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O ESCRAVO QUE NÃO SABIA SÊ-LO

ensaio de Severino Ngoenha e Carlos Carvalho

Robert Penn Warren (1905-1989), professor de literatura e brilhante analista da literatura inglesa do século XVI, trabalhou em ilustres universidades norte-americanas (Vanderbiilt na Carolina do Sul, Luisiana State Uiversity, Minnesotta e Yale) e foi o único, até agora, a ganhar três prémios Pulitzer (um como romancista e dois como poeta), desde o seu primeiro livro em prosa John Brown: The Making of a Martyr (uma biografia de John Brown e a sua luta a favor da emancipação dos negros) confessou estar fascinado pela  insurreição das almas.

 O seu romance Band of Angels,  ambientado com grandeza e crueldade nos fastos enganadores do velho Sul, nas vésperas da guerra de Secessão, foi traduzido para o português com o título O Meu Pecado foi Nascer; em  francês com o mais indicativo O Escravo Livre.  Mas a denominação que mais se coaduna com a trama do livro é, para nós  O Escravo que não sabia que era escravo.

Em sua trama, Samantha Starr, filha de um rico plantador do Kentucky, descobre na morte do seu pai, o que todos sabiam, mas não ousavam dizer-lhe: na realidade ela era filha de uma bela negra que tinha outrora partilhado o leito do mestre de Starrwood; ela não pertence ao mundo das pessoas livres. Dado que reina a lei do antigo sul, o seu pai não tendo deixado testamento, a casa é vendida, e ela própria, na qualidade de filha de escrava, faz parte das coisas que os compradores vão  disputar.

Como homem do Sul, Warren sabe que a guerra de secessão não resolveu a questão da escravatura (a prova disso é toda a literatura afro-americana desde o Renascimento Negro – Du Bois, Langston Hugues, Claude Mackay,  James Baldwin até Tony Morrison – os movimentos dos direitos cívicos com Martin Luther King, o Black Power, os Black Panthers e Malcom X, as denúncias de Angela Davis sobre as novas formas de escravatura, e mais recentemente, depois de muitas outras situações similares, a morte de George Flyod…). Segundo Warren, o  que aconteceu foi o desvio para uma nova forma de escravatura, favorável ao capitalismo ianque.

Tinham razão aqueles que, contra Marx e Engels e contra os neomarxistas (Althusser, Lucaks, Gramsci, Adorno) defendiam a capacidade de adaptação do capitalismo. Depois de escravizar e colonizar homens, o capitalismo, metamorfoseado em neoliberalismo, atacou-se a natureza: privatizou a água – até desviando o curso dos rios para que os pobres tivessem que pagar – ocupou e explorou os fundos marinhos, os oceanos, as florestas, e agora com a NASA e a banda de Elon Musk é a vez da colonização  de Marte.

Neste início do século o capitalismo, forte da sua supremacia e da capitulação gorbachoviana do socialismo, apresenta-se descomplexado e sem pudor: já  não se deixa impressionar com as tretas dos Direitos Humanos.

Como afirmara Bush pai, os recursos pertencem à Humanidade (isto é, a eles) e quando precisarmos iremos buscá-los. Foi o que fez Bush filho, com as razões da mentira e da força bruta no Iraque  (seguido por Sarkozy na Líbia); e faz o espírito (diabólico) do jiahdismo – real, suposto, financiado ou criado – em Cabo Delgado. Como aconselhava Maquiavel ao seu príncipe, o total-itarismo dos fins justificam (os jihaidismos) dos meios…

Quid dos homens que habitam esses espaços? Emmanuel Kant, o filósofo mais representativo do Iluminismo, tinha já respondido essa questão: que diferença faria se ao invés de taitianos (podiam ser os moçambicanos) essas terras fossem habitadas por ovelhas ou vacas?[1]

Aqui em Moçambique, quando se vende uma propriedade o único ser vivo que faz parte da transacção são as árvores. Mas quando alienamos (com mordomias e percentagens) terras pesadas, extensões enormes de terras férteis e aráveis (Pro savana), praias e costas para exploração de gás e ou petróleo; que destino damos às pessoas que aí habitam, que não seja a degolação das ovelhas de Kant? indemnizações fraudulentas, mordeduras de cães (Montepuez), massacres e expulsões jihadistas em Mocímboa e Palma…

Entretanto, nós sabíamos que para entrar na História o preço à pagar era o sangue (Hegel). E foi com o sangue que desde o Haiti, de Toussaint Louverture; passando pela Guiné Bissau, de Cabral; e Angola, de Neto e Savimbi; até Moçambique, de Machel; quisemos sair da nossa menoridade e tomar a palavra em púbico. Era isso o Iluminismo para Kant.

Visivelmente o sangue até aqui versado ainda não foi suficiente para  nos redimir. Apesar do evolucionismo de Darwin, da África em pé e a caminhar com duas patas de Césaire, ou mesmo das actuais manipulações genéticas, continuamos na condição de ovelhas kantianas.

Nesta época de grande retorno do Ku Ku Klanismo (contra a liberdade dos antigos escravos), é necessário ler e reler Warren. Ele foi um desses homens que nunca se satisfez com designar o mal, porque entendeu que o verdadeiro mal se encontra onde menos se espera. Alguns padrinhos conservam entre os seus muros afilhados escravos (que se acreditam livres) prontos a ser leiloados pela melhor oferta.

Uma  das figuras mais odiosas  no processo da escravatura  é  o ladino, que à força de  ser carrasco e sodomizar os seus irmãos, em troca das migalhas que caíam da mesa do mestre, esquece-se que é também escravo. Harriet Tubmann (chamada a campeã da liberdade negra) disse certa vez, eu salvei mais de mil escravos, teria salvo muito mais se somente eles soubessem que eram escravos.

O objectivo do livro de Warren é comprometer o leitor na busca de uma liberdade que nos escapa. Os homens livres não são aqueles que acreditamos serem, aqueles que encontram sempre meios para se justificar  e fazer admitir o indefensável a todos – a maioria – que acreditam poder dormir tranquilos  a partir do momento em que fecham os olhos. Pois o trágico da História, de toda a História, é que cada um tem as suas razões.

Um século nos separa da jovem Amantha Starr (heroína do livro), a escravatura é suposta ter desaparecido nas virtuosas América do Norte e França (países das revoluções  que proclamaram os Direitos Humanos, mas isso foi antes de conhecerem o petróleo e o seu valor mercantil)  e na total(idade) do mundo. Warren nos convida a não nos satisfazermos desta ilusão cómoda. A escravatura tem a mesma idade que a liberdade: é dentro de nós que é necessário, antes de mais, aboli-la. É possível? Talvez não, mas isso não pode impedir as almas não conformistas de montar sempre a guarda e persistir na refutação.

Tem de se ler Warren… sobretudo porque para ele, como para os filósofos La Boetie, Thoreau, Bernanos e os revolucionários Machel, Biko, Lumumba, Fanon, Cabral, Neto etc.  é melhor bater-se, mesmo com o risco de perder, do que submeter-se à injustiça e à escravidão!

Severino Ngoenha e Carlos Carvalho


[1] Numa carta a Herder em 1786, Kant escreve:“O senhor autor [Herder] realmente pensa que se os felizes habitantes do Taiti jamais tivessem sido visitados por nações civilizadas e estivessem destinados a viver em uma tranquila indolência por milhares de séculos, poderia-se dar uma resposta satisfatória à pergunta: por quê eles realmente existem, ou ainda, por quê a ilha não teria sido povoada por felizes ovelhas e bezerros, ao invés de homens envoltos na felicidade dos meros prazeres?”.

Marcos Carvalho Lopes

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