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Da titularidade do direito à filosofia

Luís Kandjimbo |*

Numa perspectiva espiraliforme, introduzo a nossa conversa fazendo referência ao tópico já aflorado, a ontologia social na literatura. As personagens ficcionais das literaturas africanas que se autolegitimam, tais como Kalitangi (Umbundu), Kimalawézu Kia Tumba-Ndala (Kimbundu), Nambalisita (Nyaneka-Humbi) e Ndalakalitanga (Cokwé), Mwindo (Nyanga) representam sujeitos com nome próprio, identidade e titularidade de direitos sobre bens epistémicos.Por essa razão prometi encetar um diálogo com dois membros da Escola Filosófica de Yaoundé.

Identidade e nomes próprios

Em matérias respeitantes à problemática da antroponímia e, especialmente, dos nomes próprios, há consensos firmados, no nosso continente. Reconhece-se inequivocamente o  valor epistémico dos nomes. É demonstração disso, a existência de uma associação de especialistas, a «Names Society of Southern Africa», “Sociedade de Nomes da África Austral” que publica a revista «Nomina Africana», dedicada exclusivamente à onomástica no continente africano. O estudo dos nomes em África continua a mobilizar as atenções dos investigadores, atraindo-os para um esforço de institucionalização de uma disciplina cujo objecto são os nomes de lugares, a onomástica literária,os nomes de pessoas, pássaros, cães, clubes de futebole outros. A atribuição de nomes em África continua a ser uma actividade nobre. Por exemplo, os nomes das personagens literárias não são vulgares rótulos expressões e marcadores de identidade. Constituem fonte de informação e conhecimento.Escusado será lembrar as descrições do nome próprio de Kimalawezu Kia Ntumba-Ndala.

Agentes e direitos epistémico

As já mencionadas personagens ficcionais das literaturas africanas, entre as quais Kimalawézu Kia Tumba-Ndala, podem ser considerados como agentes ou sujeitos epistémicos? Se assim é, tal como acontece nos mundos possíveis,  em que medida podem ser titulares de direitos epistémicos? Para todos os efeitos, essas personagens são agentes epistémicos. Ora, definamos antes mais o que se pode entender por agente epistémico e direito epistémico. O adjectivo epistémico é uma palavra derivada da língua grega, «epistēmē», a que se atribui o significado de«conhecimento» ou «compreensão». No vocabulário filosófico contemporâneo, serve para referir estados ou bens associados ao conceito de conhecimento.

Nos debates que se travam no domínio da epistemologia contemporânea, quer em África, quer em outros continentes, o agente epistémico vem sendo caracterizado pelas capacidades de livremente realizar acções intencionais, perante possíveis alternativas, implicando tais acções a compreensão dos elementos de natureza epistémica, tendo em vista à aquisição de conhecimento. Alguns filósofos consideram que as acções intencionais são «esforços alécticos», isto é, afirmações orientadas para a justificação da verdade. Se quisermos operar com fundamentos da justiça epistémica, para lá da formulação da filósofa britânica Miranda Fricker, concluiremos que o agente epistémico no exercício das suas liberdades é titular de direitos epistémicos. É o caso do sábio que, independentemente da língua e indiferente ao uso da escrita, desenvolve uma actividade prática, justificando deste modo a existência de uma Filosofia da Sagacidade ou Sagacidade Filosófica em África de que falava o filósofo queniano Odera Oruka (1944-1995).

Assim, por direito epistémico entende-se o conjunto das capacidades e poderes de realizar livremente actividades que, por acção ou omissão, visama exploração e compreensão do conteúdo dos bens epistémicos. São bens epistémicos, por exemplo,o conhecimento, a verdade, a  crença, a justificação, a compreensão, a sabedoria, a informação,  a desinformação e a ignorância. Como se vê, a definição de direito epistémico tem aqui sustentação de uma perspectiva jusfilosófica, podendo ser tomado como direito subjectivo. Ser-lhe-ia oponível um dever jurídico, enquanto dever epistémico, na medida em que ao direito de uma pessoa corresponderia um dever de outra pessoa. No entanto, o direito epistémico não é propriamente um direito subjectivo, tal como poderia ser à luz da dogmática jurídica e do positivismo jurídico, em virtude de não corresponder a um interesse legalmente protegido. Apesar disso, interessa-nos mais o sentido com que se opera na Filosofia do Direito, Donde, o objecto dos direitos epistémicos são bens epistémicos.

 
Direito individual ou colectivo?

Os direitos epistémicos seriam individuais, numa adesão ao individualismo ontológico, se os grupos representassem apenas uma ficção dos indivíduos que os integram. As verdades sobre os grupos confundir-se-iam com as verdades sobre os indivíduos. Ora, acontece que os grupos se apresentam como um todo que não se reduz às suas partes, exprimindo um colectivismo ontológico, segundo o qual os grupos existem independentemente de seus membros, formando uma vontade colectiva. Por isso, dependendo do contexto em que são exercidos os direitos epistémicos, o agente epistémico pode assumir quer um estatuto individual, quer um estatuto colectivo.  Diálogo intrafilosófico

No passado dia 16 de Novembro, celebrámos o Dia Mundial Filosofia, na Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tratou-se de um colóquio organizado pelo Departamento de Filosofia que contou com a presença dos docentes da Faculdade, convidados e a colaboração dos estudantes do Curso de Mestrado. Foi igualmente uma oportunidade para apresentar o meu recente livro, «Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia», editado em Moçambique. O tópico «direito à filosofia»me é muito caro. Revisito-o com frequência. Sempre que o faço, procuro trazer uma nova focagem. Desta vez, parto do impulso dado pela força e representatividade das personagens ficcionais para abordar a possibilidade que, como tal, constituem modelo de sujeitos que podem ser titulares de direitos epistémicos, entre os quais o direito à filosofia. Além de constituir uma reiteração temática e reflexiva plasmada no recente livro, o presente artigo é uma versão da comunicação que apresentámos ao referido colóquio.

A este propósito, pretendo dialogar com quatro filósofos: 1) Dois camaroneses, Marcien Towa (1931-2014) e Fabian Eboussi-Boulaga (1934-2018); 2) Dois franceses, Georges Gusdorf (1912-2000) e Jacques Derrida (1930-2004). Os filósofos camaroneses tematizaram o tópico duas décadas após os juízos de valor de Georges Gusdorf. Entretanto, não se pode ignorar o facto de o filósofo francês estar ao corrente do debate que varria a Europa na década de 50 do século XX e que tinha no centro as reflexões dos pais da negritude e o livro do padre belga Placide Tempels. No referido artigo, são feitas referências à «La Philosophie Bantu» [Filosofia Bantu] do missionário belga. Para Gusdorf a filosofia é uma exclusiva emanação da civilização ocidental.

 
Refutando Georges Gusdorf

Georges Gusdorf, filósofo francês de ascendência judia, frequentou a Escola Normal Superior de Paris, onde se formou em filosofia. Durante a II Guerra Mundial, foi feito prisioneiro no norte da Alemanha. Morreu aos oitenta e oito anos, tendo deixado uma importante obra publicada. É interpelado no contexto deste debate devido ao artigo, «Le Commencement de la Philosophie»O Início da Filosofia, que publicou na «Revue de Métaphysique et de Morale», em 1953.Em 1971, no seu Essaisur la Problématique Philosophique dans l’AfriqueActuelle Ensaio sobre a Problemática Filosófica na África Actual, MarcienTowa interpretou o alcance da verrinosa ironia contida na seguinte frase:  «[…]Ledroit à la philosophie devientundesdroits de l’homme, endehors de toutequestion de longitude, de latitude et de couleur de peau»,O direito à filosofia passa a ser um dos direitos humanos, para além de qualquer questão de longitude, latitude e cor da pele de Georges Gusdorf que, aliás, reproduzia a matriz hegeliana da história da filosofia. Por sua vez, Fabian Eboussi-Boulaga, no seulivro «La Crise du Muntu–Authenticité Africaineet Philosophie», A Crise do Muntu – Autencidade Africana e Filosofia, publicado em 1977, empregou a expressão «direito à filosofia», tendo como referente o Homem, enquanto sujeito epistémico.

Portanto, Marcien Towa e Eboussi-Boulaga inscrevem-se assim na lista de autores que refutam, especialmente, o espectro  semântico do «direito à filosofia» de Georges Gusdorf, que negava a historicidade do Muntu, do Homem Africano, sob inspiração das  teses de Hegel formuladas nas suas Lições sobre a Filosofia da História. Reduz-se aí a Filosofia à mera «alegoria da potência do vencedor», do colonizador europeu, «ou simplesmente como um dos factores da sua superioridade, de que está desprovido o vencido, cuja ausência faz daquele o centro do homem». É aquilo a que se designa por «racialização da filosofia» que se «preserva e prossegues cobertura da abstracção e da pureza do pensamento».

 
Jacques Derridano debate

A UNESCO retomou as formulações dos filósofos camaroneses para dar título a uma mesa-redonda realizada em 23 de Maiode 1991: «O direito à filosofia do ponto de vista cosmopolita». Para introduzir o debate da referida mesa-redonda, foi convidado o filósofo francês Jacques Derridaque, tendo usado a expressão num seminário ministrado em 1984 no Collège International de Philosophie, já em 1990 a empregaria como título de um volumoso livro, Du Droit à la Philosophie. É curioso constatar que este título produz ecos de um sintoma da crise identificada pelos filósofos camaroneses. Mas a formulação de Eboussi-Boulaga situa-se nos antípodas do que o francês Georges Gusdorf queria dizer no seu artigo publicado em 1953, quando, no contexto do debate desencadeado sobre a filosofia Bantu de Placide Tempels, ironicamente se referia a uma crise de desagregação por que passava a filosofia, a partir da qual emergia um «direito à filosofia» que se transformava em mais um dos «direitos humanos». Mas em «A Crise do Muntu – Autenticidade Africana e Filosofia», publicado em 1977, Fabian Eboussi-Boulaga empregava a expressão, «direito à filosofia», referindo-se ao facto de se tratar de um elemento definidor da vocação epistémica humana. Pode dizer-se que o filósofo camaronês tem como pressuposto uma ideia geral do direito epistémico cujo titular pode ser um ente colectivo, uma determinada comunidade humana, qualquer que ela seja. Por outro lado, à medida que se lê o volumoso livro de Jacques Derrida percebe-se que a sua abordagem tematiza o direito à filosofia, esmagadoramente no contexto francês.Concentra-se aíoseu esforço de problematização. Não é casual que para Derrida o «direito à filosofia» tem conexões com as relações que permitem passar do pensamento, da disciplina ou das práticas jurídicas à filosofia e às questões «quidjuris», isto é, a relação do direito e da filosofia. No fundo, ele entende que se está de igual modo perante uma crise do ensino da filosofia. Assim se explicam as ideias-mestras que estruturam a conferência proferida na cidade de Cotonou, em 1978, por ocasião do colóquio internacional de filosofia que reuniu filósofos Africanos dos países de língua francesa e inglesa.

Se por um lado, Jacques Derrida sublinhava o facto de as diferentes tradições filosóficas europeias serem afectadas por «abalos desconstrutivos», em contrapartida observava que no continente africanoos povos, as nações e os Estados definiam na prática «uma nova relação com a filosofia». Por isso, afirmava que, para não serem colonizados ou neocolonizados, os povos, as nações e os Estados,não deviam importar a «auto-repetição da filosofia ocidental».

Conclusão

Parece ser útil prosseguir o diálogo, agora interfilosófico, tal como sugere a leitura de Jacques Derrida. Tem interesse compreender as suas observações acerca da  crítica à ideia de importação e ao motivo oposto de não-importação das crises europeias, ou dos seus «modelos» de crise. O direito à filosofia, enquanto exercício de um direito epistémico, implica a assunção de um ónus da justificação.Nada de novo parece haver no diagnóstico que Derrida perante o auditório constituído por filósofos Africanos, em 1978. As preocupações de Eboussi-Boulaga e Jacques Derrida convergem, quando se coloca a hipótese de responder à pergunta: Quem tem medo da filosofia? Vamos interpretar esse cruzamento de perspectivas. O ensino da filosofia e a sua dimensão institucional são tópicos abordados por Eboussi-Boulaga, na sua problematização da «crise do Muntu». De Derrida, quero partilhar a curiosidade que emana do que ele considerava como característica permanente e estrutural da crise da filosofia, além dos aspectos europeus dessa crise da filosofia e o que designa por diferenças nacionais.


* Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 26 de Novembro, aqui republicado com a autorização do autor.


**Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 26/11/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/da-titularidade-do-direito-a-filosofia/

Marcos Carvalho Lopes

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