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PARA QUE FILOSOFIA XVII – Filosofia, poesia e ficção

Na medida em que velam, a filosofia e a poesia desvelam

Gonçalo Armijos Palácios

Já discuti, em algumas ocasiões, a relação entre filosofia e poesia. E recebo o livro A ficção e as imagens da vida, de William H. Gass, um autor norte-americano cujo nome e obra desconhecia. A primeira parte do livro é dividida em quatro seções. A primeira seção intitula-se “A filosofia e a forma da ficção”. No segundo parágrafo, encontro esta afirmação sobre o romancista e o filósofo: “Ambos, de certo modo, criam mundos”. À medida que leio o texto surpreende-me a quantidade de coincidências com o que venho mantido ultimamente, a saber, que a filosofia e a literatura se parecem por ambas serem áreas em que podemos apreciar o poder ilimitado da criação e a imaginação humanas. Muitos filósofos não gostariam de escutar essa minha afirmação, pois diriam que a filosofia é muito mais do que mera imaginação. Diriam que a filosofia é descoberta conceitual, é penetração intelectual pura na essência mais profunda das coisas. A verdade é que alguns filósofos gostariam que fosse, mas… e se não há essências? Muitos filósofos negam a existência de essências. Para eles, as essências são frutos de nossa imaginação. Outros, os agnósticos, afirmariam que não é possível conhecer, e considerariam as afirmações sobre a essência das coisas como, de novo, construções imaginativas.

Se alguém pensa que ao chamar a filosofia de imaginativa a desmerece, no fundo, estaria concordando com a maioria de filósofos — mesmo que estes disso não se apercebam, o que soa paradoxal. Sim, isto é paradoxal. Pois a maioria de filósofos pensa que os demais estão fundamentalmente equivocados. Cada filósofo, naturalmente, tende a privilegiar a verdade de sua própria teoria. Se ela é verdadeira, e só ela, obviamente, as teorias restantes, sendo falsas, só podem ser um mero jogo da imaginação. O problema é que isso se aplica a todas as teorias de todos os filósofos. Como todas elas não podem ser verdadeiras, por serem contrárias umas às outras, então é verdade que a filosofia é, fundamentalmente, fruto da imaginação, mesmo que de um tipo sui generis de imaginação.

Provocativamente, Gass afirma: “Mas os mundos do romancista não existem, dirá o leitor. Certo. Mas, apesar disso, existem com mais freqüência do que os mundos dos filósofos. Mas isto, geralmente, pouco interessa. Quem se preocupa realmente com isto? São divertimentos divinos. O filósofo e o romancista brincam de deuses como outros brincam de bola…”. (p. 17) Além da provocação, há, realmente, uma verdade no que esse autor afirma. Pois as teorias filosóficas são, em princípio, construções teóricas. Fruto de um tipo de especial de construção. Uma construção, uma poíesis própria. Uma construção que supõe recriar conceitualmente a própria realidade.

Segundo a minha visão da linguagem, ela não é mero reflexo do mundo. Nossas palavras não estão aí unicamente para espelhar as coisas, mas para recriá-las. Refazemos o mundo com nossa linguagem. Desse modo, na filosofia não poderia ser diferente. Ou não haveria razão para que seja diferente. Cada comunidade, condicionada pela forma como seus antepassados se adaptaram ao seu meio, pelas tradições que desenvolveram, pela cultura que constituíram, pelas relações que estabeleceram seus membros entre si e com outras comunidades, fala das coisas de determinado modo, isto é, recria o mundo à sua volta de certa maneira. Nenhum de nós escapa a essas influencias. Com o filósofo e com o poeta não é diferente. Filósofos e poetas não usam a linguagem simplesmente para se comunicar. Não usam as palavras como o resto as usa no dia-a-dia — talvez, na maioria das ocasiões, para nomear coisas. Mas para mostrar algo que não aparece aos olhos dos outros. Não empregam a linguagem para dizer o evidente, mas para retratar o oculto. Ora, como se retrata o oculto? Isto soa estranho. Retrata-se o que está frente aos olhos.

Esse retratar pictórico, figurativo, certamente, não é o retratar do filósofo, nem do poeta. O retratar do filósofo, num sentido, é um apagar, é um cobrir, é um velar. Pois é um apagar as aparências para se enxergar o que elas ocultam. É como se, num quarto de paredes multicoloridas, no chão, também pintado de cores, estivessem espalhados objetos multicoloridos, mas pontudos, como pirâmides. Se quiséssemos contá-los, suas cores atrapalhariam, pois eles se confundiriam entre si e se misturariam também com as cores do chão e das paredes do quarto. Para facilitar a contagem seria bom cobri-los com um manto preto que deixasse ver as pontas com facilidade, contrastando a cor preta do pano com o fundo multicolorido das paredes do quarto. Assim, com o pano tampando os objetos e, portanto, ocultando suas cores que confundiriam nosso olhar, facilmente os contaríamos pelas pontas que se projetariam sob o manto. De alguma forma, é isso que a linguagem filosófica faz, cobre o aparente para que se perceba a estrutura, a forma, a essência que o aparente oculta.

O retrato poético seria, também, diferente. Próprio ao desejo e ao plano do poeta. Adequado ao seu sentir, à sua vivência. Muitas vezes ele retrataria o que não está à vista de todos. A fotografia de uma pessoa não pode ser comparada ao retrato que um artista faz da pessoa. Pois as fotografias dificilmente fotografam a personalidade, o que muitos retratos feitos por artistas conseguem. Quando a famosa Gertrude Stein viu o seu retrato pintado por Picasso, disse ao artista: “Mas ele não se parece comigo”. Ao que o artista respondeu: “Mas você vai se parecer com ele!”

Até que ponto é ficção a filosofia? Para Gass, “a ficção é muito mais importante para a Filosofia do que vice-versa”. (p. 18) Penso que ele está certo, pelo que tenho mantido nestes últimos tempos. A filosofia, sem dúvida, é um assombroso exemplo de criação, fantasia, imaginação. No entanto, Gass provoca o filósofo nesta passagem: “Todavia, o romancista pode aprender mais com o filósofo, que já mente há mais tempo; pois o romance é coisa relativamente recente e rudimentar.” (p. 18) Com efeito, o filósofo vem imaginando mundos há mais de dois mil e quinhentos anos. Inventando o ápeiron, o lógos, o ser e o não-ser, as homeomerias, o eterno retorno, o mundo das idéias. Mundos fantásticos, metafísicas fantásticas e pouco compreensíveis para o comum dos mortais. Assim, não sem razão, diz Gass: “Embora os filósofos tenham escrito a poesia mais profunda, a Filosofia tem-lhe trazido, tradicionalmente, o inartístico e o ininteligível; são mentalidades mecânicas demais para pensar livremente, sérias demais para ver, e fanáticas demais para sentir.” (p. 18) Mas ele exagera. Apesar de ser verdade que muita filosofia tem trazido o inartístico e o ininteligível, as mentes dos grandes filósofos tem tudo menos serem mecânicas demais para pensar livremente. E o sentimento do filósofo existe, porém muitas vezes disfarçado e escondido nas construções que surpreendem pela sua aparente pureza racional. Os textos de Platão, por exemplo, são visceralmente passionais contra os sofistas.

Há, sim, uma diferença entre a ficção poético-literária e a filosófica. A primeira está espalhada em obras belas, em criações de valor estético. A ficção filosófica só raramente é bela. Poucas são as ficções filosóficas belas — como a teoria do conhecimento de Kant, revestida, no entanto, de uma linguagem críptica, pouco cuidada, não somente não bela como feia. A beleza da ficção filosófica está para ser apreciada pelo intelecto puro, deixando de lado o discurso em que é apresentada. Não é esse o caso da beleza literária. É belo o resultado ao que se chega, é belo o caminho pelo que se transita. Mas ficções, as duas são, ficções que, ao ocultar, revelam.

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção

Marcos Carvalho Lopes

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