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Da titularidade do direito à filosofia-III

Luís Kandjimbo |*

Com a inscrição da tradição Sona Cokwe, na lista do património imaterial da UNESCO, a reflexão sobre os sujeitos e direitos epistémicos adquire consistência. Trata-se de uma tradição secular praticada na região da África Central pela comunidade histórica Cokwe de Angola, Zâmbia e República Democrática do Congo.

Na antropologia europeia, é também designada como ideogramas ou «escritas na areia». Para a nossa conversão, interesse do facto reside na possibilidade que propicia, permitindo abordagem que  articula quatro elementos de um polisistema civilizacional:(1)sistema cultural; (2)sistema linguístico;(3)sistema educativo; (4) sistema de pensamento profundo. Por isso, ocorrem as perguntas: Há sujeitos epistémicos na origem da tradição Sona da comunidade Cokwe? Os membros da comunidade Cokwe poderão ser titulares de direitos subjectivos epistémicos?

Reiterando o tópico

A prometida interpretação das ideias da especialista tcheca, Alena Rettová, sobre as «Filosofias Afrófonas», tendo em vista à compreensão das «filosofias em línguas africanas», tal como ela sugere, pressupõe algumas clarificações preliminares. Estou a referir-me ao direito epistémico entendido  como conjunto das faculdades, capacidades e poderes de realizar livremente actividades de natureza cognitiva que, por acção ou omissão, visam à exploração e compreensão do conteúdo dos bens epistémicos. Tal como sublinhámos na conversa anterior, são bens epistémicos, por exemplo, o conhecimento, a verdade, a  crença, a justificação, a compreensão, a sabedoria, a informação,  a desinformação e a ignorância. Por outro lado, a definição de direito epistémico conduz-nos à identificação de propriedades e objectos que podem integrar o campo conceptual do direito subjectivo, à luz da Dogmática Jurídica. Esse direito não representa um interesse legalmente protegido. Não há norma jurídica que, aparentemente, venha em seu socorro, se estiver a ser violado. Por isso, a nossa proposta de conversa visa à exploração das propriedades e objectos desse campo conceptual, à  luz da Filosofia do Direito. No entanto, o direito epistémico pode ser definido como  direito subjectivo. Será necessário consolidar o sentido do que se entende por direito subjectivo. Donde, se tornará possível classificar o tipo a que pertence o direito epistémico.

Direito subjectivo não é europeu

O problema suscitado no contexto africano tem também um lugar na história da filosofia do Direito, especialmente nas controvérsias sobre o conceito de direito subjectivo, no âmbito do que se convencionou denominar por «querela sobre o direito subjectivo».Mas a referida «querela» gravita, depois, em torno da oposição que se estabelece entre direito objectivo e direito subjectivo, ao determinar-se a entidade que pode ser qualificada como antecedente. Nos debates que durante o século XX foram travados na Europa, a «querela» teve várias vozes dissonantes. Uma delas é a do jusfilósofo francês, Michel Villey (1914-1988). Reflectindo sobre as primeiras definições claras do direito subjectivo na Europa, nas suas «Lições de História da Filosofia do Direito», Villey afirma que foi no século XIV que o filósofo franciscano inglês, Wiliam de Ockam (1285-1347)formulou o conceito de direitos individuais como contraponto ao predomínio doutrinário do direito objectivo, visto como direito positivo. O jusfilósofo francês confronta-se com oponentes, tais como o historiador medievalista inglês, Brian Tierney (1922-2019), que defendia o contrário, invocando a conexão do direito natural a um poder subjectivo do indivíduo, já reconhecida no tempo dos canonistas europeus nos séculos XII e XIII. Para todos os efeitos a Europa do século XVIII que testemunha a consagração dos direitos subjectivos como direitos do Homem, não representa a totalidade dos humanos.

Com efeito, no século XX essa concepção europeia dos direitos do homem é posta em causa. Em 1949, a UNESCO, agência especializada da Organização das Nações Unidas,admitia a possibilidade de outra duração do ponto de vista histórico. De acordo com as posicionalidades filosóficas africanas é defensável a tese da universalidade dos direitos subjectivos como direitos inatos e originários.A investigação histórica sustenta tal posição. Por essa razão, há uma lacuna que deve ser preenchida. Tal como escrevia o filósofo senegalês Souleymane BachirDiagne, no seu artigo «Philosophie africaineet Charte africaine des Droits  de l’hommeetdes Peuples», [Filosofia africana e Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos],publicado na revista francesa “Critique”, em 2011,revela-se necessário reflectir sobre a noção de uma «filosofia propriamente africana da pessoa humana».A este propósito, os contributos relevantes das civilizações africanas não ocorreram apenas no século XX coma Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos que, ao nível continental, entrou em vigor em 1986. Na senda da longa duração, existe a Carta de Kurukan Fuga ou Carta Mandé, um documento elaborado no antigo Império do Mali cuja leitura e referências dos historiadores Africanos recomendam. Trata-se de um catálogo oral de princípios destinados aos caçadores do qual existem hoje versões escritas. Foi usada no século XIII, durante o reinado de Soundiata Keita, o soberano do Mali. A Carta de Kurukan Fuga que, pode ser referida como proclamação de direitos atribuídos à pessoa humana constitui um contributo para a Filosofia dos Direitos Humanos.

Direito subjectivo e classificação

Se tivermos em atenção os quatro elementos de um polisistema civilizacional:(1) sistema cultural;  (2) sistema linguístico; (3) sistema educativo; (4) sistema de pensamento profundo, a Carta de Kurukan Fuga permite concluir, igualmente, que nos direitos positivos africanos, os direitos subjectivos, na sua materialidade, são efectivamente anteriores às normas jurídicas que lhes atribuem protecção, no contexto do Estado moderno. Qual a posição a adoptar perante os cultores da dogmática que reivindicam o primado do direito objectivo, entendido este como o universo de normas jurídicas em vigor?Os efeitos da transplantação dos sistemas jurídicos ocidentais em África, recomendam prudência e conhecimento dos debates europeus, nesta matéria. Uma das mais expressivaspolarizações das doutrinas em discussão está decantada no debate que o jurista francês Leon Duguit (1859-1928) manteve com o jurista austríaco, Hans Kelsen (1881-1973).Apresentando-se como objectivista e normativista, respectivamente, ambos perfilam como negadores da existência do direito subjectivo. Ora, ao abordar o debate na perspectiva de uma longa duração das civilizações e seus sistemas de pensamento profundo,  conclui-se que o centro do debate reside na existência e na definição do direito subjectivo.

Nas tradições jurídicas de inspiração romano-germânica, quer a Dogmática Jurídica, quer a Teoria Geral do Direito, definem hoje o direito subjectivo, nos termos em que o jurista belga Jean Dabin, (1889-1971) sintetizou. Na sua formulação, ele entendia que o direito subjectivo pode ser qualificado como vínculo de pertença e domínio.O vínculo de pertença é consagrado pelo direito objectivo. Já o domínio é o que resulta como atributo do sujeito, relativamente a determinado bem. Assim, Dabin defende que o direito subjetivo pode ser definido como prerrogativa, concedida a uma pessoa pelo direito objectivo e garantida por lei, consistindo na possibilidade de dispor de um bem, sendo reconhecida a relação de pertença.

No que diz respeito à classificação dos direitos subjetivos, existem diferentes critérios.Se tivermos em conta o seu objecto, os Sona da tradição Cokwe seriam classificados como direitos de personalidade e direitos intelectuais. Seriam direitos de personalidade, em virtude de terem como elementos constitutivos a concepção moral e estética de uma prática criativa antiga. Enquanto direitos intelectuais,o critério de classificação seria específico. Neste caso, o objecto é a escrita e o desenho, na sua dimensão incorpórea.

Debate intergovernamental

Desde 1960, a Organização Mundial da Propriedade Intelectual vem desenvolvendo acções que visam à protecção do «conhecimento tradicional» e das expressões culturais tradicionais, enquanto propriedade intelectual, paralelamente a instrumentos já existentes, por exemplo, a Convenção de Berna para a Protecção de Obras Literárias. A evolução do debate alcançou outros níveis. O âmbito da protecção alarga-se aos recursos genéticos plasmados na Convenção sobre BiodiversidadeDiversidade de 1992.Por essa razão, discute-se hoje o regime de patentes que deve concorrer para a prevenção da apropriação indevida desses bens epistémicos.

Por deliberação da Assembleia da Organização das Nações Unidas, em 2001 ,foi criado o Comité Intergovernamental de Propriedade Intelectual e Recursos Genéticos, Conhecimento Tradicional e Folclore que, sob os auspícios da Organização Mundial da Propriedade Intelectual, tem o mandato para negociar novos tratados tendo em conta as lacunas do sistema jurídico  internacional para proteger esses bens epistémicos.

Renovação do debate

Ora, parece evidente que o problema da justa partilha dos recursos genéticos, do conhecimento tradicional e do folclore reintroduzem o debate sobre os direitos subjectivos naturais, especialmente para os países do chamado Sul Global. Não se tratará de proteger Direitos Humanos ou direitos naturais inerentes aos seres humanos? Não há dúvidas. É exactamente esse o problema. Recupera-se aqui o princípio segundo o qual direitos naturais representam uma dimensão moral do Direito, no sentido de direito objectivo. No seu livro, «TheI dea of  Natural Rights. Studies on Natural Rights, Natural Lawand Church Law», A Ideia dos Direitos Naturais. Estudos sobre Direitos Naturais, Direito Natural e Direito da Igreja, 1997, o historiador Brian Tierney fazia o diagnóstico do século XX e identificava o grande desacordo entre defensores das teorias modernas dos direitos e as doutrinas mais antigas do direito natural. Isto é, de um lado, os estudiosos que viam os direitos naturais como essencialmente extrapolações de princípios sempre inerentes à tradição do direito natural. É o caso do filósofo francês Jacques Maritain (1882-1973) e o jusfilósofo australiano, John Finnis (1940). De outro lado, os neotomistas como MichelVilley na Europa, e Leo Strauss (1899-1973),nos Estados Unidos da América, que negam qualquer associação deste tipo entre as duas áreas de pensamento.

Em África, o tema deste debate assume formas diversas, cobrindo domínios como a religião, a literatura oral, a política,a moral, a metafísica da pessoa humana e das comunidades. Actualmente, são dominantes as correntes comunitaristas, sendo um dos seus mais proeminentes representantes o malogrado filósofo ganense Kwame Gyekye (1939-2019) ou ainda abordagens minoritárias das correntes marxistas em que se pontifica o filósofo nigeriano Olufemi Taiwo com o seu «Legal Naturalism. A Marxist Theory of Law», Jusnaturalismo. Uma Teoria Marxista do Direito.

Conclusão

Pode dizer-se que as dinâmicas do debate jusfilosófico sobre os direitos naturais, direitos subjectivos e direitos humanos, no nosso continente, permitem prever desenvolvimentos interessantes. Se é possível detectar semelhanças entre as correntes africanas e europeias que defendem os direitos subjectivos naturais, tal como sustenta o nigeriano Mesembe Ita Edet, professor da Universidade de Calabar, no seu artigo «The Natural Law Theory in Traditional African Jurisprudential Though», A Teoria do Direito Natural na Tradição Jurídica Africana, publicado em 2014, no entanto, auguram-se novas e fecundas perspectivas que têm a força impulsionadora nos estudos sobre os sistemas linguísticos, sistemas de pensamento profundo e o Direito Consuetudinário, em especial.


* Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 10 de Dezembro de 2023, aqui republicado com a autorização do autor.


**Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 10/12/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/da-titularidade-do-direito-a-filosofia-iii/

Marcos Carvalho Lopes

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