ensaio de Severino Ngoenha, Filomeno Lopes e Augusto Hunguana
Perante a banalidade da guerra (mal para Hannah Arendt) em C. Delgado, Congo, Sudão, Ucrânia, Palestina (…) qual outro livro e leitura podia estar em adequação com o espírito dos tempos mais do que guerra e paz de Liev Tolstoi?
Volumoso Romance histórico, entrelaçado entre diferentes falares, registos, regionalismos, expressões populares, arcaísmos úteis para descrever a quotidianidade e expressões devido registro oficial e burocrático, linguagem familiar, venatório, militar (…); o autor narra a história da Rússia na época das guerras napoleónicas para mostrar como a vida das pessoas comuns é influenciada por grandes eventos históricos. Pode até parecer que ele desenvolve uma teoria fatalista da história, onde o livre arbítrio teria uma importância menor e onde todos acontecimentos só obedecem a um determinismo histórico irrefutável.
“No fim do século XVIII reuniram-se em Paris, cerca de vinte pessoas que tomaram a decisão de declarar que todos os homens são livres e iguais. A partir deste movimento em toda a França, as pessoas começaram a matar-se e a afogar-se reciprocamente; mataram o rei e muitas outras personalidades. Nesse mesmo período se encontrava na França um homem de génio: Napoleão. Ele venceu a todos e em toda a parte, ou seja matou muita gente, porque era muito genial. E foi também matar, quem sabe porquê, africanos; e matou-os tão bem demostrando tanta astúcia e tanta inteligência que, reentrado na França, ordenou a todos submissão a ele. E todos submeteram-se. Tornado imperador, foi de novo matar outras pessoas na Itália, na Áustria e na Rússia.”
O general prussiano Carl P. G. Clausewitz (1790 – 1831) estratega militar e autor do Vom Kriege (Da guerra) via na guerra a continuação da política por outros meios (…), um camaleão que muda de cor segundo as circunstâncias.
André Glucksmann (membro do colectivo conhecido como novos filósofos) diante do equilíbrio do terror representado por arsenais atómicos dos EUA e da então URSS, via na guerra uma substância maléfica, um ser ontológico, não alter mas contra ego do homem da qual este, doravante tinha, mordicus, que se proteger e resistir.
No seu discurso de despedida, Dwight Eisenhower (1961) pronunciou um discurso elucidativo: Um elemento vital para manter a paz é o nosso estabelecimento militar. As nossas armas devem ser poderosas (…) de modo que nenhum agressor potencial possa ver-se tentado a arriscar a sua própria destruição. A nossa organização militar de hoje, tem pouco a ver com as conhecidas pelos meus predecessores em tempos de paz (…). Até ao último dos nossos conflitos mundiais, os Estados Unidos não tinham uma indústria militar (…). Porém vimo-nos obrigados a criar uma indústria de armas permanente de grandes proporções, somando a isto, três milhões de homens e mulheres envolvidos no estabelecimento da guerra. Gastamos anualmente em segurança militar mais das entradas líquidas de todas as corporações dos Estados Unidos.
Está conjugação de um imenso complexo militar e uma indústria de armas, é nova na experiência americana. A influência total – Económica, política, até espiritual, se sente em cada cidade, capitólio e escritório do governo. Reconhecemos a necessidade deste desenvolvimento. Porém, não podemos ignorar as suas graves implicações. Nas assembleias de governo, portanto, devemos resguardar de qualquer influência injustificada, solicitada ou não, exercida pelo complexo industrial. O risco de um aumento desastroso do poder ilegítimo existe e vai persistir.
Hoje os complexos bélico industriais triunfam e ditam as suas leis as políticas dos estados -não só nos Estados Unidos mas em muitos países do primeiro mundo (Mundo Diplomático, novembro, 2023) – e com eles a guerra; “ aquele monstro, que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e consome, tanto menos se farta” (Padre António Vieira).
A guerra é um camaleão que muda de cor/nome segundo as circunstâncias (guerras justas, jihadistas, ideológicas, coloniais, terroristas, bem contra o mal…) sempre, camalonicamente, com máscaras, roupagens, vestes vendidos pelos mídias cúmplices como justos e diferentes, mas com a mesma substância: destruições , lágrimas, mortes, lutos de um lado e ingentes ganhos de dinheiro, poder e influência do outro.
A guerra triunfa. O tempo da política acabou e por isso a guerra não continua nenhuma política. A política acabou não pela pós ou trans política, mas porque o liberalismo político renunciou aos seus direitos e cedeu espaço ao liberalismo económico e com isso , ao lei do mais forte. O que Dwight Eisenhower denúncia é o monstro que ele contribuiu a criar: um mundo liberal dominado pela lei da demanda e da oferta na qual a guerra representa uma parte importante na balança económica dos grandes países, a começar pelos membros do conselho de segurança da ONU, principais responsáveis pela paz no mundo mas maiores exportadores de armas.
O comércio de armas é um negócio muito rentável, a destruição de países e infraestruturas são também uma ocasião de enormes negócios e contractos de construção e de reconstrução. A morte de crianças e mulheres? Voltaire no Cândido perguntava com sarcasmo, os marinheiros com as suas botas altas e fortes preocupam-se se estão a pisar ratos ( moçambicanos, congolenses , sudaneses, líbios, afegãos , sírios, palestinianos …), não são só desastres colaterais mas produtos comerciais sacrificáveis e descartáveis para a manutenção do preço.
Os estudantes russos nos exames do fim do secundário tem sempre que responder a questão, o que queria dizer Tolstoy com a sua enorme grande epopeia de 1500 páginas? Simples denúncia da insensatez e dos horrores da guerra, e desaponto em relação a todos os napoleões da história?
A guerra é o mundo histórico, a paz é o mundo humano. Qualquer metafísico amador diria, na sua ingenuidade, que são os homens a fazer a história. Qualquer determinista replicaria que os homens são feitos pela história. Contudo, é o mundo – supostamente- humano que interessa a Tolstoy, porque ele está convencido que cada homem de ontem, de hoje e de amanhã vale um outro homem (Leone Ginzburg). O reconto de Tolstoy talvez seja universal. É verdade que fala de um estado diferente do nosso, de uma outra realidade mas está a falar de nós. Todos nós encontramos confrontamos com os dilemas morais da guerra, as leis do mundo, da história.
Os brinquedos mortíferos (artefactos) de que o homem dispõe hoje são sempre mais sofisticados e performantes, sem igual na história. Mutatis mutandis, o homem, que de sapiente só tem o nome, parece ter permanecido igual e talvez até tenha axiologicamente regredido, o que o leva a desqualificar, no nome da pecúnia, o valor da vida e do homem.
Mas o que quer dizer ser homem e pertencer a espécie humana? Existem diferentes tipos de respostas. A primeira teológica, oriunda de representações de origem judeu-cristão segundo as quais, o homem é a imagem de Deus na terra. Uma outra resposta ligada a filosofia moral – eloquentemente representada pelo resumo que Kant faz as questões transcendentais no seu curso de lógica, o que é o homem?- que pensa a pertença em termos de destinação comum do género humano, isto é de finalidade.
Em 1845, Marx declara que o ser humano não é uma abstração habitada por uma essência, mas um conjunto de relações sociais. As noções de modalidade existencial, não chegam para desconjurar uma pertença diferencial a espécie humana do ponto de vista de acesso a essência humana e da norma de humanidade que ela institui. Está pertença diferencialista existe de facto e de jure, como diz Hannah Arendt.
Michel Foucault, no fim “das palavras e das Coisas“, anuncia a morte do homem mas o que ele quer dizer é que a ideia de homem não nos remete a uma naturalidade por ela mesma, mas deve ser pensada como uma figura histórica e contingente, cujos modos de fabrico dependem de saberes, conceitos e experiências históricas situadas.
A questão do que é pertencer a espécie humana envia a identificação do que não é humano, ou dos seres (negros) que não são humanos, o que são desprovidos da humanitas, os que como nós caíram e continuam a cair do mau lado de uma linha de demarcação correspondente ao reconhecimento, ou ao pleno reconhecimento da humanidade, mas com o mau gosto de nos imiscuir indevidamente entre os homens.
Pertencer a espécie humana nunca é dada uma vez por todas, trata-se de uma pertença que se faz e se desfaz ao grémio da história e das circunstâncias. Como dizia Erasmus (De pueris instituendis, 1528) “os homens, acredita em mim, não nascem homens: tornam-se”.
A nossa não é uma dialética do esclarecimento (escola de Frankfurt) mas de resistência (Eboussi Boulaga) contra a animalização e de luta a favor de um humano reconhecimento humano.
Eis o sentido terroristico das nossas lutas.