ensaio de Vilém Flusser de 1964
Duas manchetes de jornais vespertinos inspiram este artigo: “Do fígado de Pelé depende do futuro do Brasil” e “Massacre em jogo de futebol em Lima”. A primeira transporta a mente contemplativa para Roma republicana, quando seu futuro dependia de fígados de animais sacrificados. A segunda evoca Bizâncio, quando jogos circenses acabam em lutas sangrentas. O confronto entre o mito peléico e o “engagement” futebolístico acentua a alienação e o isolamento, característicos da mente especulativa. Milhares vibram em simpatia com o fígado de Pelé, milhares oferecem suas vidas em holocausto a favor do gol peruano, ameaçado pelas forças tenebrosas uruguaias, enquanto a mente do intelectual continua fria, fechada em sua soberba prepotente. O propósito do presente artigo é a tentativa de apreciar o surgir dos mitos futebolísticos do ponto de vista do intelectual prepotente.
O pensamento existencial e a psicologia da “profundidade” procuram nos mitos explicação da nossa situação e do nosso comportamento. Mitos são revelações do Ser, e todo mito revela o Ser a sua maneira. Assim, o Ser revelado no mito estabelece uma situação, o mundo. Este mundo e nossa atuação nele foram estabelecidos por alguns mitos, estes são projetos de nossa existência, e todas as nossas escolhas estão pré – figuradas neles. Com efeito, nossa vida em particular e a civilização da qual participamos em geral, não passam de realizações das potencialidades contidas nos mitos. O mito de Adão, por exemplo, estabelece um mundo dentro do qual temos corpo e alma, Adão é um dos nossos projetos, e nossa civilização realiza, progressivamente, as potencialidades desse mito. Realizando, de mil maneiras sutis o nosso corpo (inclusive os seus instrumentos) e a nossa alma (inclusive religião, ciência e artes). Somos, pois, prisioneiros dos nossos mitos, e deles não podemos escapar, nem de nossos projetos, a não ser que os realizemos integralmente, esgotando-os nesse processo. Um projeto inteiramente realizado é, nesse sentido, um fim de mundo. A tecnologia pode ser interpretada (aliás, é efetivamente interpretada por muitos pensadores), como realização total dos projetos do Ocidente. Neste sentido alguns afirmam iminente o fim do mundo. A bomba H não passaria, deste ponto de vista, o último elo de uma cadeia contida “em projeto” nos mitos do Ocidente, por exemplo, no mito da torre de Babel e de Prometeu.
A história do Ocidente seria, portanto, um vasto ciclo que brota de mitos para desembocar e diluir-se neles. Com efeito, o conjunto que forma a história do Ocidente não seria senão uma espécie de exemplificação das histórias contadas pelos mitos, e o aparente tempo linear dessa história se de, tão somente, como um segmento do tempo circular que caracteriza os mitos. O tempo histórico seria um sub aspecto do tempo mítico, aliás, um subaspecto típico do projeto do Ocidente. Na realidade, a história se fecharia em circulo, e os acontecimentos históricos seriam um eterno retorno do sempre idêntico, prefigurado dos mitos. O grande círculo que seria caracterizado por epiciclos, correspondentes às suas diversas fases. Assim seria, por exemplo, a História da física, um ciclo sobreposto sobre o ciclo geral da historia Ocidental, e descrito no seguinte verso:
“Heaven and earth were
[covered in darkest night.
God said: Let Newton be!
[and there was light.
The devil, hollering hó!
Let Einstein be! Restored
[the status quo”.
(Céu e terra estiveram cobertos por noite escura. Deus falou: Haja Newton! E houve luz. O diabo, gritando hó! Haja Einstein! Restabeleceu o status quo).
Esta teoria cíclica da história tem seus atrativos. Concorda com o pensamento nietzscheano (o eterno retorno do sempre idêntico como vontade para o poder), pensamento este que é uma das fontes dessa teoria. E satisfaz certos espíritos pessimistas que vivem profetizando o fim do mundo. Mas não concorda com o fato observável do surgir de novos mitos que surgem constantemente, abrindo novas possibilidades de realizações existenciais, como o mito de Pelé prova. Pelé como figura mítica representa um projeto para milhares de existências, e podemos observar ao nosso redor milhares de “pelés” em miniatura que realizamos potencialidades contidas no mito que a figura de Pelé representa. Neste sentido, e para milhares de existências, é Pelé um desvendamento do Ser, um estabelecimento de um aspecto sacral do Ser, um aspecto sacral que podemos chamar de “futebol”, e a nossa soberba em nada pode alterar o fato de que o futebol é uma vivência festiva do sacro. E o que ocorreu em Lima o pode provar.
Aparecimentos de novos mitos deita por terra a teoria da circularidade do processo histórico em geral, e em particular da história do Ocidente. Enquanto aparecem novos mitos em nossa civilização estaremos sempre dispostos para novas aberturas imprevisíveis. É curioso notar, neste contexto, com o marxismo – tão visceralmente inimigo de toda mitofilia – é vítima inconsciente da teoria da circularidade. O conceito do processo dialético da história é, no fundo, o conceito da realização progressiva do mito do corpo e da alma, e peca por desconsiderar o aparecimento de novos mitos. Estes, não são antíteses de uma dada situação, mas são revelações totalmente novas. Daí ser, curiosamente, o marxismo uma variante da teoria da circularidade, embora dê aparentemente tanta importância ao progresso.
É possível tentar salvar essa teoria, afirmado serem os mitos novos variações de mitos antigos. De forma tal que a figura de Pelé seria apenas a reencarnação de um arquétipo mítico, por exemplo, de Hermes; como a figura de Brigitte Bardot, que seria a reencarnação de Afrodite, aquela nascida da espuma. Não se trataria, “sensu strictum”, de mitos novos, mas do aparecimento cíclico de mitos primordiais e antigos. Pelo contrário, afirmariam os defensores dessa teoria, que a decadência do mito de Hermes e Afrodite em Pelé e Brigitte Bardot seria prova do próximo fim do ciclo. Pelé e Brigitte seriam as últimas realizações dos mitos antigos antes da bomba, ou, antes da sociedade comunista, que é afinal, um outro aspecto escatológico do mesmo processo. Mas esta argumentação me parece falha. Por que seria Pelé um Hermes decadente ? Qual é o critério que nos autoriza a proferir este juízo ? Meramente o fato de sermos adeptos do mito de Pelé, de não termos fé nele. Para nós intelectuais o novo mito não desvenda um aspecto sacro do Ser, mas, pelo contrário, obstruiu a visão da sacralidade por sua vulgaridade. A glorificação e o endeusamento de Pelé é, para nós intelectuais soberbos, uma inautenticidade. Mas a vivência de milhares de pessoas desaprova o nosso ponto de vista. Para estas milhares de pessoas são as atrizes de cinema autênticas “estrelas” , como Vênus e Marte, são “divas”, como Juno. Não podemos julgar os novos mitos a partir da nossa alienação, mas somente a partir do empenho autêntico que provocam.
A seguinte observação, entretanto, deve ser feita: os grandes mitos antigos foram comunicados pela boca dos grandes poetas. Hesíodo e Homero são as nossas portas para os mitos gregos, os profetas para os mitos judaicos, os apóstolos para os mitos cristãos, Dante, Cervantes e Goethe para mitos mais novos.
Não se descobre na cena da atualidade, nenhum rapsodo de Pelé, nem de Bardot, nenhum bardo (1). São personagens á procura de um autor, são deuses á procura de um profeta, são mitos á procura de um poeta. Esta é talvez a razão por que nós, imersos em literatura, não podemos sorver existencialmente estes mitos. Mas isso não os faz falsos mitos, e sim, mitos “in statu nascendi”. São, com efeito, novos aspectos do Ser que se precipitam sobre nós para serem articulados. Há neles um novo senso de festividade, de aventura, de beleza, por ora inarticulado. Clamam por uma nova civilização, por uma nova realização a superar a civilização tecnológica em vias de esgotamento. Em suma: estamos num estágio no qual carecemos de poetas.
Os leitores provavelmente discordarão violentamente da minha tentativa de profetizar um novo “panteon”, a partir de Pelé e deuses semelhantes. Com efeito, admito que parece ser mito, ainda que não o faço sem uma certa dose de ironia. Não serei o primeiro a colocar flores nos altares das novas divindades, mas procuro ver a cena da atualidade com olhos não pré-conceituados. Não posso negar a evidência que aponta a direção por mim indicada. Podemos ou não simpatizar com o novo mundo que se prepara, mas creio que não devemos negá-lo. Enxergar a ponta do nariz é, afinal, o papel do intelectual no concerto da sociedade. Não devemos negar o mundo novo, mas devemos tentar influir sobre ele, e este é o propósito do presente artigo dentro das limitações modestas que lhe são impostas. Depende de certa forma de nós, poetas em potencial, a descoberta de novos mitos, quiçá mais condizentes que o mito de Pelé com a nossa sensibilidade.
O “panteon” que se prepara será constituído de divindades que não serão, necessariamente, todos do tipo das duas figuras mencionadas. A nova civilização que se prepara, e que tem no Brasil um de seus focos, não será necessariamente tão somente a realização do sacro como ele aparece no futebol e no cinema. Outras regiões festivas e aventurosas podem ser descortinadas pela visão pioneira dos nossos poetas. Nesse sentido é a “Peleologia” que estou submetendo á apreciação dos leitores é apenas um aspecto da mitologia do futuro. E aqui reaparece a soberba do intelectual que tentei refrear em vão, no curso do argumento. Não devemos admitir que apenas os fanáticos do futebol e do cinema tipo Brigitte Bardot formem e informem o sentimento existencial do futuro. Não devemos admiti-lo, sob pena de ser o nosso tipo de existir excluído do projeto que se forma. E, afinal das contas, resume-se a isto toda a nossa atividade de seres pensantes: tentar propagar a nossa maneira de ser, a fim de alcançar certa forma de imortalidade. A imortalidade é, a meu ver, o verdadeiro empenho do homem, a procura de novos mitos é outro nome do mesmo empenho. Reside na abertura de todas as nossas faculdades, inclusive as intelectuais, para o encoberto que no cerca. É preciso readquirir o espanto ante as potencialidades dos mitos inarticulados que precipitam sobre nós de todos os lados, e que podemos vislumbrar, embora nebulosamente, justamente agora, quando o projeto cansado da tecnologia se aproxima do fim do seu ciclo. Estamos, como indivíduos, e como geração, em situação de fronteira (para utilizar um termo de Jarspers). É uma situação perigosa, mas também promissora. Estamos á procura de novos empenhos, façamos com que sejam mais próximos da nossa sensibilidade que os empenhos dos fanáticos de Lima. Façamos com que as nossas vidas sejam sacrificadas, se sacrificadas devem ser, em prol de mitos um pouco mais dignos da tradição ocidental, a qual, afinal é uma corrente retilínea que desembocará, como influência tributária, dentro da nova civilização a realizar-se.
Publicado originalmente em
FLUSSER, Vilém. Peleologia. O Estado de São Paulo, 04/07/1964.
Disponível em: https://textosdevilemflusser.blogspot.com/2008/08/peleologia.html ou http://flusserbrasil.com/art495.pdf
Judeu nascido em Praga (1920), Vilém Flusser estudou filosofia, sem concluir o curso. Após a invasão nazista (1939), evadiu-se para Londres. Viajou para o Brasil, onde se casou (Rio, 1940), estabelecendo-se em São Paulo, onde passou a viver do comércio. Exímio conhecedor de línguas, neste período mais se dedicou, solitariamente, à leitura filosófica. Para dedicar-se apenas à filosofia, integrou-se à comunidade filosófica paulista através do diálogo com Vicente Ferreira da Silva, dentre outros. Ao iniciar sua nova fase (1958-1959), quando passa a elaborar textos de grande originalidade, exerce inúmeras atividades: Professor Convidado junto à Escola Politécnica da USP, lecionando Filosofia da Ciência; fundador do Curso de Comunicação Social da FAAP; colaborador na Revista Brasileira de Filosofia, no Suplemento Literário d’O Estado de São Paulo; colunista na Folha de São Paulo, na Frankfurter Allgemeine Zeitung, etc. Em 1972, mudou-se para a Europa, estabelecendo-se em Robion, na França, onde morou até a sua morte (1992). Neste último período, Flusser foi reconhecido pela comunidade filosófica internacional, sendo constantemente convidado para palestras e congressos.
Bom dia
O artigo coincide com o que tenho pensado, sobre o fardo do homem jovem, o sonho, quase que paranoíco, de alguns adolescentes, nutrido por suas famílias, que, muitas vezes, representa a possibilidade de sairem do estade de pobresa, o de serem jogadores famosos e se tornaram lendas na história do futebol.
Bom dia
O artigo coincide com o que tenho pensado, sobre o fardo do homem jovem, o sonho, quase que paranoíco, de alguns adolescentes, nutrido por suas famílias, que, muitas vezes, representa a possibilidade de sairem do estade de pobreza, o de serem jogadores famosos e se tornarem lendas na história do futebol