síntese dos debates do “Seminário sobre Filosofia Africana” de Addis Abeba e a bibliografia de A.J.Smet iluminam a pergunta que formulo: Em conclusão, haverá uma outra singularidade desta escola, além da pertinácia com que se resiste à diluição das fronteiras do campo filosófico, perante a vitalidade das religiões africanas?

Parece haver um traço distintivo  resultante de uma discursividade individual. Identifico cinco entradas na lista bibliográfica que se reportam a textos publicados por Tshiamalenga Ntumba. Verifica-se uma recorrência temática nos seus títulos. Trata-se de um tópico transversal na sua obra:o problema das línguas nas filosofias africanas. Pode dizer-se que o princípio do relativismo linguístico é expressamente formulado por um dos membros da Escola Filosófica de Kinshasa. Em 1977, Tshiamalenga Ntumba antecipa-se a Kwasi Wiredu (1931-2022). Este só em 1980, durante o colóquio realizado em Nairobi, convocava os filósofos Africanos para o uso das línguas africanas, em prol da descolonização conceptual da filosofia.

 
Relativismo Linguístico

Tshiamalenga Ntumba é um daqueles filósofos que sondam outros caminhos para renovar as indagações e os ângulos a partir dos quais pensam acerca do sentido dos objectos que se multiplicam no mundo à sua volta. Foi em 1980 que ele obteve o seu doutoramento na Universidade J.W. Goethe, em Frankfurt, defendendo uma tese que reforçava a sua autoridade, quando se fala do tema. O título é expressivo: “Pensamento e Linguagem. Uma Contribuição acerca do ‘Princípio do Relativismo Linguístico’ com o Exemplo de uma Língua Bantu (Ciluba)”. Tshiamalenga Ntumba retoma a sua tematização, por ocasião do Colóquio sobre Migrações, Expansão e Identidade Cultural dos Povos Bantu, realizado pelo Centro Internacional de Civilizações Bantu (CICIBA), na cidade de Libreville, em Abril de 1985. Eis a enunciação do que propôs ao debate: “Philosopher en et à partir des Langues et Problématisations Africaines. Les Leçons de la Révolution Linguistique et Pragmatique” (Filosofar nas e a partir das Línguas e Problematizações Africanas. Lições da Revolução Linguística e Pragmática).

 
Conclusão

Portanto, a fecundidade da Escola Filosófica de Kinshasa revela-se em diversas perspectivas cuja abordagem histórica permite. Compreende-se assim, que os períodos e às gerações se sucedem. Por essa razão, há narrativas construídas por acções de distintas personalidades e respectivas obras. Geralmente, tais obras tomam a forma de textos, justificando-se assim que a história da filosofia consista em conhecer as ideias formuladas, os problemas que as solicitam, as discussões que suscitam, bem como o comportamento dos sujeitos que se comportam como proponentes, por um lado, e os sujeitos que se apresentam como oponentes. A necessidade urgente do ensino da história da filosofia africana é-nos dada, por exemplo, pelo comportamento do distinto filósofo beninense recentemente falecido, Paulin Hountondji (1942-2024). De oponente, integrante do escola de filósofos da corrente crítica da etnofilosofia e do valor heurístico que as línguas africanas podiam ter, tornar-se-ia corifeu da filosofia dos saberes endógenos, uma corrente que se desenvolveu nos últimos vinte anos e que tem o seu centro de difusão em Cotonou e Porto Novo. No contexto africano, tal discernimento afigura-se mais robusto, se estiver numa base que lhe pode ser fornecida pela História da Filosofia. Existindo alguma tradição de narração histórica da actividade filosófica, será necessário cultivar a prática historiográfica que é absolutamente fundamental.


* Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 18 de Fevereiro de 2024, aqui republicado com a autorização do autor.


**Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 21/01/2024 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/escolas-filosoficas-africanas-vii/

Marcos Carvalho Lopes

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