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“La justicia es para el de poncho”

Gonzalo Armijos Palácios (publicado originalmente no Jornal O Popular em 2015

É um conhecido ditado no meu país. A justiça se aplica ao pobre. E o pobre, tradicionalmente, é membro de alguma das muitas comunidades indígenas cuja vestimenta inclui o tradicional poncho. Lá como cá, o engravatado, membro da elite, dificilmente paga pelo que faz. Pode até ser processado, mas dificilmente condenado. E se condenado, cumpre a pena em liberdade ou uma punição “alternativa”. Não digamos os privilegiados que têm o amparo do foro especial, que gozam de imunidade parlamentar etc. A justiça é para o índio, o negro, o pobre. Tanto aqui, no Brasil, como na América Latina. Mas nos Estados Unidos não é diferente, como provam os episódios sobre os que escrevi nos últimos meses e que discutem a violência policial contra crianças, jovens, mulheres, todos eles negros inocentes, desarmados, mortos das mais variadas formas. Por “mais variadas formas” quero dizer, por exemplo, assassinados pelas costas, mortos sob custódia policial ou crivados a bala pelo crime de virar na esquina sem dar sinal, dirigir com uma lanterna quebrada ou brincar sozinho num parque.
  Como faço todos os dias de manhã, entrei nos jornais que costumo ler e encontrei uma matéria no The Huffington Post que traz a seguinte manchete: “27 coisas que uma pessoa negra deve aprender antes dos 12 anos de idade”. A matéria começa assim: “Estourou a notícia na segunda-feira à tarde de que mais um júri se absteve de indiciar o responsável pela morte desnecessária de uma pessoa negra.” É… “mais um júri se absteve de indiciar”, pois faz parte do sistema ter mecanismos para livrar os responsáveis pela morte de inocentes. Especialmente se os responsáveis são brancos; e os mortos, negros. Poucas linhas depois: “A mensagem é clara: a vida de um negro é mais descartável do que nunca”.
  O que uma criança negra deve aprender, entre outras coisas, é, em primeiro lugar, “ter respeito pela polícia, aconteça o que acontecer”. Por “aconteça o que acontecer” deve-se entender respeitar os policiais mesmo “quando te ameaçam injustamente, ou te prendem, ignoram procedimentos básicos e usam força excessiva”, ou seja, quando te agridem até a beira da morte ou te matam aos poucos com descargas elétricas. Em segundo lugar, deve aprender que, mesmo assim, “isso pode não adiantar”, e, em terceiro, pior ainda, pode que nem ajude o negro “a salvar sua vida”. Aconselha-se, na medida do possível, a sempre usar terno e gravata! No entanto, deve sempre lembrar que, por mais bem vestido que esteja, sendo negro, de nada irá adiantar para não ser tido como “suspeito”. Deve lembrar que é sua “negrura” o que sempre fará que apareça como uma ameaça. Não deve esquecer que, antes mesmo de chegar à puberdade, sendo negro, será considerado um homem, não um garoto. Nem de que essas regras não se aplicam aos garotos brancos. É melhor que não apareça em festas com piscina. (Pode ocorrer o que lhe aconteceu àquela garota negra que, mesmo desarmada e de biquíni, foi violentamente jogada contra o chão por um policial branco que a agrediu e a prendeu contra a calçada sentando-se em cima dela.) Deve, também, tentar andar com cuidado (isto é, imitando o jeito de andar e o movimento dos brancos). Caso contrário, “há uma chance de ser morto pela polícia antes mesmo de ser arrestado”. Não pode esquecer que “será culpado pela própria morte”. Deve saber que, se for morto sem motivo — como muitos têm sido pela polícia —, não deve esperar que a justiça seja feita. Que tampouco adiantará que sua morte seja registrada por câmeras e exibidas 24 horas por dia no país e no mundo inteiro. Que o mais provável é que seus algozes não sejam julgados, ou declarados culpados se julgados, e que fiquem livres e impunes. Deve ter consciência de que nenhum destes conselhos deveria ser considerado “Ok”. Ou seja, de que “nenhuma pessoa negra deveria receber estas advertências e aceitá-las como um fato normal da vida. Que nenhuma pessoa negra deveria crescer se sentindo insegura ou achando que os negros devem provar sua própria humanidade”. Mas que, apesar disso “nós [negros], as aceitamos”. Como muitos esperam que os negros na América Latina e no Brasil também as aceitem.

José Gonzalo Armijos Palacios - Possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás.

Marcos Carvalho Lopes

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