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PARA QUE FILOSOFIA XVI – Filosofia: a fuga da transitoriedade inessencial

A via que nos afasta da futilidade do efêmero e transitório passa pelo terreno da filosofia

Gonçalo Armijos Palácios

No último artigo falei sobre minhas convergências e divergências com Bochenski. Que alguém discorde do que outro diz não parece ter nada de extraordinário. O notável mesmo é o grau de certas coincidências. Nunca tinha lido Bochenski, pelo que fiquei realmente surpreso quando me deparei, não com a série de divergências que tenho com ele, mas com a semelhança de certas idéias. No final da seção sobre filosofia no seu Diretrizes do pensamento filosófico*, Bochenski afirma que “Tudo, portanto, parece indicar que a filosofia não pode ser identificada com as ciências particulares, nem ser restrita a um campo ou objeto único. Ela é, num certo sentido, uma ciência universal; seu campo de pesquisa não é, como nas outras ciências, restrito a alguma coisa limitada e determinada.” (p. 29) Com efeito, o pensar filosófico não tem fronteiras. Tudo, em princípio, pode ser objeto de reflexão filosófica. O que inclui as próprias ciências. Não unicamente porque existem departamentos de filosofia das ciências que formam doutores em filosofia da física, filosofia das matemáticas, filosofia da biologia etc., como pelo fato de o próprio físico, matemático ou biólogo se deparar com limites que só pode ultrapassar refletindo filosoficamente. E isso é notável: os cientistas, quando chegam às fronteiras de seus domínios, vêem-se na necessidade de, de alguma maneira, filosofar.

Bochenski se pergunta, a seguir, o que, então, distingue a filosofia das outras ciências. E fornece duas resposta, a meu ver, adequadas e que merecem nossa reflexão. A primeira diferença diz respeito ao método. Não há nem pode haver método único ou privilegiado na filosofia. Apesar de alguns grandes filósofos terem insistido na necessidade de um e somente um método filosófico e mesmo apresentado propostas sobre eventuais métodos privilegiados, o próprio fato de vários filósofos terem proposto — e seguido — métodos diferentes entre si já mostra que nenhum deles é o único possível. Aqui os estudantes de filosofia têm de ter muito cuidado porque em alguns departamentos de filosofia, de forma autoritária, tenta se impor esta ou aquela metodologia como a única, a melhor, a absoluta. O resultado disso é tolher, afunilar, aprisionar — se não definitivamente anular — a iniciativa filosófica dos alunos. A melhor vacina contra essa doença do método exclusivo é ler os próprios filósofos e perceber até que ponto são diferentes e opostas as metodologias que seguem. Cada um, de fato, tem seu jeito de ser e pensar, o que é acompanhado pela metodologia que emprega — metodologia esta na maioria das vezes inconsciente e sobre a qual a quase totalidade dos grandes filósofos nem se ocupa.

A segunda diferença tem a ver com o fato de a filosofia ser, numa palavra, um pensamento fundamental. Isto é, a reflexão filosófica tende a chegar ao fundo dos problemas, de tocar o fundamento último das questões que se preocupa por resolver. Em palavras de Bochenski: “Quando [a filosofia] considera um objeto, ela o encara, por assim dizer, sob o prisma dos limites, dos aspectos fundamentais. Nesse sentido, a filosofia é a ciência dos fundamentos da realidade.” (p. 29) Mesmo aquelas escolas antimetafísicas, como o neopositivismo e o primeiro Wittgenstein, tentaram chegar ao fundamento das coisas. No caso dos filósofos citados, tal fundamento era a estrutura última da linguagem e do mundo. Portanto, há algo, numa palavra, que se quer transcender e um lugar ao que se pretende chegar, supondo-se que esse lugar é o mais perto do fundamento último do que se quer entender ou pesquisar. “Já se vê”, diz Bochenski, “que a filosofia é uma ciência radical — no sentido em que ela vai às raízes das questões muito mais profundamente que qualquer outra ciência; lá onde as outras se dão por satisfeitas, ela continua a indagar e a perscrutar”. (p. 30)

O valor da filosofia pode ver-se nesses aspectos mencionados. Ela é um dos caminhos em que o nosso anseio de transcendência pode percorrer com a esperança de chegar. Se não é a via privilegiada, pelo menos é uma das vias para transcender o imediatismo e a futilidade do transitório e efêmero. A filosofia, como o impressionismo na pintura, pode até pensar o efêmero, mas ao fazê-lo, de algum modo fixa-o no permanente, congelando-o no eterno estar do transitório.

  • Bochenski, J.M. Diretrizes do pensamento filosófico. São Paulo : EPU, 1977.

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção

Marcos Carvalho Lopes

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