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O génio africano no Império Romano

Luís Kandjimbo |*

Escritor

Partindo de uma discussão antiga que se actualiza com o conceito de África Global, a proposta de conversa para hoje será ilustrada com breves notas narrativas acerca da obra de Públio Terêncio Afro (185/184-159/158 a.C.), Públio Aneu Floro (70-140) e Apuleio de Madauros (125-180).

  

Quando aqui nesta coluna descrevi o contexto histórico e intelectual, em que se formou e trabalhou o filósofo ganense Anton Wilhelm Amo Afer no século XVIII, fiz referências ao conhecimento que os professores alemães detinham sobre a presença de Africanos na história intelectuale na história da filosofia no Império Romano, quando pretendiam exaltar a proeza daquele filósofo.

Na última página da tese de doutoramento de Anton Wilhelm Amo Afer, o reitor da Universidade de Wittenberg, Johann Gottfried Kraus, sublinhava o facto de ele honrar a memória dos Africanos que tinham alcançado o prestígio e a notoriedade em Roma, tais como Terêncio de Cartago ou Afro, Apuleio de Madaura ou ainda Tertuliano, Cipriano, Santo Agostinho. As alusões a Públio Terêncio Afro, de quem Anton Amo toma de empréstimo o cognome, não eram casuais. Nesse tempo, uma boa parte dos intelectuais Africanos, residentes em Roma, eram originários de África, isto é, de Cartago (Tunísia), Tripolitania (Líbia), Numídia (Argélia), Atlas (Marrocos) e Mauritânia, territórios que eram colónias do espaço imperial romano.


Compreender a posição que a região do Norte de África ocupava na geografia do Império Romano, revela-se como um pressuposto histórico do conceito de África Global, entendido como síntese dos fundamentos do Panafricanismo, nas circunstâncias em que vivemos, presentemente.


Norte de África e o Império Romano

Em 2010, estive na província de Tlemcen, no norte da Argélia. Fiz parte de uma comitiva que visitou o quartel militar onde foram treinados os primeiros guerrilheiros da África Central e Austral, entre os quais estão os angolanos. À luz da sua vocação panafricanista, o Governo argelino da FLN da Argélia cuja guerrilha tinha derrotado a França, apoiou a luta de libertação nacional de Angola, tal como fizeram igualmente, o Egipto, Marrocos e a Tunísia. No território de Tlemcen vi vestígios da presença romana que é ainda possível através dos marcos miliares e respectivas inscrições.

Alguns meses depois, tive a sorte de adquirir dois volumes do arqueólogo francês Paul Monceaux (1859-1941) cuja perspectiva se situa em contra-mão, relativamente às tendências dominantes. Trata-se de dois livros inteiramente dedicados aos “intelectuais cartaginenses” e “autores latinos e pagãos de África”. O mérito de Paul Monceaux reside exactamente na desmistificação do preconceito acerca do esplendor de Cartago, a colonização da penísnsula italiana pelos cartaginenses e a presença de escritores e filósofos Africanos em Roma, antes e durante os primeiros séculos do cristianismo. Apesar do conhecimento que se tem das biografias de escritores e filósofos como Apuleio de Madaura e Aurélio Agostinho de Hipona,por exemplo, a impressão dominante sugere que não eram Africanos.Tal preconceito produz efeitos avassaladores a respeito da imagem de África, especialmente em matéria da construção do cânone do pensamento e da literatura.

Um outro texto interessante, “African Philosophers in the Greco-Roman Era”, [Filósofos Africanos na Era Greco-Romana], é o capítulo,assinado pelo filósofo queniano Dismas. A. Masolo, do Compêndio de Filosofia Africana,editado por Kwasi Wiredu.

Portanto, a circunstancial marginalidade de África de que resulta a negação e o pessimismo das consciências agoirentas, não tem fundamento histórico. Entretanto, as imagens funestas de jovens que atravessam o Mediterrâneo e difundidas pelas televisões à escala global, parecem traduzir o contrário. Em todo o caso, existem abundantes provas para suportar as pretensões daqueles que queiram aventurar nessa busca.

A proposta de conversa para hoje será ilustrada com breves notas narrativas acerca da obra dePúblio Terêncio Afro (185/184-159/158 a.C.),Públio Aneu Floro (70-140)e Apuleio de Madauros (125-180).


Públio Terêncio Afro

Terêncio Afro nasceu em Cartago. Cedo viajou para Roma onde se viria integrar nos meios prestigiados da aristocracia imperial, sob a protecção de figuras distintas da vida pública, nomeadamente,Cipião Africanoe Gaio Lélio, aos quais chegou a prestar serviço. Devido à sua condição social, a ter sido escravizado, tais relações viriam a estar na origem das calúnias e suspeitas acerca da sua obra literária, tendo sido acusado de plágio da obra de Plauto. Defendia-se vigorosamente contra ataques semelhantes.Distinguiu-se como um autor importante da arte cómica. Com a sua pena Terêncio renovou a comédia latina, propondo a exploração de novos temas e personagens. É o caso de comédias como “Andria”, “Hecira” e “Adelfos”. Mas, uma das melhores formas de suscitar a atenção de novos leitores pode ser a célebre expressão proverbial “Humani sum: humani nihil a me alienum puto”, segundo a qual [Sou um homem. Por conseguinte, nada do que é humano me pode ser estranho]. Terêncio exprime aí o seu princípio da empatia.  Conta-se que Terêncio morreu durante a viagem para a Grécia, provavelmentelogo após a perda de alguns originais de obra inédita. Suetónio, seu biógrafo, admite que encontrou a morte em 159, um ano após a encenação de”Adelfos”, uma das suas mais interessantes peças.


Públio Aneu Floro

Florus foi professor, poeta, cultor do estilo e historiador. Era natural de uma região do Norte de África, predominantemente povoada pela população Amazigh, também designados como Berberes. Revela a sua vocação poética ainda durante os seus anos de formação em Cartago.  Adquiriu uma sólida formação em Cartago.

Quando se fixou em Roma,quis pôr à prova as suas capacidades criativas. Por isso, participou nos Jogos Capitolinos,tendo arrebatado o prémio de poesia. Numa  demonstração de pura xenofobia, Domiciano, o imperador, recusou-se em entregar o prémio a um Africano. Em seu entender, era inadmissível que um provinciano derrotasse cidadãos romanos.Profundamente ofendido com semelhante manifestação de ódio, Florus abandonou Roma, que para si se tinha transformado em cidade do horror. Durante mais de uma década tornou-se um andadrilho dos países do Mediterrâneo. Percorreu a Sicília e outras localidades do sul da Europa. Regressou a Roma apenas duas décadas depois. Nesse período de deambulações, foi parar a  Tarraco, actual Terragona, cidade do literoral espanhol, situada na Catalunha. Aí encontrou um admirador  que se lembrava do que tinha acontecido naquele concurso. Mas o seu sonho  era chegar a “reitor”,líder educativo.


O que veio a acontecer durante o reinado do imperador Adriano. Além de frequentar a corte imperial, tornou-se um dos mais celébres “reitores” de Roma. A sua obra cobre um diversificado conjunto de géneros literários, além de alguma produção historiográfica e filosófica. Continuou a ser lido, mesmo séculos depois, através do seu “Resumo de setecentos anos de guerras, segumdo Tito Lívio”.


Apuleio de Madauros

Nasceu em Mdaourouch, também designada Madauros, no território da Numídia, actual Argélia. Reinava do imperador Adriano. Apuleio orgulhava-se de ter nascido em África. Passou a infância na sua terra natal, onde estudou até aos dezasseis anos. Seu pai era um homem de posses e influente na vida política. Em Cartago, realizou estudos de grego, latim e filosofia. Partiu para Atenas onde integrou a comunidade de estudantes Africanos. Conheceu aí Ponciano, originário de Tripolitania, actual Líbia. Visitou a Turquia e outros países do Médio Oriente. Em Roma, foi advogado. Distinguia-se como orador e conferencista, desenvolvendo actividades remuneradas. O que nessa época permitia ser classificado como membro de uma segunda vaga de sofistas.Por volta de 156, já na sua viagem de regresso para a sua terra natal, reencontra Ponciano, seu condiscípulo dos tempos de Atenas.É nessa altura que casa com Prudentila, mãe de Ponciano. Tal casamento desencadeou um processo judicial. Apuleio foi acusado de ter feito recurso à “wanga” para seduzir Prudentila com o objectivo de se apropriar do seu património. A publicação do opúsculo “De Magia”que corresponde ao discurso que prepara em sua defesa. Mas a sua grande obra é o texto inaugural do género romanesco no mundo ocidental, “Asinus Aureus”, conhecida pelo título “O Burro de Ouro” ou “Metamorfoses”. Comporta uma estrutura com onze livros. Escrito entre os anos 160 e 170, é um livro de fôlego, digno de ser lido. Para os cultores do erotismo, na poesia ou na narrativa, pode ser útil a leitura da secção dos Livros 4 a 10 “Conto de Amor e Psique”.

A obra de Apuleio tem suscitado renovado interesse. Vem sendo discutida a possibilidade de ser integrado no cânone clássico ocidental. Para todos efeitos parte-se do pressuposto de  que ele é Africano. Ao que parece, foi o que quiseram reiterar os participantes ao colóquio “Apuleio e África”, realizado nos Estados Unidos da América,pelo Oberlin College,em 2010.

A este propósito, uma anotação acerca des estado dos debates sobre a problemática pode interessar. O Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redacção dos Volumes IX, X e XI da História Geral de África, retomou a problemática que remonta aos tempos iniciais do panafricansmo, no âmbito da reelaboração do conceito de África Global, aplicado às obras produzidas por Africanos, revelando ao mundo experiências individuais e colectivas enquanto Africanos, durante períodos históricos como estes em que viveu Apuleio de Madauros.

Publicado originalmente em 12/12/2021 no Jornal de Angola: <https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/o-genio-africano-no-imperio-romano/>

https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/o-genio-africano-no-imperio-romano/

Marcos Carvalho Lopes

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