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O Egito e a Comunicação na História da Filosofia

Filomeno Lopes

Essa é uma versão da primeira secção do capítulo “A Comunicação na História da Filosofia” do livro E se l’Africa scomparisse dal mappamondo? Una riflessione filosofica (2009, p. 195-196).

A história da filosofia é como um todo a história da busca da salvação e da cura humana: isto é, nasceu como uma tentativa de tornar cada vez mais humana, em maior harmonia com a força vital e, portanto, humanizar e curar os seres humanos para garantir o triunfo da vida sobre a morte. A reflexão filosófica, portanto, é a demonstração da capacidade que o ser humano tem de se tornar cada vez mais humano. Agora, olhando para a história da filosofia em geral – aquela em que a história da filosofia africana moderna e contemporânea também se encaixam – percebemos que, em suma, que a comunicação foi uma questão que apareceu tardiamente e, de todo modo, muito depois das ciências da comunicação, que nas últimas décadas cresceram dramaticamente. No entanto, um olhar mais atento à história da filosofia é suficiente para perceber que este não é o caso. Os antigos núbios, etíopes e egípcios não queriam ensinar nada além da arte de se comunicar consigo mesmo, com Deus, com os deuses, com o ambiente circundante, com os outros ligados pelo mesmo destino humano de morte e vida abençoada. Mas sobretudo o Egito, terra de Kemet, foi o lugar do encontro comunicativo para o triunfo da vida sobre a morte: aqui diferentes culturas africanas e mundiais encontraram-se e ofereceram o melhor que se podia oferecer naquele período particular para o bem da humanidade. Os habitantes do Vale do Nilo, de toda essa realidade nilótica, por assim dizer, sempre acreditaram que o conhecimento era a rua, o caminho privilegiado que levava à verdadeira realização da vida como ato comunicativo existencial e existencial e, consequentemente, também à comunicação com o horizonte divino. Muito antes dos gregos, especialmente dos filósofos, eles desenvolveram os meios possíveis e os caminhos vitais, como a arte, a ciência, o método, a teoria, a filosofia, a religião, a espiritualidade etc., que permitem ao muntu melhorar a natureza de seu ser e de sua ação comunicativa na terra.[195]
Os filósofos gregos começaram então a sua aventura filosófica precisamente a partir de um horizonte comunicativo: primeiro abrindo-se ao mundo nilótico, aprendendo nos Templos dos Mistérios, nas Casas da Vida e nas várias escolas epistemológicas egípcias tudo o que era essencial para vencer a batalha fundamental da vida contra a morte, e melhorar o ser comunicativo, a capacidade e a ação das populações no seio das sociedades gregas. Assim, os Sofistas, por exemplo, só queriam ensinar a arte de comunicar num regime democrático, a polis grega, numa altura em que o mito estava a ser desafiado ou, no mínimo, já não tinha qualquer força persuasiva.
Para os etíopes e núbios, os aspectos éticos da ação comunicativa endógena estavam no centro do tema comunicativo; a retidão perante Deus e a própria comunidade eram elementos essenciais para qualquer ato comunicativo digno de ser considerado como tal. Esta mesma preocupação ética de alguma forma também se filtra nas reflexões sobre a ação comunicativa endógena no Egipto do período faraónico e do antigo império, especialmente através da filosofia de maat, ou seja, a centralidade do aspecto da verdade capaz de [gerar] justiça e harmonia social como fundamento de todo o ser e agir comunicativo. Esta capacidade de concentração no horizonte prático da comunicação significa que, a começar pelas próprias ideias de Deus, muntu e do universo, tudo é concebido holisticamente, inclusive, numa constante relação de interdependência. Conceitos como ankh, significando ao mesmo tempo vida, viver, presença e existência; seneb, significando bem, bem-estar, saúde; djed, significando estabilidade; heheh, significando eternidade; neter o deus, o divino, divindade; e finalmente meri, que é o amor, ser amado; são as chaves para compreender o que significa ser e agir comunicativamente numa sociedade fundamentalmente maatica. Para este tipo de sociedade, o ser humano e as suas interações positivas são as pedras angulares sobre as quais se pode construir um mundo pacífico e amigo do homem, em suma, um mundo entendido essencialmente como uma comunidade, uma família humana. Na esteira da filosofia de maat, entendida como retitude, justiça, harmonia e equilíbrio social, a ação comunicativa do muntu está fundamentalmente orientada para a busca constante da harmonia e do equilíbrio como garantias da estabilidade e da coesão social, a mesma centralidade da estabilidade e da coesão que vemos hoje voltarem a ser objeto de debate nos processos de construção da paz e reconciliação nacional em diferentes partes do continente africano. Em suma, desde a antiguidade etíope, núbia e egípcia até aos nossos dias, a questão ética continua a estar no centro da reflexão filosófica sobre o ser comunicativo e o agir do muntu [196].


Filomeno Lopes é nascido na Guiné-Bissau, jornalista da Rádio Vaticano e Doutor em Filosofia e Ciências de Comunicação Social. É autor de importantes obras sobre a Filosofia Africana como “Filosofia em volta do fogo” (2001), “Filosofia sem feitiço” (2004), “E Se a África desaparecesse do Mapa Mundo?, Uma reflexão filosófica” (2009), “Da mediocridade à excelência: reflexões filosóficas de um imigrante africano” (2015), “Filodramática: os Palop, entre a filosofia e a crise de consciência histórica” (2019) e “Non amo i razzisti dilettanti” (2020).

Marcos Carvalho Lopes

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