Luís Kandjimbo |*
Com uma focagem diferente, os heróis de narrativas constituem o tópico da presente conversa, suportada por subsídios teóricos e filosóficos que resultam dos estudos sobre as literaturas orais africanas. A transversalidade de tais heróis nas literaturas orais africanas representa a razão com a qual se torna defensável a sua tipificação, explorando os sentidos e as referências numa leitura cruzada. Tratando-se de literaturas orais angolanas, trazemos como exemplo, KimalawezuKiaNtumba-Ndala,uma personagem de narrativas da literatura oral angolana, em língua Kimbundu.
Filosofia da literatura negligenciada?
É discutível a ideia defendida pelo filósofo norte-americano Peter Kivy (1934-2017),em “Once-Told Tales: An Essay In LiteraryAesthetics””Contos Antigos: Ensaio de Estética Literária”, segundo a qual, do ponto de vista histórico, a filosofia da literatura de que a estética da literatura faz parte, é das que, no conjunto das filosofias da arte, não foi negligenciada. Semelhante perspectiva vem mais uma vez provar o paroquialismo da filosofia ocidental. No entanto, Peter Kivy entende que, não tendo sido a literatura negligenciada no domínio da filosofia da arte, é-o no da estética.A sua justificação assenta no facto de a literatura ter merecido uma maior atenção dos filósofos do que as artes visuais e a música. Há equívocos na avaliação de Peter Kivy, na medida em que, quer a filosofia da literatura, quer a estética da literatura continuam a ser domínios negligenciados. A negligência assume outros contornos, quando se trata das literaturas e artes africanas.
A história da teoria da literatura no século XX fornece elementos que demonstram a rejeição da filosofia. Autores como os filósofos e críticos literários Peter Lamarque e TerryEagleton, britânicos,bem como o norueguês SteinHaugomOlsen,dedicaram muita atenção às manifestações desse fenómeno.Todos eles consideram que na Inglaterra, por exemplo, a génese da crítica literária pela sua vocação prática revelou-se anti-teórica e anti-filosófica. Por outro lado, a teoria da literatura que viria a ser um “novo género” de crítica literária, também era anti-filosófica, apesar de não ser anti-teórica. O filósofo norte-americano Richard Rorty(1931-2007)dizia que “na Inglaterra e na América a filosofia já tinha sido substituída pela crítica literária na sua principal função cultural”.Pode dizer-se que as correntes críticas e teóricas ocidentais do século XX exprimem o desenvolvimento de uma dupla marginalização da filosofia da literatura: 1) o reducionismo formal da apreciação e interpretação da obra literária; 2)a exclusão do sentido e da moral como dimensões da apreciação estética. Donde, a consagração de uma prática anti-filosófica dos estudos literários e a valorização da dimensão moral da literatura e, consequentemente, da ética da literatura, Filosofia, crítica e teorias das literaturas orais.
Entretanto, a história africana contemporânea da filosofia, da teoria e da crítica das literaturas africanas revela tendências contrárias. Facilmente se conclui que a teoria e a crítica das literaturas africanas desenvolveram-se sob os auspíciosde uma nova legitimidade, apesar das trocas assimétricas com o Ocidente e dos empréstimos que dele foram tomados.
A este propósito, a obra do professor nigeriano Isidore Okpewho (1941-2016) é um marco particularmente importante da filosofia, da crítica e da teoria das literaturas orais africanas. Na antologia de crítica e teoria das literaturas africanas, publicada em 2007,TejumolaOlanyan (1959-2019) e Ato Quayson inseriram uma secção que reúne alguns textos sobre literatura oral, a sua relação com os dispositivos da escrita e as línguas europeias. Um dos textos antológicos é um excerto do livro de Okpewho”African Oral Literature.Backgounds, Character, andContinuity”, Literatura Oral Africana. Antecedentes, Características e Continuidade, livro publicado em 1992.Da sua bibliografia, há mais dois títulos importantes a que nos referiremos mais adiante. Mas o elenco de autores e referências da filosofia, da crítica e da teoria das literaturas orais africanas não conta apenas com autores de origem africana. A lista inclui nomes com outras nacionalidades. Para o que interessa ao nosso tópico de conversa, a ontologia de KimalawezuKiaNtumba-Ndala Samba, uma personagem de narrativas orais em língua kimbundu, mencionamos igualmente os angolanos Joaquim Dias Cordeiro da Matta (1857-1894), António de Assis Júnior (1878-1960) e Óscar Ribas (1909-2004) e o linguista e missionário suíço Héli Chatelain (1859-1908).
Literatura oral ou folclore?
Esse paroquialismo da filosofia ocidental que conduz à prática anti-filosófica é perceptível, por exemplo, na conceptualização da literatura oral. Na filosofia da literatura de que fala Peter Kivy opera-se com um conceito evolucionista usado pela antropóloga inglesa Ruth Finnegan (n.1933). Com ele se distingue “literatura oral” de “folclore”, podendo designar igualmente a “tradição oral” que se caracteriza pelo facto de ser um dispositivo de comunicação de pessoas não alfabetizadas, de populações supostamente “subdesenvolvidas e primitivas”.
Por isso, no seu “Oral Literature in Africa”,Ruth Finnegan faz eco desse pensamento, quando discute o problema do género épico em África. Desde logo, afirma que é frequentemente considerado como sendo a forma poética típica de povos e comunidades ágrafas.
Surpreendentemente, a excepção ocorria apenas relativamente à arte verbal africana, em virtude de ter concluído que tais formas não existiam em África. Ruth Finnegan sentenciava: “Em suma, a poesia épica não parece ser uma forma africana típica”.Na mesma linha estava o tradutor holandês e especialista da língua Swahili, Jan Knappert (1927-2005) que considerava acidental o facto de haver textos épicos em territórios do continente africano, no artigo “A Epopeia em África”, publicado em 1967 na revista “Journal of the Folklore Institute”.
Assim, folclore e literatura oral eram noções usadas pelos antropólogos e historiadores de arte para referir as formas da arte verbal de outros povos com a convicção de que o género épico não podia existir no continente africano. No dizer de Isidore Okpewho,a antropologia ocidental ignorou, durante muito tempo, a categorização destas expressões de arte. Era dada preferência aos dogmas do exotismo, afastando quaisquer abordagens dos princípios estéticos.
Épico: significado e categorias
Alguns anos antes da sua morte, Isidore Okpewho tinha reconhecido o défice do trabalho que vinha desenvolvendo. Por influência de autores europeus e americanos, tinha andado a estudar os aspectos técnicos do conto, tais como a estrutura, a arte e a performance ou dimensão teatral. O significado ocupava um lugar marginal. Por isso, modificando a sua focagem, procurou responder igualmente à pergunta sobre o facto de a experiência estética, em África, suscitar teorias que convocam conexões com a acçãocolectiva, isto é, fazendo apelo ao sentido e à moral.
Ao reorientar a sua atenção para o significado do texto, Okpewho passou a evidenciar a dimensão semântica da narrativa e dos heróis épicos, no seu livro “TheEpic in Africa”. O Género Épico em África, (1979). O género “épico oral”é definido como narrativa de acontecimentos fantásticos cujos agentes são pessoas dotadas de poderes sobre-humanos e que operam em contextos humanos incomuns.O crítico e filósofo nigeriano aprofunda a sua perspectiva narratológica em “Blood on the Tides. TheOzidi Saga and Oral EpicNarratology”, Sangue nas Marés. A Saga Ozidi e a Narratologia Épica Oral, 2014.Trata-se de uma história sobre a luta e a guerra em sociedades onde há conflitos entre rivais que disputam o poder, como teatro em que se testa o ideal heróico. A luta e a guerra acontecem dentro ou fora de um sistema social ou unidade política. Tal como Abiola Irele, as manifestações do texto literário oral para Okpewho constituíam igualmente um momento da intencionalidade colectiva, por conseguinte, com dignidade para ser um problema da ontologia social da literatura.
No longo capítulo do seu livro, “TheEpic in Africa” O Género Épico em África,em que tematiza a identidade do herói, sua imagem e relevância, Isidore Okpewho recusava-se a definir as epopeias africanas com base em comparações com os géneros literários europeus. Entendia que tinha chegado o momento de mudança, revelando-se necessário recorrer a uma definição que tivesse em conta as realidades culturais das sociedades africanas. Por isso, entre as propriedade que caracteriza a existência do género épico africano destacam-se as que dizem respeito ao herói: a) a sua condição sobrenatural; b) a supremacia dos seus poderes divinos; c) as profissões nobres (caçador, ferreiro, guerreiro) que o tipificam; d) a virtude da excelência como característica do seu heroísmo.
Crença no sobrenatural
Num artigo publicado na revista “Journal of Black Studies”, em 2009, “Heroism and the Supernatural in theAfricanEpic: Toward a Critical Analysis”,O Heroísmo e oSobrenatural na Epopeia Africana: Para uma análise crítica, que daria origem ao seu livro com o mesmo título,”Heroism and the Supernatural in the African Epic”, (2010), a professora da Universidade de Michigan Ocidental, Mariam Konate Deme,faz uma síntese das correntes teóricas, tendo como base o critério da tematização do sobrenatural na epopeia africana. Identifica duas escolas de pensamento. Em primeiro lugar, os estudiosos que defendem a existência da epopeia em África, tendo como traço distintivo o “padrão do herói”. Em segundo lugar, os negadores da existência do género épico africano.
Da primeira escola, fazem parte IsidoreOkpewho; Joseph Campbell (1904-1987), “TheHero with a ThousandFaces”O Herói de Mil Faces, (1949);FitzRoy Richard SomersetRaglan (1885-1964), “TheHero: A Study in Tradition, Myth, andDrama” Herói: Estudo da Tradição, Mito e Drama,(1936); Otto Rank (1884-1939), “In Quest of the Hero” Em Busca do Herói, (1990).
Exceptuando Isidore Okpewho, a maior parte desses autores não possui conhecimentos profundos das crenças subjacentes à identidade dos heróis épicos africanos. A segunda escola é integrada porC. M. Bowra (1898-1971), “Heroicpoetry”, Poesia heróica(1964); RuthFinnegan; Paul Zumthor (1915-1995), “Introduction to Oral Poetry” Introdução à Poesia Oral,(1983), nega qualquer noção de épico na literatura oral africana.
No essencial, MariamKonate Deme debruça-se sobre a função do sobrenatural nas epopeias africanas. À luz das propostas apresentadas por Isidore Okpewho e outros autores, Konate Deme explora o lugar que o sobrenatural ocupa e as suas características na tradição espiritual em África:1) acrença no sobrenatural confere ao género épico africano uma identidadeheróica única; 2) a utilização do sobrenatural como meio de revelar a fraqueza original do homem, ainda hoje é parte do sistema de crenças das sociedades africanas, representando a consciência que o herói possui sobre suas próprias fraquezas como ser humano e, ao mesmo tempo,a vontade de as ultrapassar; 3) o significado do sobrenatural adquire consistência se se tiver em conta a visão de mundo dominante na sociedade em que a epopeia é produzida; 4) o sobrenatural constitui uma parte da estrutura dramática da epopeia; 5) o sobrenatural nas epopeias orais africanas está em linha de conformidade com as crenças que se fundam na natureza divina da realeza e das chamadas autoridades tradicionais.
KimalawezuKiaNtumba-Ndala: um herói épico?
Parece oportuno formular a pergunta em epígrafe e, consequentemente, empreender esforços para a obtenção de respostas.KimalawezuKiaNtumba-Ndalaé uma personagem de narrativas da literatura oral angolana, em língua Kimbundu. A sua frequência em textos de contos épicos transcritos e traduzidos em língua inglesa e em língua portuguesa permite identificar o ciclo de KimalawezuKiaNtumba-Ndala e correspondentes mundos possíveis. No imaginário angolano, é o herói que nasce sob o signo de um acontecimento portentoso. Daí o destino reserva-lhe um desenvolvimento que se afigura extraordinário.Enquanto agente que povoa o mundo da narrativa é uma pessoa dotada de poderes sobre-humanos cuja acção decorre em contextos humanos incomuns. No seu Dicionário de Regionalismos Angolanos, Óscar Ribas tem uma entrada em que se lê o seguinte:
“Kimalauezu ou Kimalaueza… Personagem fabulosa de grande poderio. Potentado lendário. Figura nos contos e adivinhas da literatura tradicional kimbundu, quer simplesmente com este nome, quer completamente com o de Kimalauezu ou Kimalauezakia Tumba a Ndala a Samba. Ou, em linguagem portuguesa: Aura de Parente de Querença de Amigo. Isto é: amigo do amigo.
Por vezes, talvez por simplificação, omite-se o último designativo. Deste modo, apenas se diz: Kimalauezu ou KimalauezukiaNtumba a Ndala…”
Portanto, temos um bom motivo para voltar ao tópico, na próxima conversa. Para o efeito, vamos trazer à leitura os textos de Joaquim Dias Cordeiro da Matta (1857-1894), António de Assis Júnior (1878-1960) e do linguista e missionário suíçoHéli Chatelain (1859-1908), além dos subsídios da ontologia social e da filosofia da literatura.
*Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 29 de Outubro, aqui republicado com a autorização do autor.
*Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]
Publicado originalmente em 29/10/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/experiencia-estetica-e-ontologia-social-na-literatura-ii/