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Platão: discutindo a época, refutando os patrícios

Mostrando desprezo ou respeito, os grandes  filósofos jamais deixaram de se posicionar  sobre as teses de seus predecessores e contemporâneos quando se tratava de argumentar em defesa da verdade

Gonçalo Armijos Palácios*

            Nos diálogos de Platão encontramos referências a muitas personalidades da época, algumas delas contemporâneas do filósofo, outras há muito falecidas. São poetas, artistas, políticos, oradores, filósofos. Isto é, pensadores em geral. Alguns deles são duramente criticados, como os poetas e os sofistas, outros, refutados com respeito, como Parmênides. Para termos uma imagem mais exata do que é a filosofia é necessário entender que não se filosofa sem se discutir com a época. As grandes filosofias são isso, debates com suas épocas. E o modo de se debater com a época é discutindo as ideias que refletem seu espírito. Discute-se o espírito de uma época avaliando-se as construções teóricas que melhor a expressam. Ao fazer isso, analisam-se as teses e as obras dos seus autores. Platão faz isso de maneira exemplar. Nas suas discussões, seus alvos principais são os poetas e os sofistas, apesar de que também discute as ideias de outros pensadores considerados filosoficamente importantes, como as de Parmênides.

            O mestre de Platão, Sócrates, tampouco deixou de discutir o que na sua época lhe pareceu inaceitável. Se acreditarmos que Platão reproduz mais ou menos fielmente o que ocorreu no julgamento em que foi declarado culpado, condenado e executado, deveríamos concluir que Sócrates foi um crítico acérrimo de sua época, das crendices populares e dos costumes religiosos, assim como das ações de homens públicos importantes. Algo em que Sócrates coincide com os filósofos que o antecederam é a inadmissibilidade do antropomorfismo da religião grega. Nisso concordaria com as críticas de Xenófanes. No diálogo Eutífron, Platão põe em boca do personagem Sócrates esta pergunta, dirigida ao falso piedoso Eutífron:

Acreditas, porventura, que entre os deuses ocorrem guerras, inimizades terríveis e combates, e outras muitas coisas do mesmo estilo, conforme nos contam os poetas e são representadas pelos bons artistas nas diferentes cerimônias sagradas, como acontece nas Panateneias …? Diremos, Eutífron, que tudo isso é verdade? (6 b-c)

A crítica à religiosidade, vemos, tende a ser uma constante entre os filósofos antigos. Mas também os filósofos criticam e se afastam de outros filósofos, dando suas razões para tais críticas.

            Uma obra que prima por esse espírito de crítica à época e a outros pensadores é a República. Nela, Platão começa por questionar o significado corriqueiro dado à definição de justiça de Simônides, discute e tenta refutar a teoria do sofista Trasímaco e, no Livro II, rebate uma versão grega do contratualismo. Na República, Platão fará um acréscimo importante à definição de justiça de Simônides de que “justiça é dar a cada um o que é seu”. Mas, antes disso, leva a cabo uma longa discussão com Trasímaco, para quem “a justiça é a conveniência do mais forte” (República, 338c).[1] (A discussão é tão longa que há quem considere que o Livro I da República era para ser um diálogo separado intitulado Trasímaco.) O intercâmbio entre Sócrates e Trasímaco não leva a um resultado positivo, apenas a um impasse em que Trasímaco é obrigado a reconhecer que a injustiça jamais poderia ser mais vantajosa que a justiça, contradizendo sua caracterização inicial.

            Não podemos saber com certeza se o diálogo aconteceu e se Platão reproduz o diálogo como exatamente ocorreu. De qualquer forma, o que interessa é que há uma teoria considerada importante, a de Trasímaco, que Platão achou necessário refutar já no Livro I de sua República. No Livro II, Platão dirige suas críticas a uma teoria que é um pressuposto da caracterização de Trasímaco. É a teoria segundo a qual a justiça não é mais do que o resultado de um acordo entre os homens para não se prejudicarem (359 a). Isto faz da justiça o fruto de uma mera convenção, e não algo que esteja na natureza do Estado, como queria Platão. É para refutar essa teoria e propor a sua que Platão escreve sua obra. Pois parece que a única maneira de refutar uma teoria que era “voz corrente” (359 b) era estruturar uma nova teoria, e é isso que Platão faz nos nove livros restantes. Note-se que a teoria criticada reaparece na época moderna em obras de filósofos da talha de um Hobbes, de um Locke e de um Rousseau.

            Mas Platão não só criticou poetas e sofistas. Num diálogo extraordinário, o Sofista, sente que deve abandonar a teoria metafísica que herdou de Parmênides, por considerá-la equivocada, e propor uma outra.

            Segundo Parmênides, o não-ser era impossível e indizível. Com efeito, pensava que a simples afirmação “isso não é” era uma contradição, pois “isso” significava alguma coisa. E se significava alguma coisa, alguma coisa “isso” devia ser e não podia, simplesmente, não ser. Para resolver o problema, Platão percebeu que, de alguma maneira, era necessário que o não-ser seja — isto é, seja algo. Mas fazer isso significava refutar o grande Parmênides. Vejamos o cuidado com o que Platão anuncia esse projeto e essa necessidade de refutação, pondo em boca do Estrangeiro estas palavras:

Far-te-ei, pois, um pedido ainda mais veemente. (…) De não me tomares por um parricida. (…) [Pois] para defender-nos, teremos de necessariamente discutir a tese de nosso pai Parmênides e demonstrar, pela força de nossos argumentos que, em certo sentido, o não-ser é; e que, por sua vez, o ser, de certa forma, não é. (Sofista, 241 d)[2]

Essa é uma passagem filosoficamente decisiva e literariamente dramática. Podemos ver o cuidado com o que Platão escolhe as palavras para mostrar a dificuldade que representava para ele fazer algo que lhe resultava inevitável: refutar a tese central do filósofo que, sem dúvida, mais admirava e respeitava. E o Estrangeiro continua:

Enquanto não houvermos feito esta contestação, nem essa demonstração, não poderemos, de forma alguma, falar nem de discursos falsos nem de opiniões falsas (…) sem cair, inevitavelmente, em contradições ridículas. (…) Essa é a razão por que é chegada a hora de atacar a tese do nosso pai ou se algum escrúpulo nos impede de fazê-lo, de renunciar absolutamente à questão! (241 d —242 a)

E por serem a crítica, o debate e a refutação características essenciais da filosofia veremos a mesma atitude num outro grande filósofo que se posicionou sobre seu mestre. Esse outro grande filósofo foi Aristóteles que criticou Platão.


[1] Platão. A República. Trad. de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa : Fundação Calouste-Gulbenkian, 7ª ed., 1993, p. 38).

[2] “Platão”. Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. In: Os Pensadores. São Paulo : Abril Cultural, 1972.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

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