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Natal (ultra) cínicos

ensaio de Severino Ngoenha e Carlos Carvalho

Na linguagem corrente, cinismo poderia ser empregue para o silêncio do governo diante da demanda dos trabalhadores e da função pública, ou também aos obreiros das dívidas ocultas que contraíram, conscientes quer do prejuízo para o nosso miserável país quer de que são os pobres que as iriam pagar; cinismo seria também pertinente para os que desviaram dinheiro das vítimas do IDAI ou ainda para os que, sem escrúpulos nem vergonha, se apoderaram do dinheiro das ajudas para as vítimas da guerra de Cabo Delgado.

Porém o cinismo tem uma história e uma conotação filosófica muito mais nobre:  o kynismos (cinicus em latim) – fundada por Antístenes, discípulo de Sócrates – era uma corrente filosófica cujos membros pautavam por uma vida virtuosa (não de bens materiais e de reconhecimento alheio), e praticavam a autarkeia (auto-suficiência) e apatheia como valores essenciais perante as vicissitudes  da vida, que eles consideravam a única necessidade para a eudemonia (felicidade). É famosa a anedota rezando que Diógenes (representante mais famoso e  arquétipo do cinismo grego) interpelado pelo Alexandre, o grande, sobre o que ele necessitava, retorquiu  ao monarca intimando-o de sair da frente para continuar a apanhar a massana  (o sol), a única coisa que precisava. Em 1983, 200 anos após a publicação da Crítica da Razão Pura de Kant,  o filósofo Peter Sloterdijk (considerado um dos grandes inovadores da filosofia contemporânea) publicou a “Crítica da Razão Cínica”. O cinismo que faz objecto da sua crítica,  não é o cinismo antigo, clássico. Apesar dele reconhecer a genealogia e a história do kynismos, ele vislumbra e denuncia no mundo ocidental moderno, o nascimento e a prevalência de uma nova forma de cinismo que dão hoje um novo significado ao termo e explicam as atitudes e contra-valores que se escondem, doravante, por detrás deste termo. A razão cínica – resultante da desconstrução e crítica do Esclarecimento – poderia se chamar razão corrupta, desavergonhada, imoral, hipócrita (Dayse Mayer);

A tese de Sloterdijk é que o Ocidente perdeu as suas ilusões iluministas (com conotação racional e progressista) e se apresenta hoje como uma falsa consciência que se generaliza nos diferentes campos  e tornou-se um fenómeno de massas, uma verdadeira ideologia cínica (Slavoj Zizek), que nem sequer oculta – como fazem as ideologias clássicas – os seus interesses particulares, por detrás de uma aparente universalidade ideológica. Segundo este filósofo, o cinismo é a ideologia de uma época na qual o poder (governantes locais, comunidade internacional, FMI, BM, Total e quejandos) não teme a crítica que desmascara os seus mecanismos de ludíbrio, uma vez que aprendeu, -cinicamente- a ignorar, desvalorizar, desvirtuar, driblar a crítica que permite revelar/desmascarar as artimanhas do seu funcionamento e perpetuá-los como se nada fosse.

O sujeito (indivíduos e instituições) cínico tem perfeita ciência da distância entre a máscara ideológica e a realidade social mas, apesar disso, continua a insistir na máscara.

Marx, para descrever essa atitude na burguesia do seu tempo dizia: eles não sabem o que fazem. Essa frase referia-se à falsa consciência do domínio das relações reificadas e a alienação incapaz de compreender a totalidade das estruturas causais que suportam as reproduções sociais em todas as suas esferas de valores. Neste quadro, o papel da crítica seria pôr em cena e revelar  os mecanismos que dão sentido à realidade .

Sloterdijk, num élan cruel de descaramento e sinceridade, muda a fórmula marxiana para adequá-la às condições contemporâneas; ao invés de “eles não sabem o que fazem”, ele diz que “ eles sabem muito bem o que fazem, mas  fazem-no na mesma “. Eles estão esclarecidos, cientes de que as suas razões egoístas são as principais causas da miséria, fome, guerras,  mortes  e poluição no mundo.

O cinismo contemporâneo é uma consciência que conhece os pressupostos que determinam o seu agir a as suas consequências e, mesmo assim, sofisticou uma linguagem hipócrita e pré-textual para, com sofismas, justificar as suas ações. O cinismo não é só uma questão de ordem moral, é um padrão de racionalidade (que se abstém da busca da verdade e da justiça) que conhece os pressupostos anteriormente ocultos mas não encontrou razão suficiente para reorientar a sua conduta. No cinismo contemporâneo a  hipocrisia faz parte do discurso e internaliza todo e qualquer tipo de discurso crítico. O FMI e o BM, por exemplo,  (com conselhos, que são de facto ordens perversas, destroem as nossas parcas economias mas também especializaram-se em vir, a posteriori, reconhecer os seus supostos (falsos e propositados ) erros.

Da crítica, o novo cinismo passa a ser a justificação perversa dos senhores, a lógica da dominação e da justificação dessa dominação, o que apaga a fronteira entre a liberdade e a domesticação ( Rodrigo Petrônio). A consequência disto, é que a crítica perde o seu poder desmistificador, desvelador da verdade por detrás da mascara ideológica.  Com pessimismo, ou talvez realismo, Zizek conclui que já não há como subverter a consciência cínica, através de uma leitura que confronta um discurso superficial por um discurso consistente e fundado, capaz de identificar pontos de inconsistência. Assim, ele associa o cinismo  ao que ele considera a “ falsa consciência esclarecida”. Neste sentido, a dialética clássica, cujo procedimento consiste em desvendar o que está implícito (pressuposto) nas manifestações postas, perde a sua eficácia e até se torna impossível.

Esta falsa consciência esclarecida, que se desdobra (resulta) em indiferença sobre a sorte do resto da humanidade e até da natureza ( Hans Jonas), leva o filósofo alemão (e com ele Zizek) a desconfessar a importância e pertinência da dialética, como forma argumentativa para meter em evidência/explicitar/desvelar  o que está escondido/implícito/velado.

O que faz espécie, é que a Dialética de Esclarecimento (Adorno e Hoikheimer) e a Crítica da Razão Cínica (Sloterdijk e Zizek) tenham, ambas, aparecido (cada uma no seu tempo) como novidades, o que é revelador do etnocentrismo que habita os iluminados ocidentais. Habermas (da última geração da escola de Frankfurt) pretende ainda salvar o Iluminismo, defendendo que a modernidade é um processo inacabado (Discurso Filosófico da Modernidade); a miopia etnocêntrica que o(s) habita (como já habitava o próprio próprio Kant) impede-o(s) de ver a violência (Enrico Dussel ) e o espírito de potência (Nietzsche) do Ocidento-centrismo a partir da sua genealogia – do humanismo até ao jus naturalismus de Grotius – que conviviam bem com a opressão e não hesitaram a pôr como um dos alicerces do direito internacional a Ius ad bellum (direito à guerra ‘justa’). Apesar da crítica que faz ao Iluminismo,  a dialética do esclarecimento assim como a falsa consciência esclarecida que se lhe opõe, ambos permanecem vítimas de uma epistemologia racialista e, sobretudo de uma filosofia do Homem/mundo Unidimensional ( Herbert Marcuse).

Provocar colossais dívidas para obrigar países a uma ulterior dependência, expulsar/deslocar toda uma população (Mocímboa da Praia)  que não é concorrente em nada e só pede o mínimo humano para sobrevier, provocar guerras para se apropriar do gás – com pretextos jihadistas – que matam literalmente milhões de pessoas, enterrar pessoas vivas em minas (Montepuez), expulsar homens para os substituir por animais (parques), não é cinismo mas crueldade, perversidade, equivalente  ao  que Hannah Arendt, na esteira de Kant, chamou ‘mal radical’.

O maior fracasso do Iluminismo não é uma questão linguística, retórica ou de teoria de conhecimento mas antropológico/humanitas, é não ter conseguido emancipar o ocidente dos seus demónios: a vontade de potência (Nietzsche) que se desdobra numa postura sistémica de violência, veleidades de conquista, de dominação e de supremacia.

Como antídoto ao cinismo moderno Sloterdijk sugere, para o Ocidente,  a – impossível – redescoberta das virtudes do kynismos antigo. Se para o pervertido Ocidente isso parece aporético,  mais do que nunca, é necessária para nós a dialética e uma filosofia da África, a fim de desvendar (desmascarar) e desconstruir o cinismo moderno europeu que nos instrumentaliza, forçando-nos uns contra os outros, impondo-nos regimes de opressão, assediando governos – usando até ONGs – ao ponto de obrigar (os mais patrióticos) a posturas defensivas que resvalam em autocracias, que programam, constroem e impõem (com o sua biopolítica e neoliberalismo) a  miséria do mundo. Denunciar este malefício estratégico é fundamental para nos libertar’ do fideísmo (em relação aos conselhos de ‘peritos’ e ‘conselheiros’) e, sobretudo, abandonar, com as nossas oposições teleguiadas, a luta  de nós conta nós, a favor de uma unidade de razão e vislumbrar (e valorizar) nas nossas (pequenas) histórias de unidade, um recurso de libertação…

A premissa maior (o ponto de partido) do nosso silogismo dialético poderia ser a sentença (anátema) de Césaire: o Ocidente trapaceia com os seus princípios.

Não se trata de atitudes e posturas de um passado, não ultrapassado (escravatura, opressão, guerras…), mas da  sua responsabilidade nos  nossos sofrimentos de hoje.

Dos cínicos hidrocarbonetados/ grafitados/ rubinados/ drogadistas – com a boca na retórica de paz e direitos humanos mas com as mãos no fabrico de armas e guerras – não podemos esperar nenhum Natal…



Severino Ngoenha, Carlos Carvalho

Marcos Carvalho Lopes

4 Comentários

  1. Respeitosos cumprimentos ao digníssimo professor.
    Com efeito, aguardemos então o fastígio, o zénite, da hipocrisia quando “num país não distante daqui” for proferido o estado da nação.

    “Eles sabem muito bem o que fazem, mas fazem-no na mesma “.
    Sempre souberam, são ratos, autênticos ratos de porrão.

    • Sigo bem a crítica ao iluminismo, mas a solução parece frágil l: “necessária para nós a dialética e uma filosofia da África, a fim de desvendar (desmascarar) e desconstruir o cinismo moderno europeu que nos instrumentaliza..”
      Seria possível isolar uma África não cínica de outras em que o mal radical está bem sedimentado ?

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