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PESQUISA E ENSINO EM FILOSOFIA*

Gonçalo Armijos Palácios

A filosofia não é exatamente progresso. É dissidência. Faz-se no debate com a tradição

Falar de pesquisa em filosofia é muito amplo e muito vago. Se o fizermos do ponto de vista acadêmico, a questão se complica. Pois, nesse caso, vamos dizer o que é a pesquisa de um determinado ponto de vista acadêmico. O que digamos vai depender da escola acadêmica com a qual nos identifiquemos ou à qual pertençamos. Isso, por sua vez, estará condicionado geograficamente.

Com efeito, uma coisa é a pesquisa filosófica nos grandes pólos geográficos em que se faz filosofia, e outra a que se faz em lugares em que o objetivo é se especializar em determinados autores para comentar seus textos e explicá-los a outros. Num caso temos a pesquisa filosófica propriamente dita, aquela em que se buscam soluções aos problemas que vão aparecendo. Esta pesquisa produz filosofia e faz a filosofia avançar. No outro caso temos uma tarefa que já pressupõe um avanço filosófico. Estuda-se, nesse último caso, o que já foi feito e alcançado. Estudam-se resultados. Usamos aqui um sentido amplo do termo ‘pesquisa’, pois no último caso se trata propriamente de pesquisa bibliográfica. A que produz comentários sobre outros textos filosóficos.

Se pudéssemos pensar os dois tipos de pesquisa em termos de direção, poderíamos dizer que seguem direções diferentes, não necessariamente opostas. Pois a primeira é condicionada pelo problema e se dirige à sua solução. Muitas vezes sem se saber qual esta poderá ser ou se haverá uma solução. Há um objetivo determinado: resolver um problema. O outro tipo de pesquisa se orienta à compreensão do processo de constituição e solução do problema. Aqui já se pressupõe um algo mais ou menos acabado que se pretende entender, ou interpretar, para explicar a outros — um público amplo, ou os estudantes de filosofia.

As duas formas de se entender a pesquisa não são necessariamente opostas. Podem ser mesmo complementares. Pois muitos problemas filosóficos podem ter sido suscitados pela leitura de pesquisas filosóficas já concluídas. Entre elas, claro, os resultados aos quais chegaram os grandes clássicos do pensamento filosófico. Sua leitura pode provocar novas pesquisas, entre outras razões, pela discordância que poderiam provocar as soluções a determinados problemas, ou mesmo a estruturação dos problemas.

A solução de determinados problemas pode exigir um profundo e, inclusive, exaustivo conhecimento da tradição filosófica, o que explica a necessidade e a conveniência de se ter bons departamentos de filosofia. Cursos, isto é, que introduzam seus alunos nos diversos problemas filosóficos e nas soluções que eles obtiveram ao longo da história da filosofia. Isto pressupõe e exige um profundo conhecimento da tradição.

Nesse caso, no entanto, o objetivo final não é simplesmente a compreensão do pensamento filosófico já existente, passado e presente. O pensamento filosófico já existente interessa como meio, como subsídio para a solução de novos problemas filosóficos. Um curso de filosofia assim estruturado não procura formar eruditos ou especialistas, mas filósofos. Não conhecedores do que já foi feito, mas pensadores equipados com as ferramentas suficientes para responder a novos desafios teóricos.

Neste último caso, esses cursos estão realmente voltados para o presente e para o futuro, mais do que para o passado, e as disciplinas de História da Filosofia não têm como fim último o passado, mas o presente.

O trabalho comentarístico e historiográfico é bem-vindo quando está ao serviço do reconhecimento e solução de novos problemas e desafios teóricos, mas não é, em si mesmo, um fim. O comentário e o trabalho historiográfico podem trazer nova luz a determinados problemas e soluções filosóficos, e por isso podem fazer parte da tarefa e da pesquisa propriamente filosófica. Contudo, não podemos nos enganar, a filosofia só continuou quando houve um afastamento da tradição; só quando apareceram novos problemas, novos desafios, quando novas áreas foram abertas para a pesquisa filosófica.

O estudo do passado, sem a menor dúvida, trouxe nova luz para a compreensão e solução dos problemas do presente. Mas ao usarmos a expressão ‘problemas do presente’ já estamos pressupondo a existência de problemas que não foram conhecidos no passado. Que não foram conhecidos, claro, e que jamais poderiam tê-lo sido.

Pois é a história, o tempo do filósofo, as circunstâncias em que o filósofo está inserido que condicionam a forma em que este se problematizará e sobre o que o fará. E, evidentemente, os desafios que cada filósofo enfrentou foram aqueles que só seu próprio tempo, seu espaço geográfico, suas circunstâncias e até sua idiossincrasia poderiam ter ajudado a criar.

Portanto, do ponto de vista do fazer filosofia, a insistência exclusiva na pesquisa historiográfica ou na produção comentarística pode fazer com que o ensino acadêmico da filosofia perca seu foco, limitando-se a informar o que já foi feito e a meramente opinar sobre isso. Nesse caso, o objetivo no ensino é formar comentadores e leitores da história da filosofia, não filósofos. Isso explica por que, nos cursos de filosofia cujo objetivo final não é o filosofar, se insista, não na discussão e no debate de idéias, mas na imposição de metodologias de leitura.

Nos lugares em que se faz filosofia, não se ensina, propriamente, história da filosofia, ensina-se a filosofar. E o modo de fazê-lo é motivando os estudantes, desde o início, a debater com os filósofos, estimulando a leitura crítica e avaliativa, isto é, criativa, não uma leitura passiva, complacente, admirativa.

O maior desafio na leitura de um texto não é simplesmente entendê-lo, mas descobrir seus alcances e limitações. Por isso, a maior homenagem que podemos fazer a um filósofo é superá-lo. E superá-lo no sentido de, com sua ajuda, ir além dele. Pois é nesse ‘ir além’ que a própria filosofia avança. É por isso que, no fundo, um texto não é mais que um pretexto. Um pretexto para alargar as fronteiras da filosofia e do próprio pensamento.

O ensino em filosofia, em alguns lugares, não é entendido como o ensino para filosofar. Mesmo as histórias da filosofia não são histórias dos problemas e das formas em que foram resolvidos. O ensino costumeiro da filosofia, assim como aqueles textos de história da filosofia, privilegia o resultado, não o processo nem o que originou tal processo.

Em geral, o estudante de filosofia deveria ir ao departamento de filosofia para resolver o que pensa ser um problema que só na filosofia poder-se-ia resolver. Se isso não ocorre, cabe ao curso de filosofia, no decorrer dos estudos, apresentar os problemas pelos quais o estudante poder-se-ia interessar. A tendência de certos cursos de filosofia, no entanto, é a de formar eruditos, não críticos do pensamento filosófico. Poderia parecer estranho, mesmo contraproducente, que se deseje formar críticos da tradição filosófica. Contudo, essa é a única forma em ser fiel ao espírito filosófico.

Pois a filosofia só existiu, só foi feita quando houve um debate com a tradição. A filosofia não é propriamente progresso. É dissidência. Existe na medida do afastamento da tradição. Esse afastar-se, porém, pressupõe a existência, e a compreensão, daquilo do qual nos afastamos. Não há um grande filósofo que simplesmente tenha se limitado a copiar o mestre. Muito pelo contrário. Os grandes filósofos, como Aristóteles, foram duros críticos de seus grandes mestres. Assim como o próprio Platão se afastou de seu inspirador metafísico: Parmênides.

No ensino costumeiro, tradicional, da filosofia não se finca pé nesse aspecto tão decisivo e característico desta atividade. O da crítica e da refutação que os grandes discípulos fizeram de seus mestres. Apresenta-se mais ou menos vagamente uma continuidade inexistente de temas, áreas, assuntos, sem mostrar as oposições radicais e os antagonismos insuperáveis que existiram entre as teorias dos mais importantes filósofos. Dever-se-ia, pelo contrário, enfatizar as oposições, as razões dos embates e os resultados disso tudo: o aparecimento de novas formas de filosofar. O surgimento de problemas que não têm raízes no passado e em teorias anteriores, mas no olhar diferente, e no viver diferente dos novos filósofos.

Pois por mais que tentemos, não é possível se estabelecer vínculos entre o passado e o futuro na história da filosofia. Ela, pelo contrário, é a história das rupturas. Porque não existem continuidades. Isso, por sua vez, porque a própria história humana é a história das rupturas com o passado. Cada filósofo, como bem disse Hegel, é filho de sua época, e ninguém pode escapar a ela assim como ninguém pode sair da sua própria pele.

* Conferência proferida em Cuiabá, no Depto. de Filosofia da UFMT, em 8 de dezembro de 2005.

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005


Marcos Carvalho Lopes

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