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PARESIA POLÍTICA COMO ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA

Severino Ngoenha e Carlos Carvalho

A teodiceia mais radical do século XX,  foi a transmutação da hermenêutica do mistério do mal, de uma conotação dita  radical  (Kant) – resultado de uma escolha deliberada imputável à vontade de se auto preferir em detrimento da lei moral – a uma denotação do mal como banal (Hannah Arendt) que, para a nossa experiência histórica de ex-escravos, ex e neo colonizados (prelúdio da prática do totalitarismo), resulta ela mesma banal e constatação de uma verdade à  la palisse.  

Quem ainda não leu as conclusões de Hannah Arendt (sobre o totalitarismo e Eichmann em Jerusalém), pode ir se familiarizando com os resultados do seu turbulento  percurso existencial e intelectual, acompanhando as diatribes no teatro cómico-bufo – digno do melhor Berthold Brecht – do martelamento dos moçambicanos na BO,  onde jovens narcisistas,  carnavalescamente vestidos de laranja mas com espírito de  colarinho branco, fazem a demonstração da banalidade do mal, com um desprezo sádico (do Marquês de Sade) pela vida dos demais.

Filósofa,  H. Arendt – no tribunal de Jerusalém onde era corresponde de New Yorker – foi tentada a perguntar, cadê da tua consciência? mas, bruscamente, caiu em si e, com horror, compreendeu o inefável: Eichmann era mais um clown do que monstro; o organizador da solução final era  um homem qualquer, tão vulgar  que era desprovido de toda e qualquer consciência.  Do mesmo modo, apesar  dos actos em julgamento na BO serem aniquilantes, os  seus autores – Nhangumele, Ndambi, Mutota, Leão, Ângela, Rosário- são quaisqueristas; sem nada de brilhante, de impressionante mas, paradoxalmente, também não são pessoas pérfidas, sádicas. Rosário aparenta ser uma pessoa normal e até medíocre. Como o patético nazi (é assim que Arendt  definia Eichmann), os réus são pessoas superficiais,  funcionários que executaram, cretinamente, decisões tomadas por outros, o que testemunha a banalidade do mal que encarnam.

A Segunda Guerra Mundial matou, pela primeira vez, mais civis do que militares; viu o aparecimento de fábricas de morte para humanos, com  procedimentos e rigor industriais e, contudo, à parte os que se tinham suicidado, ninguém tinha visto nada, ninguém tinha feito nada, ninguém  era responsável de nada; todos se tinham limitado a obedecer, mas com uma obediência rigorosamente zelosa, sem a qual um tal desastre não se teria produzido. Afinal é possível fazer com que homens não  desequilibrados, bons cidadãos, país de família e até defensores do bem comum se comportem como criminosos (Rosário diria que só fazem coisas ‘não legais’) e não sintam remorsos nem nenhuma culpa pelas suas acções. Como é que uma pessoa normal, sob a direção de uma outra pode cometer as piores atrocidades sem se sentir minimamente responsável? Mais do que obediência, é a reivindicação de uma obediência irresponsável, sem culpa, que é difícil de conceber.

Como  Eichmann, invocando Kant, pensava sempre  fazer coincidir a sua vontade com a vontade do Fuhrer, a horda dos ‘iluminados’ homens-sistema – escolhidos talvez pela própria inconsciência e incapacidade de discernimento – obedecendo ou tentando interpretar a vontade do máximo superior hierárquico, chefe do comando conjunto e/ou operativo – abdicou da sua vontade autónoma a favor de um ‘pronto-a-pensar’ oferecido pelo sistema e, por isso mesmo, foi completamente incapaz de distinguir o bem do mal. Como o Eichmann de Arendt, Leão, Rosário e correligionários são a manifestação da ausência pura de pensamento. Do ponto de vista ético, esta normalidade  é mais terrificante do que as enormidades cometidas; estes robôs hominídios cometem crimes de algibeira sabendo, mas sem consciência do mal que fizeram.

A defesa da BO repete, ad literam, a defesa de Eichmann e de todos os criminosos de Nuremberga,  o denego de responsabilidad: eles tinham agido por obediência, no cumprimento do próprio dever. Dado que as razões das suas ações dependiam inteiramente de uma hierarquia a que eles se limitaram a obedecer, é a hierarquia que é responsável dos seus actos. Desse modo pode-se obedecer sem se ser responsável, nem da sua obediência nem dos actos que se cometem em nome dessa obediência. Essa moral de escravos (Nietzsche – Para além do bem e do mal) é o que Arendt chama de totalitarismo – a não confundir com  despotismo, tirania ou ditadura – sistema nascido na Itália mussoliniana de 1923, que consiste em capturar as existências dos indivíduos e da sociedade e subordiná-las, incondicionalmente, a uma estrutura hierárquica desigual (não é um acaso que a maior fatia do calote até então conhecida, foi para o filho do sumo «pontífice» nacional) .

A BO, de repente, nos revela quão a obediência, comumente  vista teológicamente como uma virtude teologal, e filosoficamente como um imperativo categórico – necessário ao bom funcionamento do corpo social – pode ser  ignóbil, perverso e  monstruoso. De repente damo-nos conta que o pior desastre de Moçambique independente não veio da sedição da Renamo, da casmurrice de  Nhongo, nem mesmo do terrorismo de Cabo Delgado, mas  do frenesim da obediência, duplicada por uma inércia feita de ilusões, apatia e resignação. As revelações da BO nos ensinam que  não são as reivindicações políticas, democráticas, de justiça ou manifestações  que se deve temer,   mas a propensão ilimitada à obediência. Por isso, ao invés dos fundamentos éticos e políticos da obediência,  estamos obrigados a pensar, com urgência, nas relações entre a obediência, a desobediência, o comando e a responsabilidade.

Se olharmos para o processo da BO à luz do processo de Eichmann e da avaliação que Arendt fez dele,  apercebemo-nos que se trata de um processo dos governantes; as principais responsabilidades, apesar dos martelamentos cúmplices do juiz, recaem sobre os escalões superiores da hierarquia (cujo chefe supremo, no caso da Alemanha nazi, se suicidou) e se cala num silêncio culpado  no caso do comando operativo conjunto de Moçambique. São os dirigentes políticos que, de facto, estão na banco dos acusados. Mas até que nível de hierarquia a culpabilidade pode descer?

A reflexão sobre o processo de Eichmann (a que ela assistiu) valeu, post mortem, a Arendt um estatuto  de ícone do pensamento politico – para além das relações com os seus mestres, Heidegger, Husserl e a admiração por Karl Jaspers. Porém essa confessa  sionista (mas anti-opressor Estado de Israel)  foi sempre habitada por um aparente paradoxo: a sua tese sobre a banalidade do mal – que lhe valeu reputação (e rejeição de muitos judeus) – foi sempre guiada (de uma maneira obsessiva) pelo  processo e morte de Sócrates que, por sua vez, via  o mal como ausência de pensamento.   Contradição aparente, porque, para Sócrates, pensar não era sinónimo de saber, mas aptidão a distinguir o bem do mal. Foi esta inaptitude que levou os juízes de Atenas a condenarem, injustamente, Sócrates. Por isso, Nas Origens do Totalitarismo, Arendt mostra-se preocupada com a especificidade da justiça. Se não nos podemos, aparentemente, ilibar de pequenas mentiras, pequenos arranjos, enganos  e trafulhices, conosco próprios na nossa vida quotidiana, a justiça, em contrapartida, deve fixar, infalivelmente, as responsabilidades: ela encarna, reflecte e actualiza o regime de verdade (Jacques Rancière) que uma sociedade se dá. 

Meritíssimo juiz : cada processo ( e este em particular) é uma ocasião para afirmar ou reformular os conceitos de direito, de prova, de testemunho, de moral, de responsabilidade (Paul Ricoeur). Em outras palavras, este julgamento deve manifestar, de maneira clara,  o regime de verdade sobre o qual se articula a  axiologia moral subjacente e as relações de poder que atravessam, estruturam e fazem funcionar o nosso corpo social.

Se em 1946, em Nuremberga, o processo foi dos governantes, 15 anos depois, durante o julgamento de Eichmann, o processo foi também dos governados, da burocracia média e auxiliar ( os nossos Mutotas, Isaltinas Lucas…) sem os quais os massacres industriais ou os rombos de milhões de dólares não teriam sido possíveis, mas também é um banco de prova da independência e probidade dos juízes e do sistema judiciário.

Como Eichmann e Goering, que se declararam inocentes e vítimas das circunstâncias,  o falso papa Gregório do SISE,  como um leão  sem dentes,  remete a sua responsabilidade a António – guardião do templo cujo Rosário era uma prece a Belzebu – grande inquisidor e lançador de anátemas aos heréticos do incumprimento dogmático da doutrina bustani-guebuza. Isto demonstra uma confusão entre legalidade e moral; a obediência às leis civis parece poder suspender o sentido moral, a relação à autoridade é condicionada por  esta dissociação  entre submissão voluntária de uma parte, e responsabilidade dos demiurgos – os que dão ordens – do outro.

Mas  o sistema jurídico e os juízes são “super parties” e, por isso mesmo,  indemnes do totalitarismo, ou são parte dele? No processo viciado  de Sócrates, Xenofontes (Apologia de Sócrates) e Diógenes ( Vida e obras de filósofos ilustres)  acusam os juízes de serem  parte – ou vítimas – do sistema totalitário  da Atenas de Péricles. Platão  (na abertura dos seus diálogos) põe uma questão mais insidiosa,  quando os deuses, o rei e o código impõem actos diferentes, a quem se deve  obedecer, a que fontes de legitimidade o direito deve fazer referência: ao Guebas que o empossou,  a  Niussi que detém as actuais rédeas do poder, ou ao legítimo soberano, os moçambicanos ? A questão é a hierarquia das diferentes fontes de autoridade – e de legitimação – de que os próprios juízes e o sistema judiciário fazem implicitamente referência. É aqui que se situa, com força, a questão do que é justo. Por outro lado, Platão chama em causa o lugar da verdade e da justiça numa sociedade em que o povo vive na caverna – das câmaras da televisão – e se limita às sombras e às aparências (penteados do juiz, da Sheila e da Ângela; arrogância dos réus, provas forjadas, subterfúgios cúmplices do juiz) que lhe é dado telenovelisticamente em consumo, mas cujo conformismo faz dele cúmplice do sistema (Arendt).

Cada processo é, sociologicamente, a teatralização e a cenarização de relações complexas de poder. Ele deveria permitir apreender e destrinçar – através de procedimentos, argumentos, dispositivos de produção da verdade, de poder de sujeição e de subjetivação nos seus discursos e práticas (Paul Ricoeur) – os regimes de obediência, testemunhar as lutas políticas para a aquisição ou conservação da produção e difusão da verdade e as linhas de fractura.

O processo de Sócrates – como de figuras de processos  historicamente emblemáticos, como os de Giordano Bruno e/ou Galileu – mostra que o(s) poderes(s) e a(s) autoridade(s) – manifestos, implícitos, mas sempre sinuosos – exigem como contra-parte, na busca e defesa do justo,  homens corajosos, prontos a descontentar, refutar, resistir às pretensões de comando injustas e anti- democráticas do poder.  O século XXI e as dívidas ocultas estão a demonstrar o que o  obedicionismo pode ter de vil, de monstruoso, de  catastrófico  e sobretudo de cobardia. Da primeira guerra mundial ao genocídio do Ruanda, passando pela Shoah, a obediência perdeu a sua máscara  de virtude. O eco da voz de La  Boétie ressoa forte, denunciando a nossa propensão repugnante à servidão. Os oficiais superiores do SISE – como os da Gestapo e do SS – multiplicaram maneiras de obedecer que eram, na realidade, maneiras de se submeter; eles mostraram o verdadeiro rosto da docilidade. Daí que o actual desafio do pensamento é a paresia política – a coragem de repensar, reconfigurar e recriar a nossa relação com a autoridade, a capacidade e a ousadia do governado  (e a autoridade do juiz) de dizer  a verdade ao governante, mesmo ao preço de pôr em causa a relação de poder que os liga. A ética do medo, como a teodiceia do mal absoluto, deve ser substituída por uma  ética da responsabilidade.

 Com a isegoria (igualdade dos cidadãos e condição da isonomia ou democracia), a ética da paresia política deve ser  indissociável da estética da  existência.

Severino Ngoenha e Carlos Carvalho

Marcos Carvalho Lopes

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