Luís Kandjimbo |*
Ao concluir a conversa anterior, sublinhei o facto de ser necessário reflectir sobre a racionalidade ontológica dos escritores e intelectuais que foram sendo citados. O nome do ensaísta cabo-verdiano, Gabriel Mariano (1928-2002), mereceu referência particular, devido à estratégia argumentativa que adopta ao sustentar a sua crítica ao luso-tropicalismo de Gilberto Freyre. Na presente conversa, iniciamos apenas essa reflexão sobre o discurso ontológico, pois, voltaremos ao tópico.
Portugalidade, luso-tropicalismo e lusofonia
Quando na década de 50 do século XX, a teoria do luso-tropicalismo se tornou alvo do ataque de intelectuais Angolanos, Cabo-verdianos e Moçambicanos, progredia em Portugal a onda de “defesa da portugalidade”. O seu principal arauto era Alfredo Pimenta (1882-1950) que, em 1947, se orgulhava de ser um “doutrinador da portugalidade”. Não se confundia, nem com a latinidade, nem com a lusitanidade e muito menos com a hispanidade porque tais identidades abastardavam os portugueses. Os portugueses mais exaltados com o sonho imperial do “Portugal do Minho a Timor”, recuperam a retórica de António Pimenta com o uso recorrente para fazer frente à vaga da luta armada iniciada em Angola. Portanto, é contra essa “portugalidade” colonial que se opunham os anti-lusotropicalistas Africanos.
Durante as últimas décadas do século XX, surgiram sinónimos ou eufemismos da”portugalidade”. Um dos sentidos eufemísticos foi tomado de empréstimo à França. A semântica dos termos “francité”francesidade e “francophonie” francofonia inspira círculos de intelectuais e académicos portugueses. Em França, a “francofonia” é uma unidade lexemática que compreende todas as comunidades nacionais que partilham com o povo francês uma certa herança cultural inscrita na língua francesa. No entanto, exclui a França.
Nasce assim, um novo vocábulo, “lusofonia”, que numa perspectiva monista designa a geografia linguística dos Estados-membros da CPLP, como se as realidades dos países não fossem multilingues. Além disso, no campo académico português tem vindo a ser consagrada a oferta formativa de curso universitário cuja denominação é equívoca. Trata-se da Licenciatura em “Estudos Lusófonos”que é diferente da Licenciatura em “Estudos Portugueses”.
Radical desempatia
Como vimos, o luso-tropicalismo não colhia simpatia das elites políticas e intelectuais emergentes dos territórios coloniais. O escritor e jurista angolano Antero de Abreu (1927-2017), no seu livro “Farrapos da Memória”, relata o teor de uma conversa com o seu amigo Agostinho Neto (1922-1979), a respeito da chamada “democracia racial” brasileira como modelo para o futuro de Angola. Regressado a Angola, em 1959, Agostinho Neto entendia que tal modelo não servia porque o problema era de ordem económico-social.
Alguns anos antes, Amílcar Cabral (1924-1973), engenheiro agrónomo que tinha estado a trabalhar sucessivamente na Guiné-Bissau e Angola, chegara à mesma conclusão, tal como o demonstra a sua epistolografia da década de 50. Em 1968,aotecer comentários sobre a natureza teórica do luso-tropicalismo, no prefácio ao livro de Basil Davidson, “A Libertação da Guiné – Aspectos de uma Revolução Africana”, Amílcar Cabral escrevia: “E assim se foi construindo toda uma mitologia. E, como acontece com tantos mitos, especialmente os que dizem respeito à sujeição e exploração das gentes, não faltaram ‘homens de ciência’, incluindo um sociólogo de nomeada, para lhe garantir uma base teorética – neste caso, o luso-tropicalismo. Confundindo, talvez inconscientemente, certas realidades, que são biológicas ou fatais, com outras realidades, que são socioeconómicas e históricas, Gilberto Freyre (1900-1987), transformou-nos a todos os que vivemos nas províncias-colónias de Portugal em felizes habitantes de um paraíso luso-tropical”.
Angolanidade e Cabo-verdianidade
Em conversa realizada num programa da Televisão Pública de Angola com o autor destas linhas (1999), o ensaísta e poeta angolano Costa Andrade (1936-2009), caracterizou o ambiente que se vivia na Casa dos Estudantes do Império, associação que, em Lisboa, congregava universitários das diferentes colónias de Portugal. Sobre a definição do conceito de angolanidade, dizia Costa Andrade: “Meu caro amigo, essa questão, digamos, essa definição surgiu em circunstâncias, digamos, repentinas quase. Vivia-se um momento de discussão, já nessa altura na Casa dos Estudantes do Império, sobre os rumos da poesia, da nossa poesia, da nossa literatura. E nessa altura, havia, manifestavam-se colonos lá em Portugal com a ideia de se criar um largo,…ali no largo diante da velha alfândega…. Então eles queriam, havia um plano para transformar, isto em 61, aquele largo todo. Fazer dali um largo, construir ali uma estátua qualquer. Seria o largo da portugalidade. Isso apareceu na imprensa portuguesa da época. O largo da portugalidade em Luanda. E eu digo: ‘Não! largo de portugalidade em Luanda? Em Luanda, há que surgir, sim,um largo. E o largo com a forma de um quadrado que abarque o país todo’. Lembro-me perfeitamente desta frase, ‘que abarque o país todo e que se tenha de chamar o largo da angolanidade, não será da portugalidade por muito tempo’. E o Alfredo Margarido (1928-2010):‘Acabas de lançar uma teoria muito maior do que essa palavra’. E, efectivamente, o primeiro ensaio que aparece sobre a angolanidade, o primeiro texto é do Alfredo Margarido. Mas ele teve a honestidade de reconhecer que quem lhe sugeriu o termo fui eu. Eu, mais tarde, escrevi sobre a angolanidade, na altura apenas de forma embrionária e pensei. Mas foi assim que o termo surgiu, assim de repente. Em resposta à portugalidade. O Amândio César (1921-1987) ainda bateu um bocado nessa angolanidade, para bater no texto do Margarido. Nessa altura também criticou porque foi a altura em que surgiu, não o primeiro, mas um dos primeiros contos publicados do Pepetela”.
Dois dos escritores cabo-verdianos que mencionei, Manuel Duarte (1929-1982) e Gabriel Mariano (1928-2002),já tinham revelado um estado de espírito semelhante ao que palpitava em Costa Andrade. No ensaio que escreveu em 1954, Manuel Duarte conta que “um inteligente crítico angolano” teria dito que, em Lisboa, os cabo-verdianos isolavam-se com as suas mornas, os seus bailes e a sua cachupa, dando a entender que não eram Africanos. A observação do crítico angolano deu lugar a uma reflexão acerca do modo como se manifesta a cabo-verdianidade. Por isso, afirmava Manuel Duarte, “… a ideia de que a autêntica cabo-verdianidade se definirá não só por um substracto afectivo, como também por uma atitude racional, decorre logicamente que a mentalidade do ilhéu carece de se intelectualizar e consciencializar ….”
Por sua vez, Gabriel Mariano assumia uma posição perante a ambiguidade do comportamento dos cabo-verdianos, no contexto da profusa exaltação da portugalidade. Num texto publicado em 1958, fazia apologia de uma adequada interpretação da africanidadedos cabo-verdianos. Já no ano seguinte, interrogava-se: “A casa que o português construiu nos trópicos é uma casa onde o negro e o mulato se integram como familiares?”Se a resposta podia ser afirmativa em Cabo-Verde, no entender de Gabriel Mariano o mesmo não parece ser no Brasil, onde “o recurso à cor da pele é algo que se impõe com uma premência inadiável”.
Necessidade ontológica
Sublinhei o facto de haver um vigoroso contradiscurso de cariz ontológico nos textos referidos.Quer dizer que a tematização das identidades históricas e culturais através de fórmulas enunciativas, tais como angolanidade, caboverdianidade e moçambicanidade, correspondem a uma necessidade conceptual.Os referentes para os quais remetem esses conceitos são comunidades humanas. Em virtude de se tratar de entidades que apresentam características muito gerais, faz sentido trazer à conversa as categorias ontológicas. Percebe-se que é a racionalidade discursiva dos membros dessas comunidades, os intelectuais, que tomam a palavra. Ao fazê-lo num contexto de crise, essas categorias ontológicas não evidenciam conotações com quaisquer essências, naturezas intrínsecas. Transmitem um sentido que as associam a quais outras realidades existentes no mundo. De acordo com algumas das melhores teorias respeitantes a categorias ontológicas, o campo semântico das referidas fórmulas enunciativas, angolanidade, cabo-verdianidade e moçambicanidade, é integrado por indivíduos e propriedades cuja diferenciação ou combinação obedece a critérios.
Na senda do anti-essencialismo de Ludwig Wittgenstein (1889-1951), não deixa de ser relevante, conferir importância aos jogos de linguagem e “semelhanças de família”. Donde, o argumento segundo o qual a “essência é expressa pela gramática”. O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein dá bons exemplos do que pode ser o critério e seu modo de uso. No seu “Livro Azul”, a expressão lapidar consiste em sustentar que o critério é sempre um critério para que uma expressão linguística se adeque ao seu objecto. Por isso, as categorias ontológicas revelam-se sempre como resultado de actividades discursivas que não são contingentes.
A esse respeito, as conclusões de Michael Devitt, de que já apresentámos sínteses, são pertinentes, quando identifica o essencialismo histórico, analisando-os em dois tipos: 1) “Totalmente histórico”, segundo o qual as unidades de classificação biológica têm essências que não são intrínsecas, mas totalmente relacionais, particularmente propriedades históricas; 2) “Parcialmente histórico”, segundo o qual as unidades de classificação biológica têm essências que são parcialmente propriedades históricas.
Conclusão
Gostaria de concluir as reflexões propostas, considerando que constituem subsídios para uma filosofia política anti-colonial a que, nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, estão associadas uma história das ideias e uma estética da literatura. Por essa razão, as referidas categorias ontológicas não são meras contingências. É o que faremos no calor da próxima conversa.
*Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 01 de Outubro, aqui republicado com a autorização do autor.
*Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]
Publicado originalmente em 01/10/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/essencialismos-contemporaneos-da-biblioteca-colonial-iii/