Luís Kandjimbo |* Escritor
Na presente conversa retomo o tópico proposto no texto da semana passada. Mas, num registo de desdobramento, submeto à releitura as críticas formuladas por Kwame Anthony Appiah contra o que designa por “arquétipo do escritor Africano”, presumivelmente fornecido por Wole Soyinka. Durante a leitura do seu texto, percebe-se que Appiah recorre a um esquema conceptual que revela uma forma particular de usar conceitos para referir as realidades e os universos literários africanos, sendo possível, a partir daí, identificar a sua filiação doutrinária. É o que permite concluir a preferência por este tema.
Kwame Anthony Appiah é um dos muitos cultores da tradição filosófica analítica que sonda os domínios da crítica literária. Partindo dos pressupostos metodológicos da filosofia analítica que se ocupa da exploração da linguagem, suas propriedades e descrição dos seus objectos, já no seu conhecido livro “In My Father’s House: Africa in the Philosophy of Culture” (1992), [Na Casa de Meu Pai. África na Filosofia da Cultura], o tema das identidades mereceu atenção, sobretudo as posições dos intelectuais africanos e os diferentes tipos de ficções.
Além disso, Appiah concentrou-se nas estratégias criativas de Wole Soyinka, ao considerar que ele “provou que o panteão Yoruba é um poderoso recurso literário, mas não conseguiu explicar por que razão o cristianismo e o islamismo foram bem sucedidos ao deslocaram a totalidade dos antigos deuses, ou por que a imagem do Ocidente tem uma influência poderosa sobre a imaginação Yoruba contemporânea, de tal modo que nem a criação de mitos pode oferecer recursos para criar economias e políticas adequadas aos vários lugares do mundo”.
Ora, neste caso importa compreender os efeitos da leitura crítica e analítica aplicada à obra de Wole Soyinka. Concluímos já que Appiah nega a existência de uma visão africana do mundo em que se funda um consenso metafísico e fundamenta a negação com o facto de existirem em África diferentes comunidades étnicas que não são necessariamente comunidades homogéneas.
No capítulo da referida obra colectiva organizada por Biodun Jeyifo, que tem o título do livro que analisa, “Myth, Literature and African World”, Kwame Anthony Appiah tematiza a individualidade do escritor e o projecto de identidade nacional. Mas, o interesse do texto de Appiah não reside na perspectiva cosmopolita que o motiva. O que desperta curiosidade, quanto a mim, é a sua pretensão de abordar os problemas africanos, exclusivamente, com base em modelos da filosofia analítica anglo-saxónica e da sua tradição liberal mais ortodoxa.
Problema e esquema conceptual
O modo como Appiah discute o problema, num exercício interdisciplinar de filosofia e crítica literária, desvenda a filiação que o inscreve no campo da filosofia analítica. Portanto, é um cultor da filosofia política e moral analítica, ao estilo das correntes anglo-americanas. A elaboração das categorias e os pontos de vista de Appiah evidenciam a sua intenção de examinar a realidade e organizar a experiência, de acordo com a tradição liberal ocidental.
Não surpreende que, perante um problema filosófico da literatura africana, Kwame Appiah se afaste da perspectiva de outros filósofos Africanos, alguns dos quais são seus compatriotas, os falecidos professores Kwasi Wiredu (1931–2022) e Kwame Gyekye (1939-2019). A este respeito, estes defendiam uma suspeita e consequente ruptura com os modelos eurocêntricos da filosofia analítica, procurando adequá-los às realidades africanas. Wiredu admitia mesmo que nem todos os aspectos da experiência cobertos por um determinado conceito podem ser reproduzidos em outras esferas da vida humana porque alguns conceitos e proposições, formulados em certa língua, podem não ter equivalentes em outras línguas. Esta é uma focagem típica que, no contexto africano, permite dialogar com W.V.O. Quine (1908-2000), o filósofo analítico iconoclasta norte-americano, defensor da tese do indeterminismo da tradução, a relevância da experiência e do relativismo linguístico.
Pode dizer-se que Kwame Appiah parece não ter prestado a devida atenção à vocação contra-hegemónica da filosofia africana, tal como o malogrado Emmanuel Chukwudi Eze (1963-2007) sustentava, em 2001, no seu artigo “African Philosophy and the Analytic Tradition” [A Filosofia Africana e a Tradição Analítica], quando se referia ao comportamento argumentativo de orientação linguística dos cultores da tradição analítica ocidental. De igual modo, a nigeriana Marystella Chika Okolo-Nwakaeme, no seu premiado livro “African Literature as Political Philosophy” [Literatura Africana como Filosofia Política], lamenta a negligência que assombra a filosofia africana perante as obras literárias e o facto de os benefícios da relação que se estabelece entre a filosofia e as literaturas africanas não serem frequentemente explorados.
Por essa razão, nessa leitura da obra de Wole Soyinka, os esquemas conceptuais de Kwame Appiah encontram oponentes em diversas áreas disciplinares. É o caso do historiador Théophile Obenga, congolês, filósofos Olabiyi Yai (1939-2020), beninense, e Sophie Oluwole (1935-2018), nigeriana.
Argumentos controversos
A apreciação crítica da obra de Wole Soyinka de que Kwame Appiah é responsável toma forma através da reutilização de um texto, “The Myth of an African World”, [O Mito do Mundo Africano], publicado inicialmente em “In My Father’s House: Africa in the Philosophy of Culture”, (1992), [Na Casa de Meu Pai. África na Filosofia da Cultura]. Retomado, sucessivamente, em “Perspectives on Wole Soyinka. Freedom and Complexity”, (2001), [Perspectivas sobre Wole Soyinka. Liberdade e Complexidade] e “A Companion to African Philosophy”, (2005), [Compêndio de Filosofia Africana]. No seu itinerário peregrino de mais de uma década, Appiah examina a problematização das identidades africanas nos três romances, na obra dramatúrgica e ensaística de Wole Soyinka. Lamentavelmente, no livro dedicado ao tema das identidades, “The ethics of identity”, (2005), [Ética da Identidade], Appiah não convoca a reflexão efectuada sobre a obra de Wole Soyinka, durante a década anterior. Privilegia generalizações fundadas em experiências europeias, numa perfeita demonstração de quem quer ser cosmopolita universal.
As provas internas que sustentam os argumentos de Kwame Appiah, na versão publicada em 2001, são constituídas por duas amostras da obra de Soyinka, designadamente, a peça dramática “Death and the King’s Horseman” (1975), [A Morte e o Cavaleiro do Rei] e o livro de ensaios “Myth, Literature and the African World” (1976), [Mito, Literatura e o Mundo Africano].
Provas internas
As interrogações de Appiah sobre “A Morte e o Cavaleiro do Rei” e que o teriam impelido a redigir o capítulo controverso têm uma das suas primeiras manifestações na entrevista publicada, em anos seguidos, nas revistas americanas “The New Theatre Review”, (1987), e “Black American Literature Forum”, (1988). Enquanto filósofo, Appiah formulava duas perguntas sobre o carácter metafísico do texto dramático, tal como Soyinka o caracterizava, considerando que se tratava de uma tragédia cuja personagem central é Elesin Oba, o cavaleiro do rei.
Aquele entusiasmo de Appiah manifestado na entrevista que precedeu a exibição da peça nos Estados Unidos, em 1987, terá sido irónico? A resposta tem escasso interesse.
O referido uso das provas internas verifica-se a partir do momento em que Kwame Appiah explora o significado da nota introdutória escrita por Soyinka sobre a referida peça de teatro, na qual são feitas referências ao factor colonial como mero catalizador. Appiah refuta expressamente a ideia do “choque de culturas” entre o colonizador e o colonizado que lhe parece estar subjacente ao invocado “factor colonial”. Acusa Soyinka de, na qualidade de escritor, ocultar os seus verdadeiros propósitos com o fundamento no facto de não ter resolvido um dilema. Por um lado, o desejo que emana das raízes europeias da sua condição de autor, pretendendo mesmo assim atribuir autenticidade à sua obra. Por outro lado, o desejo que sente enquanto Africano, mas confrontado com a experiência de ter sido uma vez colonizado e culturalmente descolonizado, em sentido formal.
No entanto, a tensão não-resolvida a que se refere Appiah, isto é, a relação do escritor com a comunidade e a experiência colectiva, mereceu uma tematização seminal naquele texto da comunicação de Wole Soyinka à Conferência Afro-Escandinava de Escritores, “The Writer in a Modern African State” [O Escritor no Estado Moderno em África], o terceiro capítulo do livro de ensaios “Art, Dialogue and Outrage” (1988), [Arte, Diálogo e Indignação].
Por outro lado, será necessário encontrar as provas externas com que Kwame Appiah conta, quando escreveu o capítulo do seu livro. Fê-lo na condição de professor de filosofia residente nos Estados Unidos da América, comprometido com a tradição analítica liberal, no período em que o multiculturalismo e as identidades dominavam os debates da filosofia política, a que se juntavam as propostas do liberalismo político, veiculadas pelo livro do filósofo norte-americano John Rawls (1921-2002). Era a apologia da igualdade, justiça e liberdade individual, enquanto princípios nucleares das sociedades liberais e neo-liberais.
Comunidade e arquétipo do escritor
Para Kwame Anthony Appiah a tensão dialéctica entre o eu-como-todo e o eu-como-parte associada à tematização dialéctica que emana do “mito da solidariedade metafísica de África” não permite suportar o arquétipo do escritor, idealizado por Wole Soyinka. Isto quer dizer que a refutação de Appiah resulta em negação da experiência colectiva e sua apropriação pelo escritor Africano.
Mas, Soyinka, que é um comunitarista assumido, entende que a existência do escritor Africano tem raízes na sua comunidade. Emerge aqui a necessidade de contextualizar a prática da filosofia analítica das literaturas africanas porque o argumento de Appiah parece inspirar-se nas teorias estruturalistas da “morte do autor” e da “falácia intencional”, hostis à biografia do escritor, enquanto recurso de apreciação crítica.
No que diz respeito à problemática da identidade individual de Wole Soyinka e sua relação com a comunidade étnica Yoruba, nacional e panafricana, são úteis as interpretações do fenómeno em diferentes perspectivas disciplinares. Mas a convergência ocorre quando a tripla identidade reivindicada por Soyinka corresponde a uma necessidade existencial que consiste em revelar a consciência de uma experiência colectiva perante a sociedade e perante a literatura, tal como observa Abiola Irele (1936-2017). No entanto, o reconhecimento do sentimento de pertença às comunidades étnicas em África põe igualmente em causa a validade universal da filosofia política da identidade do indivíduo e o modelo liberal do Estado-nação em África, sendo irrecusável o carácter multicultural e multiétnico que, para o cientista político democrata-congolês Mwayila Tshiyembe, desafia a pertinência das teorias jurídico-políticas ocidentais sobre o Estado que emanam das escolas filosóficas continentais da Alemanha e da França.
Portanto, parece justificar-se que a reflexão prossiga em torno de um tópico que permita explorar as potencialidades da relação entre a filosofia analítica, política e moral, e a crítica literária no contexto africano.
Publicado originalmente em: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/filosofia-analitica-e-critica-literaria-de-kwame-anthony-appiah/