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Luto, jurisprudência e a construção de comunidades

Marcos Carvalho Lopes

As interpretações da Antígona de Sófocles são uma chave para pensar a origem da Justiça no Ocidente. Existem diversas interpretações possíveis para a luta de Antígona, desobedecendo as ordens promulgadas pelo rei Creonte, para oferecer ao seu irmão Polinices um enterro e os rituais religiosos adequados. Alguns destacam o conflito entre as leis tradicionais e religiosas e aquelas promulgadas pelos homens; a oposição entre gerações; o conflito entre os gêneros; as dificuldades de comunicação e diálogo etc. Na leitura de Judith Butler a professora Carla Rodrigues (2021, p.70) destaca uma orientação diversa que a tragédia ganha na análise do luto:

 “Antígona serve a Butler como um duplo paradigma: de um lado, nem todos os mortos têm o mesmo direito de serem enlutados, como comprova a proibição de Creonte ao enterro de Polinices; por outro, nem todos os vivos têm direito de reconhecer seus mortos, como comprova a punição imposta por Creonte a Antígona”.

Carla Rodrigues toma o luto por Marielle Franco como paradigma do significado ético-político do luto, já que ela “foi enlutada, ao mesmo tempo, como perda individual e coletiva, representando em seu assassinato, outras tantas vidas de mulheres negras, moradores de favela, que têm sido assassinadas sem direito a luto público, mantendo a perda restrita ao âmbito familiar e matando também a possibilidade de reconhecimento da vida perdida” (Rodrigues, 2021. p.80).

Essa dimensão ético-política do luto e dos deveres que ritualizam a continuidade de uma comunidade podem ser recontextualizados em diversas culturas pondo em questão a dimensão trágica de algumas decisões judiciais. É o caso da grande controvérsia jurídica em torno do funeral do famoso advogado queniano S.M. Otieno (Silvano Melea Otieno) que se arrastou por 5 meses: de sua morte em 20 de novembro de 1986 até o sepultamento em 27 de maio de 1987 a justiça queniana vivenciou um debate que acirrou os ânimos de toda o país.

S. M. Otieno era Luo, enquanto sua esposa, Wambui Otieno, era gikuyu; os dois tinham um elevado grau de instrução, fazendo parte de uma parte da burguesia queniana que se ocidentalizou, distanciando-se das identidades étnicas e de seus valores. Após a morte do marido, Wambui Otieno decidiu que seu corpo seria enterrado na fazenda do casal. Mas essa decisão feria a dinâmica social da sociedade Luo, e o irmão mais velho do falecido e todo o seu clã Umira Kager reclamaram o direito de realizar o enterro em seu território.

O funeral entre os Luo é um ritual de extrema importância, por estabelecer a conexão entre mortos e vivos, de tal modo que, a não realização de modo adequado do sepultamento poderia causar um desequilíbrio que geraria prejuízos para toda comunidade. Neste caso, as crenças e os costumes do direito consuetudinário entravam em conflito com a configuração Ocidental de toda estrutura legal herdada do sistema colonial. Depois deste longo período de embates a Suprema Corte decidiu em favor do direito costumeiro (consuetudinário) e o corpo de S. M. Otieno foi enterrado entre os Luo.

Quando a decisão de modo contrário aos seus interesses, a esposa Wambui Otieno alegou a violação de seus direitos individuais, assim como seus direitos humanos. Como descreveu o filósofo queniano John Murungi,

“ao pedir para Corte que reconhecesse a prioridade de seus direitos de família nuclear sobre os direitos da comunidade, ela estava pedindo a corte que desse legitimação legal para o desmantelamento da comunidade e sua redução a um amontoado de famílias nucleares. Uma vez que no mundo euro-ocidental tal coisa faria sentido juridicamente, ela estava pedindo que o judiciário africano adotasse cânones legais estrangeiros. Aos seus olhos, este era o curso que a correta administração da justiça deveria seguir. Mas ao fazer isso, estava pedindo ao tribunal que acabasse com a instituição da família comunitária africana e com o eu comunitário africano. Ironicamente, o que ela estava pedindo a uma Corte pós-colonial era promover a missão do colonialismo europeu – com o objetivo de quebrar a organicidade das comunidades africanas e transformá-las em um punhado de famílias nucleares para uma administração colonial mais eficaz)” (MURUNGI, 2005, p.522).   

Murungi não toma como parte do que considera jurisprudência africana as derivadas de tradições islâmicas e cristãs. Na perspectiva africana não se separa a ética ou a moral da justiça, isso porque o agir com justiça, promovendo a coesão social, é o que constitui um ser humano como ser humano. Deste modo, “a injustiça na África não é simplesmente a questão de um individuo violar uma lei que lhe é imposta por outros indivíduos ou por um grupo de indivíduos que agem em nome do Estado. É uma violação das obrigações do indivíduo para com ele mesmo – a obrigação de ser um ser social.” (MURUNGI,2005, p.523). Por isso mesmo, Murungi vê a tarefa de desvelar a jurisprudência africana como atividade hermenêutica que deve ser desenvolvida como um enigma que desafia os africanos:

“Cada caminho da jurisprudência representa uma tentativa dos seres humanos de contar uma história sobre o ser humano. A menos que se desconsidere a humanidade dos outros, deve-se admitir que se tem algo em comum com todos os outros seres humanos. Desconsiderar o que se tem em comum com outros seres humanos é desvalorizar a si mesmo como ser humano. O que é essencial para a lei é o que protege os seres humanos em seu ser. A busca e a preservação do que é humano e do que está implicado em ser humano é o que, em um entendimento particular, é expresso pela jurisprudência africana. Ser africano é um signo (sign) de ser africano, e ser africano é signo (sign) de ser humano. A jurisprudência africana é uma assinatura (signature). Nesta assinatura está não apenas o que é essencial sobre a jurisprudência africana, mas também o que é essencial sobre a africanidade da jurisprudência africana. Aprender a decifrá-la implica aprender a decifrar-se a si mesmo, o que, de certo modo, pavimenta o caminho para uma perspectiva genuína” (MURUNGI, 2005, 525-526).

A Antígona não estaria mais próxima de uma experiência africana do que daquilo que comumente chamamos de perspectiva ocidental? Se avaliarmos essa questão do luto em outros autores do continente africano com diferentes autodescrições e lealdades – cosmopolitas como Kwame Anthony Appiah em Na casa de meu pai ou niilistas como Celestin Monga em Niilismo e Negritude – teremos resultados diferentes.  Em contextos de conflitos culturais, não basta o reconhecimento dos corpos como merecedores de luto, na disputa ético-política sobre a forma e o lugar dos rituais funerários pode se ocultar o questionamento sobre de qual sociedade queremos (ou não) fazer parte.

Referências

APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Contraponto Editora, 1997.

RODRIGUES, Carla. O luto entre clínica e política. Judith Butler para além do gênero. BeloHorizonte, autentica, 2021.

MURUNGI, John. The question of an African jurisprudence: some hermeneutic reflections. A companion to African philosophy, 2005. p. 519-526.

MURUNGI, John. Africanizing African legal ethics. Routledge, 2019.

MONGA, Célestin. Niilismo e negritude: as artes de viver na África. M. Martins, 2010.

Marcos Carvalho Lopes

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