Luís Kandjimbo |*
Escritor
O discurso historiográfico produzido sobre a Filosofia Africana pode explorar melhor o mapa geofilosófico dos diferentes centros de difusão, ensino e investigação. Resultaria daí uma cartografia das escolas filosóficas nacionais. O interesse de tal esforço reside no conhecimento que se pode obter a respeito das potencialidades e resiliência das universidades africanas, em matéria de ensino, investigação e publicações dos professores. Este é o nosso tópico de conversa
Critério de periodização
Na historiografia filosófica, as escolas filosóficas são classificadas de acordo com um determinado conjunto de indicadores. De um modo geral, recorre-se a critérios como os seguintes: 1) origem e actividade associada à figura tutelar de um fundador; 2) denominação determinada pelo lugar em que se situa a sua sede; 3) instituição formal ou informal fundada em normas jurídicas e convenções morais das comunidades em emergem; 4) dogmas filosóficos específicos que modelam comportamentos e atitudes dos seus membros; 5) práticas particulares do fazer filosófico ou filosofar; 6) proeminência de determinada corrente de que deriva a sua denominação.
Em África, o professor Théophile Obenga constitui uma referência, na medida em que,inscrevendo-se na linha de Cheikh Anta Diop (1923-1986), ele articula um discurso de rupturano domínio da historiografia filosófica, inaugurando uma nova orientação para a Filosofia Africana com os seus dois livros “La Philosophie Africaine de la Période Pharaonique. 2780-330 Avant NotreÈre”, (A Filosofia Africana do Período Faraónico. 2780-330 a.C.) (1990), “L’Égypte, La GrèceetL’École d’Alexandrie. Histoire Interculturelledansl’Antiquitéaux Sources Égyptiennes de La Philosophie Grecque”, (Egipto, Grécia e a Escola de Alexandria. História Intercultural na Antiguidade. Fontes Egípcias da Filosofia Grega), (2005). Outra proposta metodológica neste domínio africano é formulada pelo filósofo camaronês Nsame Mbongo que, à luz de princípios directores e fio condutor da História da Filosofia Africana, introduz o conceito periodológico de “ciclo”. Assim, o filósofo congolês Théophile Obenga, destaca cinco períodos: i) Período faraónico; ii) Período das escolas de Alexandria, Cirene e Cartago; iii) Período magrebino; iv) Período medieval de Tombuctu; v) Período moderno e contemporâneo. O camaronês Nsame Mbongo entende que a História da Filosofia Africana pode ser analisada em três grandes ciclos: “Ciclo clássico”; “Ciclo medieval” e “Ciclo moderno e contemporâneo”.
Definição e história
Nos dicionários de filosofia, em língua portuguesa, a definição de escola filosófica condensa a integração de elementos identificadores de três critérios, dos que enunciámos, 1), 4) e 5). Neste sentido, uma escola filosófica constitui uma comunidade de pensadores fundada por um filósofo e que partilham dogmas filosóficos específicos cujos membros assumem comportamentos e atitudes que se traduzem em formas particulares de filosofar.
Ora, as releituras das fontes da História da Filosofia vêm demonstrando que, contrariamente ao que se propaga através dos discursos helenocêntricos ocidentais, as escolas filosóficas têm o seu modelo no Egipto Antigo. No dizer de Théophile Obenga, a “Grécia deve seus primeiros filósofos ao Egipto”. Entre o Egipto e a Grécia estabeleceram-se históricas relações intelectuais que permitem chegar a uma conclusão. Todos “os gregos altamente inteligentes”, tais como Tales de Mileto (c. 624 a.C. – c. 546 a.C.), Pitágoras de Samos (c.570 – c. 495 a.C), Empédocles de Agrigento (495 a.C. – 430 a.C.), Anaxágoras de Clazómenas (c. 500 a.C. – 428 a.C.), Platão de Atenas (428/427 – Atenas, 348/347 a.C.)e outros, seduzidos pelo prestígio e antiguidade da maior civilização que irradiava no mundo mediterrâneo, há milênios, beberam da fonte da sabedoria egípcia. Cronologicamente, sustenta Obenga, o Egipto é o grande centro das letras, das artes e das ciências que durante muito tempo acumulou conhecimentos técnico-científicos, atemáticos, astronómicos, ideias religiosas e filosóficas, combinadas com crenças, simbolismos e práticas mágicas.
Por isso, o historiador congolês afirma que em termos de filosofia e ciências (geometria, astronomia), “o papel civilizador do vale do Nilo foi muito preponderante no tempo dos pré-socráticos”. São eles: Tales de Mileto, o fundador da escola jónica; Pitágoras de Samos, o fundador da escola de Samos (escola itálica); Xenófanes de Colofão (570 – 475 a. C.), fundador da escola de Eleia; Euclides de Mégara (c. 430–c. 360 a. C.) discípulo de Parménides e Sócrates, fundador da Escola Erística. Isto quer dizer que, na Ásia Menor, as escolas filosóficas tinham sido criadas pelos discípulos dos sábios, filósofos e mestres do Egipto. Portanto, no século XXI, o ensino da História da Filosofia e seu desenvolvimento na Grécia deve ser expurgado de todos os helenocentrismos. Apesar do seu preconceito helenocêntrico, foi Diógenes Laércio (c.180- c.240 d.C.) que, na introdução ao seu livro “Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres”, afirmou que esta ocupação da filosofia teve origem entre os bárbaros e “os egípcios, por sua vez, dizem que foi Hefesto, filho do Nilo, quem fundou a filosofia, cujos representantes mais proeminentes são seus sacerdotes e profetas”.
Tipos de escolas filosóficas
Se tivermos em conta os seis critérios enunciados, existem igual número de escolas filosóficas:a) escolas centradas na pessoa do fundador e figura principal; b) escolas que têm a denominação da cidade onde está situada a comunidade; c) escolas que têm o nome do estabelecimento de ensino formal ou informal; d) escolas centradas nas ideias e princípios filosóficos específicos;e) escolas que se distinguem pelas metodologias filosóficas; f) escolas com uma diversidade cujo nome deriva da corrente proeminente.
Num artigo sobre o tópico, publicado em 2008, o filósofo sueco Sven Ove Hansson interrogava-se acerca do papel das escolas filosóficas e suasvantagens para a organização de atividades filosóficas. Ao responder, considerou que se revelava útil distinguir doistipos de escolas filosóficas. A primeira centrada na pessoa do mesmo mestre. A segunda centrada nas ideias, nos princípios e métodos.
Neste sentido, os dois tipos de escolas filosóficas que suscitam a atenção de Sven Ove Hansson correspondem a dois dos seis critérios enunciados, designadamente, a) escolas centradas na pessoa do fundador e figura principal e d) escolas centradas nas ideias e princípios filosóficos específicos. Portanto, em a) temos uma escola filosófica que constitui uma comunidade de pensadores fundada por um filósofo e em d) temos uma escola filosófica em que se partilham dogmas filosóficos específicos cujos membros assumem comportamentos e atitudes que se traduzem em formas particulares de filosofar.
No dizer de Sven Ove Hansson, as escolas filosóficas centradas na pessoa suscitam muitas críticas, na medida em que, tal como alertava Plutarco (c.46-120 d.C.), um discípulo corre o risco de ter o pensamento escravizado pela estima que dedica ao professor. As escolas centradas na pessoa são geralmente consideradas como isoladas do mundo externo, além de inspirarem a”adulação e aceitação inquestionável” das ideias e da personalidade do fundador. Relativamente às escolas filosóficas centradas em ideias, entende-se que podem contribuir para o pluralismo intelectual, garantindo melhores soluçõespara os problemas filosóficos.
Carácter institucional
O terceiro critério de classificação tem o seu fundamento na institucionalização do ensino da filosofia fundada em normas jurídicas e convenções morais das comunidades em que se desenvolvem as escolas filosóficas. Ao referir o carácter formal ou informal da instituição de ensino, pretendemos evitar a exclusão das escolas iniciáticas africanas em que se formam os sábios, de acordo com modelos endógenos que sustentam a caracterização da sagacidade filosófica, tal como defendia o falecido filósofo queniano Odera Oruka (1944-1995).
Na Europa, é à instituição formal constituída nos termos da lei e com estatuto jurídico que também se designa como escola na História da Filosofia. Para as escolas filosóficas contemporâneas o modelo é a Academia, o Liceu e o Jardim Epicurista, no período em que prosperam os pós-socráticos, respectivamente Platão, Aristóteles e Epicuro.
Diógenes Laércio
A obra de Diógenes Laércio”Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres”é uma das mais importantes sínteses de referências historiográficas da filosofia ocidental. Numa perspectiva enciclopédica, obtendo informação de fontes autorizadas antigas, nos seus dez livros em que se estrutura a obra, Laércio opera basicamente com os seis critérios referidos e organiza narrativas de carácter biográfico de filósofos, estabelecendo as devidas conexões com as escolas filosóficas, a vida e obra dos professores, o lugar dos discípulos,destacando especialmente os dogmas filosóficos que modelam comportamentos e atitudes dos seus membros, bem como as práticas particulares do filosofar e a proeminente corrente de pensamento. A minúcia de Diógenes Laércio chega ao pormenor descritivo que inclui os nomes, o carácter e o temperamento dos filósofos, a sua história pessoal e a formação filosófica, bem como o lugar em que a escola é fundada.
A apresentação das escolas filosóficas é feita em obediência a uma ordem cronológica. Os primeiros capítulos são dedicados aos sete sábios pré-socráticos e respectivas escolas. Entre outras, inventaria dez escolas filosóficas pós-socráticas cujas denominações obedecem a diferentes critérios. Por exemplo: académica, cirenaica, eliaca, megárica, cínica, eritrina, dialéctica, peripatética, estoica e epicurista.
Escolas filosóficas africanas
Além das propostas de Théophile Obenga e Nsame Mbongo, a que já nos referimos, têm surgido novas formulações. Para o efeito, bastará ler obras que, publicadas na segunda metade do século XX, contribuem para o debate historiográfico africano contemporâneo. Entretanto, não se identifica qualquer tendência para a sistematização das escolas filosóficas. Os registos de enunciados que a elas fazem alusão ocorrem de forma casual. De facto, tinha razão o filósofo queniano Dismas Masolo quando se propôs reflectir sobre a história da filosofia como problema, levantando a este propósito a questão das tradições filosóficas no continente. Poder-se-ia dizer que é de escolas filosóficas que se trata, na medida em que as tradições configuram a concentração de experiências dos sujeitos e de suas comunidades, confrontados com a necessidade de dar respostas às questões suscitadas pelos problemas que vivem. Na nossa próxima proposta de conversa, veremos que as possibilidades de exploração desse tópico não se esgotaram com o “período as escolas filosóficas das escolas de Alexandria, Cirene e Cartago”, tal como escrevia Théophile Obenga.
Apogeu, declínio e resiliência
No século XX, as experiências vividas com o apogeu e o declínio do ensino e da investigação filosófica fornecem provas disso. O filósofo nigeriano Moses Akin Makinde realizou um interessante diagnóstico, ao ter abordado a situação de declínio da Filosofia Africana a partir do início da década de 1990. Ele chamava atenção para a falência de publicações periódicas, do Quénia da Nigéria e do Ghana, a que estavam vinculadas figuras tutelares, tais como os professores Kwasi Wiredu (1931-2022) do Ghana e Odera Oruka do Quénia. Por essa razão, interessará, certamente, prestar atenção aos casos de resiliência em matéria de ensino, investigação e publicações dos professores e universidades africanas. Semelhante reflexão vai conduzir-nos aos focos de desenvolvimento da Filosofia Africana, num mapa geofilosófico em que se pode identificar diferentes centros de difusão. É desse inventário que procuraremos tratar. A título de ilustração, podemos mencionar as potenciais escolas filosóficas nacionais:África do Norte, Cairo (Egipto), Rabat (Marrocos); África Ocidental, Dakar (Senegal), Legon (Ghana), Ibadan (Nigéria), Abidjan (Cote de Ivoire), Porto-Novo (Benin); África Central,Yaoundé (Camarões), Libreville (Gabão),Kinshasa (R.D.Congo); África Oriental, Nairobi (Quénia), Dar-es-salam (Tanzânia), África Austral, Lusaka (Zâmbia), Lilongwe (Malawi), Harare (Zimbabwe), Maputo (Moçambique), Johannesburg (África do Sul).
Ora, não será possível trazer todas as escolas à conversa, neste espaço. Por conseguinte, vamos debruçar-nos sobre a escola filosófica de Kinshasa de que a “Revue Philosophique de Kinshasa”, (Revista Filosófica de Kinshasa), é a principal âncora, vinculada à Universidade Católica do Congo e em cujo contexto institucional emergem figuras tutelares de diferentes gerações, tais como Marcel Ntumba Tshiamalenga (1932-2020), Jean Kinyongo, Oleko Nkombe e Ngoma Binda.
* Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 7 de Janeiro de 2024, aqui republicado com a autorização do autor.
**Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]
Publicado originalmente em 7/01/2024 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/o-conceito-de-escola-filosofica/