Flavio Williges & Odirlei Vianei Uavniczak
Na edição da última segunda (29/8), a Folha publicou uma coluna do filósofo Luiz Pondé que analisa o autismo como “moda de comportamento hype”. O artigo é tão mal-informado e intelectualmente irresponsável, que, como pais de meninos autistas e pesquisadores da temática, gostaríamos de oferecer alguns esclarecimentos como forma de remediar a desinformação contida num texto que não mostra nenhum desejo de compreender a realidade de crianças autistas e suas famílias e cujo autor parece ter transformado o velho compromisso da filosofia com o conhecimento na nova commodity da lacração pueril.
Em primeiro lugar, cada pessoa autista é única. O autismo é uma síndrome de espectro, ou seja, indivíduos com características muito distintas podem receber o diagnóstico. Isso significa que vamos encontrar autistas não-verbais, com deficiência intelectual, com rigidez comportamental, restrição alimentar e, até mesmo, autistas com altas habilidades de memória, percepção e raciocínio, como o cinema e livros têm mostrado. Contudo, mesmo os autistas com altas habilidades ou superdotação em algumas áreas terão sérios déficits em outros aspectos da vida cotidiana. Portanto, a “grande vocação a ferramenta de alto valor de mercado no capitalismo contemporâneo calcado em conhecimento”, no delírio de Pondé, submerge na triste realidade de que “apenas uma minoria dos autistas irá viver e trabalhar de forma independente na fase adulta”, conforme o DSM-V.
Em segundo lugar, assim como não cabe exaltar as altas habilidades isoladamente, tampouco cabe reduzir as limitações de pessoas com autismo e suas famílias à infelicidade e a “um sofrimento humano gigantesco”. A abordagem biomédica tende a interpretar as características que definem o autismo como uma disfunção em relação ao tipo padrão de funcionamento mental. Por fugir da norma, o autismo é concebido como um prejuízo no desempenho ou bem-estar. Por outro lado, modelos de compreensão do autismo centrados no paradigma da neurodiversidade não consideram todos os padrões neurodivergentes disfuncionais ou prejudiciais. Como Temple Grandin mostra no seu belo livro “O Cérebro Autista” (2015), boa parte do sofrimento de neurodivergentes se deve à falta de vontade ou à incapacidade de instituições sociais (como escolas e empresas) realizarem pequenas adaptações em seus espaços. O fornecimento de óculos especiais, por exemplo, pode reduzir as dificuldades escolares de autistas com padrões sensoriais atípicos. Em outras palavras, a incapacitação autista, que Pondé chama de um “sofrimento gigantesco”, pode estar sendo agravada por uma sociedade que não quer ou não está preparada para lidar com crianças atípicas. Não é por acaso que Grandin afirma: “se eu pudesse estalar meus dedos e deixar de ser autista, eu não o faria”.
Por fim, na ânsia de lacrar, o autor ignora completamente o consenso científico em torno das bases neurológicas e genéticas do autismo. Nasce-se autista, não se vira autista, seja pelo comportamento materno, seja pelo desejo da mãe ou de qualquer cuidador. O comportamento da “mãe geladeira” não transforma uma criança típica em autista. Irá, isso sim, privar a criança autista de estímulos e, assim, manter ou piorar seu estado, em vez de contribuir para uma adequada compensação dos déficits. Mais ainda, não faz sentido comparar “uma dificuldade de relacionamento” de pessoas típicas com déficits significativos que precisarão ser compensados ou mascarados nas interações sociais durante toda a vida.
Referências
Silverman, C. (2008). Fieldwork on another planet: Social science perspectives on the autism spectrum. BioSocieties, 3,
325–341. https://doi.org/10.1017/S1745855208006236
ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA — APA. (2014). DSM-5 — Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Porto Alegre: ArtMed.