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O caso Althusser IV: A primeira vez de um filósofo

Na demência, sexo e filosofia podem se misturar para produzir estranhos resultados

Finalizei o artigo da semana passada com algumas considerações sobre uma das “virtudes essencialmente universitárias” que Althusser aprendera de seu mestre Guitton e que mais tarde fizeram “grande parte de meu sucesso”.1 A segunda “virtude” era “a arte (sempre um artifício) de compor e redigir sobre qualquer assunto, a priori, e, como que por dedução, no vazio, uma dissertação que se sustente e convença”. É bom lembrar, neste contexto, a diferença que estabelecera o velho Platão entre o filósofo e o sofista. A arte do sofista é, precisamente, a de convencer e uma de suas características era a de ser um “poligramático”, um “sabe-tudo”, alguém capaz de discutir sobre qualquer coisa e defender qualquer tese, a priori, sem fundamento, a não ser o poder retórico, e sem o menor interesse pela verdade. O filósofo, pelo contrário, tem uma paixão e um compromisso com a verdade. Esta é a grande diferença. Essa falta de compromisso com a verdade é uma das imposturas que Althusser reconhece ter assimilado muito bem como parte da tarefa universitária. Referindo-se a Guitton, e ao que aprendera dele, Althusser continua: “Se passei com o sucesso que passei no concurso da [Escola] Normal, e depois no agrégation [concurso para professor] de filosofia, é exatamente a ele que devo. Pois ele me confiava … o conhecimento … dos artifícios apropriados para que eu fosse reconhecido (mesmo sendo como impostor) dentro da universidade, em seu mais alto nível”. (p. 88-89)

Esses “artifícios apropriados”, em suma, são os de escrever convincentemente, “de compor e redigir sobre qualquer assunto, a priori … no vazio …”. (p. 88) É esse tipo de discurso que o grande público não sabe reconhecer como o que é, como uma fraude. Isso, entre outras razões, porque poucas pessoas lêem e muito poucos o fazem com profundidade. E quantos realmente se interessam pela verdade? Não muitos. Mas Althusser sabia muito bem da diferença entre verdade e fraude — entre, por um lado, buscar a verdade por meio da pesquisa própria, olhando e refletindo sobre as coisas e, por outro, criar teorias “por ouvir dizer”, recolhendo conceitos “de passagem” e dissertando a priori sobre qualquer assunto, “no vazio”, sem fundamento. Essa diferença Althusser conhecia por ter-se decidido pela via da impostura. Por isso, confessa que “desde então formei da universidade, bem como de mim, uma idéia pouco gloriosa e respeitosa, que jamais me abandonou …”. (p. 89)

O fio condutor destes artigos, o leitor não pode esquecer, é o da relação entre verdade e honestidade, por um lado, e impostura e fraude, por outra. A honestidade de quem busca a verdade e a impostura de quem a falsifica. Trata-se, assim, de que o leitor fique por dentro de uma das grandes imposturas e falsificações do pensamento contemporâneo e do trabalho acadêmico fraudulento.

Assim, para entendermos os alcances e os limites das propostas teóricas de Althusser — como, por exemplo, sobre ideologia — é preciso ler as passagens nas quais ele mesmo conta seu drama e confessa suas imposturas.

Tínhamos parado em 1939, quando ele fez seu concurso para professor da Escola Normal Superior de Paris, cargo que só viria a ocupar em 1945. Entre esses anos temos os relatos das suas experiências como prisioneiro dos alemães. Nessa etapa, além da palavra “impostura”, outro termo aparece com freqüência: medo. Quem espera um prisioneiro heróico e valente vai se decepcionar. Pelo que ele mesmo conta, Althusser não passou de um prisioneiro medroso que não teve sequer a coragem de fugir nas várias oportunidades que se lhe apresentaram. A velha tendência a seduzir o professor reaparece mais uma vez com seu “protetor”. Decide “seduzir” o representante dos prisioneiros frente aos alemães, um tal de Daël. Reproduzo a seguinte descrição que Althusser faz de Daël, não pelas eventuais implicações sexuais, mas pelo costume de se apropriar e amparar na figura admirada — o que faria depois com Marx. Althusser descreve seu protetor assim: “Daël, aquele homem de dois metros de altura, carinhoso comigo como uma mulher (a verdadeira mãe que eu não tivera), aquele ‘homem verdadeiro’…”. Dele, também, Althusser se converte no “pai do pai”, ou, melhor, “transformei-me ao mesmo tempo no ‘pai da mãe’…”. (p. 101) Esse trecho termina assim: “Percebo muito bem que estava, à minha maneira, muito ‘enamorado’ dele. Quando voltamos a França, e o deixei em Paris onde pouco depois me disse que ouvira com alegria ‘o ruído de saltos de sapato de uma mulher em seus braços pelas calçadas da cidade’, fiquei terrivelmente infeliz por causa dos ciúmes. Cheguei até a conjurá-lo … a jamais se casar. Ele prometeu, mas não cumpriu, deixando-me com minha dor”. (As aspas e as ênfases são de Althusser.) Reproduzo esse trecho, repito, porque, contra qualquer expectativa e por própria declaração, suas concepções filosóficas, aparentemente puramente teóricas, são decorrentes de uma sexualidade mal (ou nunca) resolvida — como o veremos claramente depois.

O Começo do Drama — Já li biografias de Althusser cujo autor sugere que as primeiras crises psicológicas são conseqüência do período como prisioneiro dos alemães. Nada mais longe da verdade. Foi um preso muito afortunado e acomodado com sua situação, segundo ele próprio diz. Em 1947, no entanto, começa seu “drama”, como ele o chama, e por outras razões. Foi pouco depois de ter conhecido Hélène. Vejamos como ele mesmo o rememora: “O ‘drama’ se precipitou alguns dias depois, quando Hélène … sentada em minha cama, ao meu lado, me beijou. Nunca tinha beijado uma mulher (aos trinta anos!) e sobretudo nunca tinha sido beijado por uma mulher. Veio-me o desejo, fizemos amor na cama, era algo novo, surpreendente, exaltante e violento. Quando ela foi embora, abriu-se dentro de mim um abismo de angústia que nunca mais se fechou”. (p. 114, grifos meus) A reação imediata é posta nestas palavras: “No dia seguinte, telefonei a Hélène para lhe avisar com violência que nunca mais faria amor com ela. Mas era tarde demais, a angústia nunca mais me deixou, e cada dia que passava tornava-a mais intolerável. Preciso dizer que não eram meus princípios cristãos que estavam em causa? Era outra coisa muito diferente! Uma repulsa extremamente surda e violenta … Os dias passavam e mergulhei nas primícias de uma intensa depressão”. (Meus grifos) Reproduzi esses trechos para entendermos o que aconteceu imediatamente depois. Pelo conselho da própria Hélène, a quem Althusser contara seu estado, internou-se no hospital Sainte-Anne. Foi quando, por decisão médica, foi submetido à eletrochoques — “sofri cerca de vinte e quatro choques, um a cada dois dias”. (p. 115)

É difícil não concluir que o que desencadeou esse estado de “demência precoce”, como disse um dos seus médicos, foi o atrevimento de Hélène. Foram o primeiro beijo e sua primeira relação sexual que provocaram nele aquela “repulsa extremamente surda e violenta” e o levaram à crise.

Depois, Hélène, quem provocara ou desencadeara esse primeiro “drama”, passa a ocupar o lugar da mãe e do pai, papel exercido por Graël durante a guerra. Graças a ela, torna-se “não só um homem, mas um outro homem, capaz de amar realmente, mesmo uma mulher e até essa mulher cujo primeiro odor me pareceu obsceno”. (p. 121)

Assim, a primeira fase, a fase das imposturas, é seguida pelo episódio de sua primeira relação sexual que termina na sua primeira crise, na primeira internação e nos primeiros eletrochoques. Recupera-se de algum modo, apaixona-se por Hélène e começa sua etapa de intelectual. Foi para entendermos esta etapa que se fez necessário percorrer o caminho que nos levou até aqui. Na próxima semana, suas imposturas como filósofo marxista.


1 O Futuro Dura Muito Tempo. São Paulo : Companhia das Letras, 1992, p. 88.


GONÇALO ARMIJOS PALÁCIOS, filósofo e professor da UFG, é articulista do Jornal Opção

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção

Marcos Carvalho Lopes

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