ensaio de Severino Ngoenha, Filomeno Lopes, Carlos Carvalho
A ideia da vida post-mortem – hoje, com o post-humanismo, reduzido a espermatozóides e óvulos congelados nos laboratórios e prontos a ser usados – continua hoje presente no esoterismo, nas religiões e nas metafísicas das civilizações antigas. –
O cristianismo tem inscrito no seu credo a ressurreição dos mortos – Dantianamente ilustrada na Capela Sistina de Miguel Ângelo – que, por sua vez, dependia da vida levada na terra; posição também defendida por muitos filósofos, dentre os quais Kant. Para nos ajudar na nossa peregrinação, a igreja tem as figuras dos Santos – pessoas exemplares e modelos de fé que chegaram a Cristo com a prática de virtudes heróicas e, por isso mesmo, se lhes deve veneração (e não adoração) – muitas vezes, e tradicionalmente, representados por símbolos ou ícones (iconografia).
A modernidade laicizou os santos em grandes homens, heróis, modelos históricos para que o espírito e valores patrióticos que representam ou podem representar, sirvam de cimento para a coesão das nações. As histórias nacionais imortalizam e exaltam os seus heróis (as que não os têm inventaram-nos/fabricaram-nos) dando-se assim uma existência respeitável, antiga, através da vida post-mortem dos seus heróis (nos livros de história, na numismática, no nome de ruas, praças…).
Os novos países (africanos em particular) muitas vezes faliram porque, apesar de terem verdadeiros heróis, exaltam-nos (simplesmente) com estátuas e comemorações de todo o tipo mas, ao mesmo tempo, embalsam-nos e depositam-nos em tumbas, criptas e sarcófagos como os egípcios, hermeticamente fechados, para que nem sequer o cheiro dos seus valores e ideais possam vir ao de cima. Imortalizando a aparência e encarcerando a essência dos valores de verdade e o espírito (dos heróis), as novas nações abandonam os valores que nortearam o seu nascimento e os ideais sobre os quais a sua existência foi construída .
O filósofo afro-americano, Alain Locke, numa peregrinação ao deep south (o sul profundo, americano), desespera-se ao constatar que os negros ignoram os campeões (Harriet Tubman) da sua libertação…
Numa conversa memorável com um Marcelino dos Santos, já muito debilitado, perguntámos-lhe com quem se sentiu, ideologicamente, mais em sintonia durante o processo de luta, Mondlane ou Cabral? Num sobressalto pro-vita, digno da melhor ‘tigritude’ de Wole Soyinka, Marcelino pulou/saltou da cama e retorquiu com vigor: “os valores e os ideais que perseguíamos (a CONCP* em conjunto) eram muito mais importantes que as ideias deste ou daquele”.
No panteão da CONCP, presidida por Marcelino dos Santos, o Hermes que teve a missão de traduzir e expressar extra muros a vontade/força do conjunto dos países, foi Amílcar Cabral, o ‘filósofo’ da arma da Teoria.
Depois de ter falado em nome dos povos e organizações nacionalistas das ex colônias portuguesas de África, na I Conferência Tri-Continental em 1966 (‘Fundamentos e Objectivos da Libertação Nacional’), Cabral fez uma tradução (elaboração) hermenêutica digna do melhor Platão na Universidade de Syracusa, no primeiro aniversário da morte de Eduardo Mondlane. Os soldados anónimos da causa das Nações Unidas (como eram conhecidos os combatentes do PAIGC, MPLA e FRELIMO), supostos falar de guerrilha, estratégias, tácticas, subordinavam as questões militares ao pensamento.
Com um audi pensare, digno do melhor Horácio, o agrónomo que já ousara se transmudar em fundador de partido e, (quando o eugenista António Salazar disse que não falava com macacos) depois em chefe de guerra, se pretendia doravante filósofo, postulando a teoria como premissa (arma) e condição de libertação.
Com a Arma da Teoria, Cabral sai (e tira toda a CONCP) da condição de menoridade (definição do Iluminismo em Kant) e toma a palavra diante do mundo para defender, qual Platão contra a Paideia, a primazia do pensamento e da razão contra a brutalidade das armas; as guerras que se desenrolavam nas matas da Guiné, Angola e Moçambique não eram a brutalidade de selvagens e bárbaros, mas o último recurso de homens de razão para adquirirem os valores da liberdade que todas as constituições democráticas, todas as revoluções liberais, os programas das Nações Unidas, as doutrinas das Igrejas (como diria em 1970 Paulo VI, o Papa da Populorum Progressio, que o receberá juntamente com Agostinho Neto e Marcelino dos Santos) dizem defender para afirmar a vontade de progresso e a defesa do direito dos povos à felicidade. Quem poderia objectar, filosoficamente, à justeza de tais proprósitos? Qual dos eminentes professores presentes em Syracusa – que por história e tradição eram ferrenhos adeptos e defensores do liberalismo (político) – poderia se opor ou objectar a princípios tão nobres e constitutivos da humanidade do Homem?
Nenhum ‘lusíada’ ou luso-tropicalismo poderia doravante ludibriar ou desviar a determinação pela liberdade, tão vincada nos povos a ponto de Cabral partilhar com Mondlane a convicção de que a sua morte (como de facto acontecerá com ambos) não seria sinónimo do fim dos ideais e valores eternos que defendia(m); os ideias de liberdade, progresso e felicidade dos povos lhe(s) sobreviveriam pela sua grandeza e sublimidade. Como explicar então a aparente morte clínica ou esvaecimento das memórias, hoje e agora, dos nossos países e povos? Natura non facit saltus.
A visão filosófica que Cabral interpretava e encarnava era clara: a luta de libertação, porquanto dura e dolorosa ( até porque se fazia, paradoxalmente, contra as armas fornecidas pela OTAN e pelo mundo dito livre ao país colonizador) era o programa menor (mínimo), a fase e o processo mais simples. Depois viria a parte mais importante, mais difícil, o programa maior: a luta contra a pobreza, o tribalismo, o racismo, a corrupção e, sobretudo, a luta pela educação, condição para a paz, o progresso e a felicidade dos nossos povos.
Os momentos difíceis porque passámos podem ser vistos como transitórios, inerentes ao processo histórico e, por isso mesmo, próprios do programa maior. Porém, não procuremos a sua consecução e superação no PAIGC, no MPLA, ou na FRELIMO; as frentes e os partidos foram concebidos como simples instrumentos para (como dizia Machel) o povo poder tomar o poder; através de uma democracia (que não se confunde com um sistema, um modelo político ou um arquitetura administrativa, mas como a arte de incessantemente buscarmos juntos as soluções dos problemas que teremos pela frente). Eis porquê para Cabral e a CONCP, a democracia não é um privilégio mas um dever.
Em consequência, a verificação e a prova da materialização dos ideais e valores da CONCP, dos quais Cabral foi o grande interprete, têm que ser testados (lugar de prova) percorrendo, como o agrónomo em 1953 o(s) país(es) de porta em porta e verificando se as populações têm hoje mais comida, mais hospitais, mais escolas, melhor habitação, mais direitos.
Não busquemos descortinar o espírito e o legado de Cabral em celebrações nos fastos dos palácios, longe dos povos; podem sobretudo poupar-nos de prémios ou missas profanas em Assembleias da República como aquelas onde até sentam os neofascistas do Basta. O melhor doutoramento honoris causa (Universidade de Mindela) e as melhores distinções (medalha da Ordem da Liberdade – Marcelo Rebelo de Sousa) que podemos atribuir ao espírito de Cabral residem na revisão pelo País colonizador das suas responsabilidades históricas e, sobretudo, na nossa capacidade de produzirmos comida para todos, de construirmos mais escolas, mais hospitais, mais livrarias, mais democracia, mais paz e, sobretudo, concebermos um modelo de educação que permita às crianças aprender a pensar com as próprias cabeças, para serem protagonistas do próprio progresso e fautores/obreiros da sua felicidade: porque “não nos afirmamos imitando os outros, nós somos o que somos”.
A veia filosófica de Cabral (que recomendou à primeira filha que estudasse Filosofia) não é casual, manifesta uma relação intrínseca entre uma verdadeira filosofia (cultura) com a terra (agricultura) e os homens (Cícero).
A orelha de A Arma da Teoria publicada no Rio de Janeiro em 1980 começava assim: “Um homem-povo não morre jamais porque constitui uma unidade indestrutível”. Abel Djassi (nome de Amílcar Cabral na clandestinidade) era um homem-povo.
O homem Cabral morreu assassinado faz agora cinquenta anos. À parte um pequeno mas glorioso intervalo das independências, os primeiros 50 anos da vida post mortem de Cabral foram desastrosos: divisão da Guiné e Cabo Verde, guerra em Angola e Moçambique, corrupção das elites, aumento da pobreza das populações e, pior do que tudo, somos países cheios de indivíduos mas estamos a conseguir o que parecia impossível: matar os povos (como já o fizemos com a solidariedade da CONCP).
Como dizia Mondlane, o futuro é decididamente aberto. Ele depende de nós; de todos nós. Depende daquilo que nós e muitas outras pessoas fazemos e fizermos: hoje, amanhã e depois de amanhã. E o que fazemos e fizermos; depende, por sua vez, dos nossos desejos, das nossas esperanças, dos nossos medos! Depende da maneira como vemos o mundo, e de como avaliamos as possibilidades largamente disponíveis no futuro.
Sobre a vida post-mortem, a ciência ainda não tem uma resposta clara e definitiva. Contudo, os cientistas que estudam os relatos de pacientes que, como os países da CONCP, passam pela morte clínica e pela experiência de quase morte, todos constatam uma similaridade de relatos que se repetem, o primeiro dos quais é a presença de uma luz branca e um túnel. Talvez seja um presságio, bis repetita, reedição histórica da Sagrada Esperança de Agostinho Neto.
O que faremos nos próximos cinquenta anos dos ideais e espírito de Cabral depende nós: abandoná-lo a conferências, prémios, fundações, estudos ? guerrearmos entre nós pelo poder ? deixarmo-nos cooptar através dos dólares/euros ? ou continuar a luta pela materialização das suas/nossas causas e ideais, no momento e nas circunstâncias de hoje?!
Severino Ngoenha, Filomeno Lopes, Carlos Carvalho
*CONCP : Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas
Cabral um homem visionário e extraordinário…