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Mercy Oduyoye, a decana das teólogas africanas e suas discípulas

As teólogas africanas e a tarefa de pensar a África

Luís Kandjimbo |*

Em “Ideogramas de Ngandji”, um livro que publiquei em 2004, com uma segunda edição em 2013, dediquei algumas páginas à teologia africana. Destaquei especialmente a teologia católica. Por isso, interrogava-me acerca da possibilidade de a teologia estar ultrapassada enquanto dogma da actividade reflexiva sobre a dimensão transcendental da existência humana, à luz da dicotomia fé e razão, simplesmente.

Entretanto, esse par dialéctico dá lugar à tríade: fé, razão e cultura. Têm razão os que dizem que a teologia é sempre provisória, sempre foi e continuará a ser. Se a revelação de Deus foi o objecto da teologia. Hoje é a perquirição de Deus através do exercício hermenêutico que constitui seu objecto.

Desde 1956, após a publicação da obra dos padres africanos e das diásporas, “Des Prêtres Noirs s’Interrogent” (Os Padres Negros Interrogam-se), manifesto de uma teologia dos tempos da descolonização, se reconhece a ausência das mulheres dos espaços institucionais da reflexão e formação teológica. A viragem ocorre a partir de 1976 com a primeira reunião da “Ecumenical Association of Third World Theologians”, (Associação Ecuménica de Teólogos do Terceiro Mundo), dois anos após a sua constituição, realizada em Dar-Es-Salam. Data daí a vulgarização da “teologia da base” de que era defensor o bispo malawiano de Lilongwe e professor da Universidade do Malawi, Patrick Augustine Kalilombe. Logo depois, em 1977, tem lugar no Gana o Encontro Pan-africano dos Teólogos do Terceiro Mundo de que emana a Declaração de Acra. Assim, vão sendo esboçados os limites que demarcam o campo de uma teologia africana.
Numa definição lapidar formulada pelo bispo católico congolês Tshishiku Tshibangu, a teologia, como acto científico engajado e de engajamento, é a ciência do destino divino do homem. No plano epistemológico, alguns autores consideram a teologia como ciência hermenêutica em cujo centro se encontra a reflexão sobre a existência de Deus. Por outro lado, com a teologia faz-se hoje a advocacia do pluralismo no contexto da afirmação do discurso das mulheres, na relação de género, tendo em conta a hegemonia do discurso masculino e correspondentes representações.
A Declaração de Acra assinala definitivamente a emergência de novas teologias em África. São enunciadas três características em que elas se analisam: 1) teologia em situação; 2) teologia da libertação; 3) reconhecimento do papel activo das mulheres e igualdade em relação à produção teológica.
A presente proposta de conversa desenvolve-se em torno do último traço caracterizador: o princípio da igualdade das mulheres na produção teológica. Curiosamente, é na segunda metade do século XX que a mais importante das teólogas africanas, Mercy Oduyoye, de nacionalidade ganense, conquistou a sua notoriedade. Trata-se de uma mulher carismática cuja liderança incentivou o surgimento de discípulas que constituem uma verdadeira comunidade de teólogas africanas de gerações seguintes.
Portanto, pode dizer-se que a teologia feminista, que se consagra na década de 70 do século passado, conta hoje com uma presença africana, através das actividades desenvolvidas a nível do ensino e da investigação nos departamentos de filosofia, teologia e estudos religiosos das universidades africanas e de outras partes do mundo. O que só se torna possível devido a uma cada vez maior diferenciação académica das mulheres e a criação de escolas e cursos de teologia.
À luz da Declaração de Acra, dá-se igualmente um outro passo para o reconhecimento do papel das mulheres, com a ordenação institucionalizada de mulheres em funções ministeriais nas igrejas protestantes e reformadas, sobretudo. A inclusão é, neste sentido, um factor determinante.

Pioneira carismática
Mercy Oduyoye é uma teóloga que inscreve o seu nome em várias obras colectivas que tematizam a teologia da mulher africana. Além disso, inspira teses e trabalhos académicos e outras mulheres, reiterando igualmente a tese segundo a qual a teologia cristã africana é decididamente contextual.
Ela não hesita em sustentar que com o seu discurso constrói uma teologia que recupera a memória colectiva que permite compreender os papéis das mulheres da sua família. Assume a sua condição de mulher Ashanti e recusa-se a tomar como modelo o papel patriarcal do pai. Por essa razão, afirma: “Tenho que extrair os nutrientes da minha teologia do peito de minhas mães, cuja experiência de igreja e de vida está mais próxima da minha. Minha mãe e as mulheres de sua faixa etária conheceram a ocidentalização em vários graus. Elas perderam seus nomes e esperava-se que mesclassem suas identidades com as de seus maridos. A resistência deles é em si uma luta que devemos agradecer. Eles adoptaram os nomes dos maridos, mas não perderam suas identidades específicas.”
No capítulo intitulado “Jesus Cristo”, publicado na obra colectiva “Feminist Theology” (Teologia Feminista), editada em 2004 pela editora Cambridge University Press, Mercy Amba Oduyoye elabora um pensamento, partindo da sua leitura de obras de outras teólogas africanas. Em seu entender, Jesus tornou-se para as mulheres africanas um libertador no combate contra a cultura da misoginia. Jesus é libertador e salvador das mulheres em todos os contextos de opressão. Fortalece as mulheres em contextos de impotência, sendo amigo e aliado no contexto de alienação e dor que as mulheres enfrentam.

Círculo de teólogas africanas
Mercy Oduyoye demonstrava a sua capacidade de liderança quando, em Agosto de 1988, reuniu um grupo de mulheres africanas que se dedicavam ao ensino e à investigação no campo da religião e da cultura na sede do Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra, para formar o Círculo de Teólogas Africanas Preocupadas. O objectivo principal do Círculo era investigar as teologias das mulheres africanas, registar e publicar as suas pesquisas neste domínio. O Círculo foi lançado oficialmente em Gana em 1989. O discurso de abertura proferido por Mercy Oduyoye marca a génese da Teologia da Mulher Africana ou Teologia Feminista Africana.
Mercy Amba Ewudziwa Oduyoye é teóloga metodista.Nasceu no Gana, em 1934. Fez os seus estudos na Universidade de Legon, em 1963. Na Universidade de Cambridge, obteve a segunda licenciatura, em 1965. Possui o mestrado em dogmática pela Universidade de Cambridge, obtido na Grã-Bretanha, em 1969. De 1967 a 1979, foi Secretária de Educação de Jovens do Conselho Mundial de Igrejas. De 1987 a 1994, foi Secretária-Geral Adjunta. Leccionou na Universidade de Harvard, Estados Unidos da América, no Union Theological Seminary, Legon, Gana e na Universidade of Ibadan, Nigéria. Obteve graus honoríficos por várias universidades, nomeadamente, Universidades de Amsterdam (1991), Universidade de Stellenbosch, Universidade de Western Cape, em 2002 e Universidade de Yale, Estados Unidos da América, em 2008. É Directora do Instituto de Mulheres Africanas na Religião e Cultura no Trinity Theological Seminary do Gana. Publicou vários artigos e livros, entre os quais: Hearing and Knowing: Theological Reflections on Christianity in Africa (Nova York: Orbis Press, 1986) e Daughters of Anowa: African Women and Patriarchy (Nova York: Orbis Press, 1996) e co-editora de The Will to Arise: Women, Tradition and the hurch in Africa (Nova York: Orbis Press, 1992) e With Passion and Compassion: Third World Women Doing Theology (Nova York: Orbis Press, 1993)

Isabel Phiri e outras discípulas
Há uma nova geração de teólogas africanas suas discípulas, que lhe seguem as pegadas. É o caso da queniana Musimbi Kanyoro, que a substituiu na Coordenação Geral do Círculo de Teólogas Africanas, até 2002, e a malawiana Isabel Apawo Phiri, que assume a liderança, em 2003.Seguiram-se outras lideranças.
Esta última discípula de Mercy Oduyoye considera que a tematização do género permitiu que a associação tivesse contribuído para a educação teológica das mulheres africanas e o desenvolvimento de habilidades académicas para a escrita profissional e publicação de obras. Destaca o activismo para a justiça de género e o ecumenismo como pilares igualmente importantes, na medida em que o Círculo integra mulheres teólogas africanas de religiões africanas e outras como o cristianismo, islamismo, judaísmo e o hinduísmo.
Isabel Phiri ilustra que persistem as dificudades vividas pelas mulheres ordenadas de igrejas reformadas em matéria da justiça de género e sugere que se estabeleça uma parceria verdadeira entre mulheres ordenadas. Além disso, sublinha o facto de maioria das instituições teológicas não incluirem o género como ferramenta analítica de investigação e ensino de disciplinas teológicas. Em matéria de formação teológica, identifica quatro dimensões entre os desafios do Círculo: (1) redefinir a identidade das mulheres teólogas africanas; (2) promover a integração de mulheres no domínio dos estudos teológicos como membros do quadro permanente; (3) inclusão da teologia da mulher africana no currículo teológico; e (4) colaboração com teólogos do sexo masculino.
Isabel Apawo Phiri nasceu em 1957 no Malawi, é presentemente Secretária Geral-Adjunta do Conselho Mundial de Igrejas. É líder da Igreja Presbiteriana na Igreja da Escócia em Genebra, desde 2013, presbítera na congregação de Scotsville da Igreja Presbiteriana na África do Sul, desde 2000; membro da Igreja Presbiteriana Blantyre Sínodo Malawi da Igreja da África Central, desde 1970. Foi professora titular de teologia africana, directora do Centro de Teologia Construtiva e decana da Escola de Religião, Filosofia e Estudos Clássicos da Universidade de KwaZulu Natal, Pietermaritzburg, na África do Sul, e editora do «Journal of Gender and Religion in Africa». É licenciada em educação religiosa pela University of Malawi. Possui um mestrado em Estudos Religiosos pela University de Lancaster, no Reino Unido, e o doutoramento em teologia africana pela University de Cape Town, na África do Sul.

Angolanas e a teologia das mulheres africanas
No contexto da África Austral, auguro que no nosso País, a justiça de género encontre igualmente na reflexão teológica e filosófica um terreno para a concretização dos objectivos estratégicos da Agenda 2025 e das aspirações da Agenda 2063 da União Africana. É desejável que as novas gerações de filósofas e teólogas tenham mulheres angolanas nas suas fileiras, ao lado de Musimbi Kanyoro, Bette Ekeya, Mary Getui, Teresa Hinga, Hannah Kinoti, Anne Nasimiyu-Wasike e Nyambura Njoroge do Quénia; Teresa Okure da Nigéria; Elisabeth Amoah de Gana; Rose Zoe, Louise Tappa e Grace Eneme dos Camarões; Bernadette, Mbuy Beya e Justine Kahungu do Congo Democrático; e Brigalia Bam e Denise Ackerman da África do Sul; Musa W. Dube do Botswana.

*Ensaísta e professor universitário. M.Phil. (Filosofia), Ph.D. (Estudos de Literatura)

Publicado originalmente no Jornal de Angola em 04/10/2020  

https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/mercy-oduyoye-a-decana-das-teologas-africanas-e-suas-discipulas/

Marcos Carvalho Lopes

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