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O que nossos programas de televisão favoritos dizem sobre nós

por Dara Greenwood

A identificação com personagens e histórias fictícias em filmes e na televisão pode ajudar a nos sentirmos conectados com os outros ou a encontrar alegria, significado e conforto em tempos de estresse. Pode também ocorrer o oposto. No entanto, esse fenômeno pode ser uma força positiva, ao nos permitir reduzir os preconceitos contra grupos marginalizados.

Neste último ano, muitos de nós recorremos a programas de televisão familiares ou envolventes como uma relaxante distração das ameaças e do isolamento diário decorrente de uma pandemia. Em um nível básico, nossas “dietas” de mídia refletem nosso desejo de sermos entretidos, ou de escapar, mesmo que brevemente, do estresse pessoal, do tédio ou da solidão. 

No entanto, além de sua capacidade de nos permitir escapar de nossas vidas cotidianas, os programas e personagens com os quais passamos nosso tempo são importantes. Na verdade, pesquisas mostram que nossos programas e personagens favoritos muitas vezes refletem aspectos fundamentais de quem somos. Além disso, as maneiras específicas pelas quais nos envolvemos com eles são relevantes para o nosso bem-estar psicológico. 

Nossos programas e personagens favoritos muitas vezes refletem aspectos fundamentais de quem somos

Nós nos sentimos tipicamente imersos nos programas a que assistimos, ou desenvolvemos fortes laços emocionais com os personagens? Em vez de serem arbitrárias ou frívolas, nossas afinidades relativas à mídia são significativas e oferecem uma janela para nossas necessidades e tendências socioemocionais. Um conjunto de evidências empíricas mostra que o que assistimos afeta nossos pensamentos, nossas emoções ou nossos comportamentos.

Dois conceitos-chave das motivações psicológicas que nos atraem para a mídia de entretenimento foram estudados por psicólogos: o transporte e a interação parassocial

transporte(link is external) – um conceito concebido em 2000 pelos psicólogos sociais norte-americanos Melanie Green e Timothy Brock – é o processo pelo qual nós imergimos em uma história, incluindo a nossa identificação com os personagens. Parte do prazer que pode acompanhar o transporte inclui um sentido ampliado de identidade, que incorpora as experiências e as perspectivas dos personagens.  

interação parassocial(link is external) é definida como a amizade imaginária que desenvolvemos com personagens de mídia, à medida que os “conhecemos” ao longo do tempo. A expressão foi cunhada originalmente – pelo antropólogo Donald Horton e pelo sociólogo Richard Wohl, em 1956 – para descrever os laços que os membros do público desenvolviam com personalidades de mídia, como apresentadores de programas de entrevistas. Desde então, a ideia de um pseudo-relacionamento com uma personalidade de mídia tem sido aplicada a uma vasta gama de figuras midiáticas, tanto reais quanto fictícias – desde atletas, músicos e políticos, passando por estrelas da televisão e do cinema, até influenciadores de mídias sociais e youtubers

Compensação de sentimentos negativos 

Nossas tendências de engajamento com a mídia existem em um espectro. Alguns de nós são mais susceptíveis do que outros quanto a se sentirem transportados para programas de televisão e conectados a seus personagens. Em minha pesquisa, descobri que os indivíduos que pontuam mais alto em transportabilidade e relatam relacionamentos parassociais mais intensos também tendem a ter vulnerabilidades emocionais, como dificuldade de controle de impulsos ou ansiedade de relacionamentos. A mídia que consomem pode ser uma tentativa de compensar sentimentos negativos, além de complementar preocupações da vida real. 

Em um cenário de mídia cada vez mais diversificado, no qual uma Netflix ou outro serviço de streaming pode oferecer qualquer coisa desde “comédias irreverentes de TV” a “animes asiáticos” até “guerra e política na TV” ou “programas de TV baseados em livros”, pode ser difícil enxergar o gênero como mais do que um infinito leque de categorias. 

No entanto, quando consideramos os gêneros em um sentido mais amplo, surge alguma sincronia entre nossos próprios temperamentos e nossas preferências de mídia. Por exemplo, se for uma pessoa com uma pontuação alta na busca de sensações, é mais provável que ela consuma thrillers ou filmes de terror, segundo o pesquisador e autor dinamarquês de horror Mathias Clasen, em uma pesquisa realizada em 2020. Em contraponto, se for uma pessoa que pontua alto em “necessidade de afeto” – a motivação para abordar ou evitar situações indutoras de emoção – e que não se mantém afastada de emoções fortes, ela poderá estar mais propensa a consumir algo dramático. Isso foi inicialmente estudado. em 2001 pelos psicólogos sociais Gregory Maio e Victoria Esses. 

Algumas predileções de mídia podem ser emblemáticas de traços culturais, somando-se aos gostos individuais. Além disso, as mulheres são mais propensas do que os homens a consumir produtos midiáticos com temática romântica, o que pode refletir a socialização do papel de gênero e o aumento da frequência de protagonistas femininas. Os homens, por outro lado, são mais propensos a consumir produtos violentos por razões análogas. 

Causa ou efeito?

Para além do gênero, aqueles indivíduos com tendências mais agressivas também tendem a consumir produtos midiáticos mais violentos. Minha própria pesquisa descobriu que traços agressivos e maquiavélicos preveem uma maior afinidade com filmes e programas de anti-heróis e seus personagens – como o personagem sarcástico e violento Deadpool, homônimo do filme de comédia de ação de 2016, ou Walter White, o dócil professor de ciências que se tornou o perverso rei da metanfetamina da série de TV norte-americana Breaking Bad. Também descobri que mulheres jovens com maior nível de ansiedade corporal relatam maior “desejo de identificação” com suas personagens femininas favoritas. 

Grande parte do trabalho referido acima é correlacional, o que significa que é difícil descobrir em que direção aponta a seta causal – da mídia para o eu ou do eu para a mídia? No entanto, pesquisas experimentais e longitudinais sugerem que, em geral, a resposta são as duas coisas. Uma série de estudos conduzidos pela psicóloga Lynda Boothryd entre moradores de sete vilarejos na Nicarágua (2016)), descobriu que a visualização de ideais de corpos magros por meio da televisão ou da imprensa estava associada a uma maior aprovação de um corpo ideal magro – tanto ao longo do tempo quanto no período imediatamente posterior à exposição.  

Embora o transporte para mundos fictícios e o desenvolvimento de laços com personagens fictícias possa parecer bizarro, ambos os processos são teorizados como consequências naturais de nossa capacidade evoluída de extrair valores da experiência vicária – e de buscar ligações com pessoas queridas e com outras que compartilham de nossas opiniões. 

Afinal, nós aprendemos a navegar em nosso mundo social por meio da observação e da cooperação. Cabe ressaltar que o envolvimento emocional com a mídia é fortemente encorajado pela indústria do entretenimento. Como destacou o antropólogo cultural John Caughey, “seria peculiar se o público não respondesse à altura”. 

Reduzir preconceitos

O transporte e a interação parassocial podem trazer benefícios importantes para os grupos marginalizados da sociedade. Uma pesquisa realizada pelos psicólogos sociais Sohad Murrar e Markus Brauer concluiu que a exposição a um seriado de comédia que apresente personagens árabes/muçulmanos “diversos e relacionáveis” reduz o preconceito entre os espectadores norte-americanos brancos não muçulmanos – especialmente quando eles se identificam com o personagem-alvo. 

Identificar-se com o personagem-alvo reduz o preconceito

Da mesma forma, uma pesquisa realizada em 2020 por Bradley J. Bond, professor associado da área de estudos de comunicação da Universidade de San Diego, na Califórnia, descobriu que o “contato parassocial” continuado com personagens LGBTQ na série britânica Queer as Folk diminuiu a homofobia entre participantes heterossexuais – particularmente entre aqueles que iniciaram o estudo com níveis mais elevados de preconceito sexual. Portanto, uma vez que um personagem da TV se torna um “amigo”, é mais fácil para o telespectador acreditar que deve ser tratado com justiça. Além disso, ver na televisão representações diversas e positivas do seu próprio grupo social pode ter implicações poderosas para o bem-estar psicossocial.  

A conexão com programas específicos também pode ampliar nossos horizontes sociais. Minha própria estratégia para lidar com a pandemia incluiu me transportar para o cenário fictício de Outlander – uma saga de romance/aventura de viagens no tempo, na qual uma enfermeira da Segunda Guerra Mundial é transportada para a Escócia do século XVIII. Aparentemente, eu cheguei atrasada na festa – a série de TV em curso, que começou em 2014, tem uma vasta comunidade de fãs, em parte derivada da base de fãs da série de livros originais de Diana Gabaldon. 

Alguns fãs de Outlander chegaram a levantar centenas de milhares de dólares para instituições de caridade endossadas pelas estrelas do programa – o que ilustra seu potencial para comportamentos pró-sociais e o poder das conexões com personagens ou atores amados.  

Os nossos hábitos de mídia são organizados em diferentes padrões e graus no tecido de nossa vida cotidiana. Em muitos aspectos, o nosso envolvimento com a mídia não é menos complexo do que o nosso envolvimento com as realidades concretas da experiência e dos relacionamentos vivenciados.


Dara Greenwood
Psicóloga social e professora associada de psicologia na Vassar College, em Nova York, que estuda as implicações sociais e emocionais do engajamento com a mídia.


Publicado originalmente no Correio da Unesco (em acesso livre ao abrigo da licença(link is external) Atribuição-Partilha 3.0 IGO (CC-BY-SA 3.0 IGO) .): https://pt.unesco.org/courier/2021-3/o-que-nossos-programas-televisao-favoritos-dizem-nos

Marcos Carvalho Lopes

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