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Pelé e meu pai

Sem consciência racial, muitos buscaram em Pelé uma esperança de redenção, a herança de uma realeza mítica

Meu pai tinha vários projetos de vida no qual se empenhou. O de ganhar na Sena o levou a estudar numerologia e gastar durante muitos e muitos anos o valor da maior nota em circulação (hoje seria a de 200 reis) em apostas. Outro projeto envolvia o futebol. Com certeza ele tentou ser jogador. E para isso teve como espelho os seus dois irmãos que foram jogadores profissionais. Todos os filhos de minha avó foram criados por famílias diferentes, e, de certa forma, o futebol seria um traço que os ligavam. Mas meu pai, o caçula, não tinha provavelmente esse dom. Coube a ele então investir nos dois filhos o empenho para seguir o caminho da família.

Lá pelas cinco da tarde, quando estava em casa, jogava futebol comigo e com meu irmão caçula. Meu tio materno também ajudava nesses treinamentos, que foram mais delirantes quando morávamos em Nova Xavantina no Mato Grosso (entre 1986 e1989). Nessa época, meu pai chegou a ser presidente de um time amador, o Democrata Futebol Clube, e inventar uma categoria de base para que eu pudesse treinar (o que não fazia sentido, já que tinha 7 ou 8 anos). A “categoria” ia até 13 anos, então lembro de que, como a bola não chegava, eu (centroavante) e os zagueiros esperávamos literalmente deitados a bola chegar. Claro que o patrocínio de meu pai rendia alguns elogios ao meu potencial (o que ouvi na rádio local, como um “destaque”).  Diante da minha evidente falta de coordenação motora, chegou a levar um jogador que era destaque local para me dar aulas de domínio – aprender a fazer balãozinho. O meu fiasco provavelmente selou a avaliação de inaptidão para o esporte em grande nível, mas meu pai insistiu e me levou para fazer um “teste” com seu irmão, cujos dois filhos foram jogadores. No “um contra um” contra um primo não cheguei nem a pegar na bola. Continuei treinando com meu irmão todas as tardes, mas meu pai não achava um investimento válido pagar uma escolinha de futebol… Meu desempenho fraco também selou o destino do meu irmão. Projeto fracassado!

Meu pai era santista, por causa do Pelé. Tinha flâmula e fotos do time campeão de 1962 e quando era criança ganhei logo minha camiseta do Santos. Mas na hora do jogo de botões, meu pai não cedia o Santos (e nem me dava brecha para vencer), eu ficava com o Vasco, o time que Pelé torcia. Naturalmente passei a torcer pro Vasco e na medida em que melhorava no jogo de botão, meu pai deixou as disputas. Para meu irmão escolhi os botões do São Paulo, time supercampeão na época… ele se tornou são-paulino.

Pelé era a imagem do negro vencedor, o rei do futebol incontestável. Meu pai, era pardo (nunca se soube negro) numa família “adotiva” branca. Pelé era importante para ele de uma forma que só é possível imaginar; o futebol era uma religação (religião) com a mãe e irmãos consanguíneos. Pelé alimentou o sonho infantil de que uma criança negra qualquer poderia ser na verdade um deus esquecido, que seria redimido pelo futebol. Pelé foi muito importante para nós.

O irmão mais velho do meu pai na década de 90 foi candidato a vereador no Oiapoqué. Não sei o partido, mas no seu “santinho” (a foto de divulgação de sua campanha) utilizou uma foto de quando nos EUA enfrentou Pelé, então no Cosmos. O santinho tinha a foto dos dois abraçados, o nome do meu tio, e o slogan “o amigo do Pelé”.   

Marcos Carvalho Lopes

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