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Filodramática – When We See Us

ensaio de Severino Ngoenha e Filomeno Lopes

O texto recontextualiza as ideias de Filomeno Lopes e Severino Ngoenha quanto a proposta da exposição When We See Us que ao trazer cem anos de representação negra na pintura é mote para refletir sobre o sentido da arte africana

Em 2018, o filósofo Filomeno Lopes (co-autor deste ensaio) publicou um livro intitulado Filodramática, uma perspectiva filosófica que, partindo dos esgotos onde uma certa (des)humanidade é despejada, assume o desafio de teatralizar a existência com linguagens (contos, música…) das pessoas comuns. Não se trata de um bis repetita da estética leibniziana, mas de uma postura filosófica que, em diálogo com os danados (Fanon) da existência, se interroga sobre quem somos, o que queremos, onde queremos chegar, o que estamos dispostos a fazer, a que estamos dispostos a renunciar para atingir esses objectivos. Este preceito filosófico encontra uma ilustração exemplar na estátua de bronze do artista Bobbie Carlyle intitulada Self Made Man, que mostra, metaforicamente, a figura de um homem a esculpir a si próprio.

No fim de Setembro caiu o pano (The end) de um dos eventos filodramáticos mais importantes deste primeiro quarto de século: uma exposição, não sobre África, que representa um olhar crítico deste continente sobre si mesmo. Projectada pela Wolff Architects, em colaboração com o Instituto para Humanidades em África (HUMA) da Universidade do Cabo (UCT), a exposição compreendeu 2000 obras dos últimos 100 anos – de artistas africanos que trabalham globalmente, em diálogo com os principais pensadores e escritores africanos da actualidade – e incluiu uma publicação que explora a auto-representação e celebra as subjectividades e a consciência negras, a partir de perspectivas pan-africanas e pan-diaspóricas. Com foco na pintura, a exposição celebrou a maneira como os artistas de África e da sua diáspora imaginaram, comemoraram e afirmaram experiências africanas e de ascendência africana que o curador principal, Koyo Kouoh, chama estética paralela.

O título da exposição é inspirado em When They See Us, de Ava DuVernay, a minissérie de 2019. Converter “eles” para “nós” permite uma mudança dialéctica que centra o debate intelectual numa perspectiva diferencial de autoescrita.

Do que pensam os outros sobre nós, as bibliotecas estão cheias: monografias de etnólogos, colecções de antropólogos, séries de africanistas, estudos de terceiro-mundialistas, teses de peritos em desenvolvimento, receitas de organizações bilaterais e multilaterais. Do que os outros fizeram de nós temos ilustrações nos museus da escravatura (Cacheu na Guiné, Ilha de Goreia, no Senegal, Elmina no Gana…) e do Apartheid na África do Sul. Hoje, os zoológicos humanos são substituídos por filmes, documentários e reportagens das barrigas grandes de fome de crianças desde o Biafra até todas as etiópias de África; de crianças-soldados empunhando armas que África não sabe fabricar, de africanos que morrem no cemitério chamado Mediterrâneo. Nós somos vistos, desde Hegel a Sarkozy, como a infância da humanidade, aqueles que ainda não entraram – e são impedidos de entrar – nas tramas da história.

As duas primeiras grandes exposições do princípio do século, organizadas por comissários africanos, tinham-se centrado em como os africanos vêem os outros. A primeira, intitulada Unpacking Europe (que se podia traduzir por “Desconstrução da Europa”), teve lugar no Museu Boijmans Van Beuningen, de Roterdão, em 2001, sob a responsabilidade de Salah Hassan e Iftikhar Dadi, e tinha por objecto questionar o postulado da homogeneidade europeia. O catálogo da exposição compreende textos de teóricos pós-modernos, pós-coloniais e subalternos: Martin Bernal, Dipesh Chakrabarty, Okwui Enwezor, Fredric Jameson, Ali Mazrui, Slavoj Žižek.

O que sobressai desta exposição e do seu catálogo é uma forte crítica à ideia do eurocentrismo e os seus corolários de orientalismo e estranhamento (othering) do outro, bem como a necessidade de ver no Ocidente um simples “outro”. Para os comissários da exposição, a crescente migração impõe a necessidade de uma revisão da ideia do Ocidente como uma cultura pura e incontaminada: a Europa é uma identidade mestiça e sempre foi, uma vez que as suas fronteiras foram sempre permeáveis. Esta manifestação artística e intelectual também contesta a pretensão universalista da Europa, na sua vontade de se apropriar, em exclusivo, do advento da democracia e dos direitos humanos, através da sua narrativa mítica que não contempla a violência sofrida pelos povos colonizados. No mesmo momento em que a democracia europeia florescia sobre as cinzas da escravatura e o saque dos outros continentes, a sua historiografia apreendia e caracterizava as culturas não europeias pelas suas lacunas, ausências, faltas – primitivos, sem escrita, sem história – e relegava-as ao passado. Trata-se agora de recolocar a Europa no seu lugar e tratá-la como ela merece: uma cultura entre outras, o que o indiano Dipesh Chakrabarty chamou a provincialização da Europa.

Encontra-se o eco desta posição no Documenta XI – obra produzida no segundo dos eventos acima referidos, que foi uma das mais importantes exposições de arte contemporânea do mundo –, organizado por Okwui Enwezor, crítico de arte e comissário americano de origem nigeriana. Para Enwezor, a democracia americana é inacabada (unrealized), a imagem que ela pretende dar de si não corresponde à realidade. Existe uma distância entre a visão de uma Europa que teria trazido luzes para o resto do mundo e a realidade que viveram os povos submetidos à sua opressão. Daí a necessidade de revisitar as narrativas sobre a emergência da democracia europeia, à luz dos movimentos dos povos do Terceiro Mundo que se levantaram contra a opressão. Este é o sentido da exposição The Short Century, que preparou o Documenta XI: o rosto da colonização e as lutas que o nosso continente tem que levar a cabo para a sua libertação.

A descentração da supremacia ocidental continuou, por ocasião da Bienal de Veneza em 2003, com a exposição Fault Lines, organizada por Gilane Tawadros e consagrada à arte africana contemporânea. Aqui também se evidenciou a existência de uma ruptura entre o Norte e o Sul, que desmistifica a pretendida homogeneidade do mundo contemporâneo. Uma vez mais, o que é contestado – com ajuda do conceito de modernidade vernacular – é a ideia de uma modernidade puramente europeia.

Mas o Ocidente – encarnação e metáfora das cabeças sem orelhas do escultor Chissano –, sentado no altar da sua leviandade (de leviano e Levinas), não ouve a África quando esta diz que ele (o Ocidente) já não é o único lugar a partir do qual pensar o mundo (Felwine Sarr e Achille Mbembe). Quando no Sahel jovens e mulheres retomam, em coro, o grande “NÃO” de Sekou Touré e dizem “Basta!”, o Ocidente vê neles uma simples caixa de ressonância dos seus antagonismos com a China e a Rússia; quando África diz não às ucraniadas do Ocidente, este nos acusa de antiocidentalismo e em nenhum momento lhe passa pela cabeça que o continente desde sempre milita por uma África africana; que, apesar dos incidentes de percurso, de batalhas perdidas – com golpes de Estado, assassinatos, invasões, programas de ajustamento estrutural (…) –, ela continua  focada,  hirta e firme, em direcção ao único objectivo da sua emancipação. O Ocidente confunde as nossas alianças de razão com um alinhamento ideológico, a desconexão (Samir Amin) com rupturas racialistas, o não alinhamento com um antiocidentalismo. Nós não somos nem pró nem antiamericanos, russos, ingleses, franceses, chineses ou turcos; nós somos pró-africanos (Coronel Mamady Doumbouya).

Contra a linguagem do desespero das migrações, dos que fogem dos sistemas de pobreza e terror   caucionados e legitimados pelo Ocidente, a Europa diz-se invadida por bárbaros e responde deixando mulheres e crianças afogarem-se, responde com o roubo de cérebros chamado emigração escolhida e com acordos esclavagistas com o Médio Oriente. Mutatis mutandis, quando os africanos querem fazer do continente um “oikos”, uma sociedade autónoma, justa e auto-suficiente, esbarram de novo com a Europa que, com o pretexto de putins, erdogans, xi jinpings, ignora e se recusa a reconhecer a historicidade africana em contínua marcha; quando exigimos justiça política e económica remete-nos a artifícios jurídicos sobre ilegítima ordem constitucional. Para a Europa (sobretudo para os franceses), África é “cosa nostra” – no sentido mafioso do termo – e não releva de nenhum critério de razão ou de Direito. O que podem a razão e a filosofia (Hountondji) diante da irracionalidade, surdez e esquizofrenia?

A exposição When We See Us obriga-nos a redireccionar a rota, a voltarmo-nos para nós mesmos. Quais são as nossas ambições, o nosso projecto, a utopia que queremos transformar em realidade? Além das epistemologias desconstrucionistas (pós-modernos, pós-coloniais, subalternistas), com esta exposição a arte africana (e afrodiaspórica) se propõem como o lugar de convergência e de síntese de posições de filósofos, artistas, historiadores e críticos, e como um espaço de reivindicação das novas ambições africanas.

Pode parecer um lugar comum dizer que a arte e os artistas – quando se parecem com cozinheiros do guia Michelin e não estreladores de ovos – antecipam, se fazem porta-vozes dos tempos de mudança e vêem antes da reflexão filosófica; eles representam rupturas, mudanças, desejo de novas eras. As vezes eles se escondem nos subterfúgios das linguagens para fugir aos ouvidos e compreensão dos opressores (gospelspirituals…), outras vezes se exaltam, exuberantes, em nome de uma verdade que já não se pode calar e só eles podem dizer (Azagaia) – ao preço da infâmia, da ignomínia e perseguição. A natureza da arte é vir e ver primeiro, antes e mais longe do que qualquer outro olhar.

Quando a arte não é simples mimese, é de um realismo cru, desconcertante (ver as obras de Ayanda Mabululu, artista sul-africano), mas sobretudo é preditiva, utópica, messiânica, capaz de anunciar novas versões do mundo, de introduzir novidades na história (Papa Francisco). Todavia, para cumprir com esta missão, ela deve fugir das galerias, dos museus e dos mecenas que impõem cânones de cada vez mais mau gosto e conformes ao mercado.

As primeiras aparições africanas, desde os congressos dos artistas e escritores negros de 1959 em Roma e 1960 em Paris, foram caracterizadas por um enquadramento etnopolítico; as nossas artes metafísicas (de iniciação, funerárias…) reduzidas a objectos (artefactos) utilitários e obrigadas a adequar-se aos cânones estabelecidos por etnólogos cúmplices (os michel leiris, os dias) e ao serviço dos regimes coloniais. A chamada contaminação ou subversão artística foram sempre banidas, desde Napoleão, que proibiu as obras musicais de Joseph Bologne, até à retirada dos quadros de Mabululu na África do Sul.

Porém, por outro lado, foram as artes (literatura, música…) que iniciaram e deram as cartas de nobreza ao Renascimento Negro (e africano) e que anunciaram, com Alain Locke, o seu telos, propósito e ambição: “Estamos determinados, mordicus, a ser livres e a usufruir dos frutos do nosso trabalho”.

Em Lutar por Moçambique, Mondlane identifica em Noémia de Souza, José Craveirinha (…) a geração que deu o tom do nacionalismo. A arte moçambicana tem hoje a ambição de “(Re)Imaginar a Nação” – título da exposição organizada em Novembro de 2018 pelo Museu Nacional de Arte, que, pelas suas premissas e implicações teóricas, se situa no mesmo diapasão das grandes exposições internacionais deste início de século. Ela não só enceta uma nova fase na museologia – fazer exposições com novas temáticas –, como também ambiciona fazer do museu um lugar de debate da nossa moçambicanidade.

A autocontemplação é um exercício exigente, duro e difícil. Redireccionar o nosso olhar para nós próprios vai destapar as nossas incoerências, as nossas inconsequências, as nossas cumplicidades, as nossas traições, as nossas cobardias (…). No entanto, também nos vai dar a pauta das nossas responsabilidades na escrita de uma nova gramática da africanidade, na construção de uma história como pensamento e acção (COINCP), na restauração de uma esperança (Ernest Bloch).

Quando estão em questão a liberdade e a justiça, temos a obrigação de lutar com todos os meios possíveis para as alcançar. A liberdade não se dá, conquista-se. Os ídolos não descem de maneira voluntária do altar e pedestal que construíram para si, mas devem ser obrigados a descer; os revolucionários franceses (que Macron e a França republicana de hoje parecem ter esquecido) não hesitaram em fazer um golpe contra a monarquia e até em matar o rei.

Revoltar-se (Albert Camus), resistir (Eboussi Boulaga), desobedecer (Henry Thoreau) a regimes e instituições político-económicas que legitimam a injustiça não é só um direito: é um dever. Revoltemo-nos, mas não nos revoltemos sozinhos, de maneira isolada. Se a denúncia da impostura (e idolatria) for isolada (e solipsista) vai ser combatida como heresia. A denúncia e a revolta devem ser corais, sinfónicas, como o canto dos escravos hebreus de Verdi; devem ter uma dimensão pan-africana. Mas, em nome de milhões de cadáveres no Atlântico ontem – hoje no Mediterrâneo e no Sahel –, não deixemos que os que ousam a revolta (e a resistência) pela causa de todos nós (Ibraim Traoré, Mamady Doumbouya, A. Koita) fiquem sozinhos, como outrora (Lumumba, Sankara…) abandonados à sua sorte: só atravessando o rio em massa podemos fazer face aos crocodilos…

A filodramática que foi a exposição do Cabo – como o afrofuturismo e o woke – não é a teorização de uma arte a ser contemplada por eunucos nos momentos de ócio, mas a teatralização do drama africano que ecoa como um desafio contra a apatia e a resignação. A questão da mobilização faz apelo para a linguagem da arte. Perante o silêncio cúmplice e conivente da política – a nacional, que adere à retórica mafiosa do retorno à ordem constitucional, o mutismo da SADC, as ambiguidades da União Africana, a cumplicidade neocolonial da ONU e do seu português Secretário-geral –, que as artes (a pintura, a escultura, a filosofia, sobretudo a música, com a sua linguagem directa e imediata) assumam, azagaianamente e no espírito dos bongas, mingas, de José Carlos Vaz e Makeba (…) a denúncia e a revolta! Tal como outrora confiámos os nossos gritos às trombetas do jazz, a nossa melancolia aos ritmos do blues, os “get up, stand up” de revolta ao reggae de Bob Marley, juntando escritores, poetas e filósofos a arte intima-nos a sair da cacofonia das vozes isoladas e dissonantes, a sair do silêncio cobarde e cúmplice, a ser parte da (nossa) história em movimento.

Unidos, não há fronteiras que não possamos atravessar (E. Glissant).

Severino Ngoenha e Filomeno Lopes

Marcos Carvalho Lopes

2 Comentários

  1. Parabéns aos autores pela bela reflexão, contudo acho que a introdução para a leitura do texto é pouco consentânea com o conteúdo do mesmo. A introdução diz que “O texto recontextualiza a proposta de Filomeno Lopes, de uma filodramática, com a proposta da exposição When We See Us que ao trazer cem anos de representação negra na pintura é mote para refletir sobre o sentido da arte africana”.
    Penso que, considerando o conteúdo da obra de Lopes (2018), Filodramática, e o conteúdo deste texto há uma enorme equidistância, embora naquela obra existam alguns laivos que apontem para o uso da arte (musical e romance) como forma que o autor e Ngoenha tentaram usar para dar a expressão a filosofia, para além de ser um texto que se concentra mais nas vicissitudes da filosofia nos PALOP. Este novo texto que Lopes escreve com Ngoenha devido a abrangência do seu conteudo (África e o mundo em geral), é de uma riqueza tal que só se pode equipar ao texto divulgado a 20 de abril de 2023, com o título Prelúdio pós mortem em (de) R(apper) maior, escrito pelo triunvirado Ngoenha, Giverage do Amaral, Augusto Hunguana. A bem da verdade seria bom se, estes dois textos, constituíssem um livro.
    Por fim, sou da sugestão que a introdução fosse da seguinte maneira “O texto recontextualiza as ideias de Filomeno Lopes e Severino Ngoenha quanto a proposta da exposição When We See Us que ao trazer cem anos de representação negra na pintura é mote para refletir sobre o sentido da arte africana”.
    Sem mais melhores cumprimentos e obrigado pelo deliciante texto.

    • sugestão aceita! Fui eu quem fez esse resumo questionável… vamos aprimorando. A sugestão do livro já havia feito para o Ngoenha. Convergimos!

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