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Reconseguir a nação e o continente

ensaio de Severino Ngoenha, Samuel Ngale, Giverage do Amaral e Augusto Hunguana

Parece que durante os Acordos de Lusaka, o presidente Samora Machel teria pronunciado o neologismo “desconseguir”. Criticado por esta palavra não existir em português, ele teria sentenciado – por cima da sua potestade de vencedor – que daí em diante “desconseguir” seria inscriortuguês de Moçambique. Como os escritores só criam palavras, mas os soberanos, com palavras, criam realidades (Mia Couto, As Areias do Imperador), desde então Moçambique não cessou de desconseguir: desconseguiu o socialismo, desconseguiu o desenvolvimento, desconseguiu a unidade nacional, desconseguiu a paz, desconseguiu a reconciliação, desconseguiu a democracia e agora está a desconseguir a nação.

Ernest Renan, num famoso artigo de 1882, defende que as nações se conseguem a partir das necessidades comuns das pessoas, que levam diferentes grupos sociais a procurarem uma identidade colectiva. Ele desacredita a tese de que a raça é a base para a unificação das pessoas e defende que nem a língua nem a religião são base para a solidariedade; existe algo superior à religião e à língua: é a vontade. A essência de uma nação conseguida é que todos os indivíduos se reconheçam numa alma e num princípio espiritual, na posse de memórias comuns e numa vontade de viver juntos no presente.

Consegue-se uma nação quando a identidade do grupo é constituída por valores aceites pelos membros, quando as comunidades são formadas por pessoas que partilham os mesmos valores. Consegue-se uma nação num contexto em que os indivíduos estão dispostos a sacrificar parte das suas liberdades para formar uma comunidade, uma tribo ou nação. Consegue-se uma nação quando as suas instituições traduzem e representam a vontade das pessoas e surgem como porta-vozes da vontade de se alcançar um objectivo colectivo.

Os impérios, reinos ou nações conseguidos são aqueles que, em determinado momento histórico, passaram a existir porque conseguiram aglutinar vontades, aspirações e os desejos mais profundos das diferentes populações para alcançar objectivos comuns.

Os EUA surgiram como nação por uma vontade comum dos seus cidadãos de viverem livres (com os seus escravos) da colonização britânica, apesar das diferenças na concepção da liberdade, como atesta a Guerra de Secessão, setenta anos mais tarde.

A Europa não nasce das cinzas do nacionalismo do século XIX – do qual nunca se emancipou –, mas da vontade de continuar a contar, num mundo dominado por novos poderes hegemónicos (EUA e a União Soviética) que destronaram o eurocentrismo. A aglutinação da Europa rima com aquilo a que Nietzsche chamou a vontade de potência, e no presente a sua coesão se faz no fundo de uma suposta inimizade com a Rússia, como outrora se fizera na mesa da partilha de África.

Em Moçambique, foi a comum vontade da libertação que nos anos 60 favoreceu que a FRELIMO conseguisse aglutinar a MANU dos macondes com a UDENAMO e a UNAMI – todos congregados numa vontade comum de se libertarem do colonialismo. Pessoas e grupos, independentemente do lugar e das identidades étnicas, regionais, religiosas ou rácicas, reuniram-se em volta de um ideal comum de liberdade.

O que está por detrás da crise da nossa identidade e faz vacilar um projecto tão promissor? O que faz com que uma identidade de grupo – uma nação – entre em crise? Porque caem impérios, porque as nações entram em falência? Porque Roma caiu? Porque os Astecas caíram? Porque o Gana e o Mali caíram? Porque o Moçambique coeso de 75 está hoje em crise, não só económica, mas sobretudo de identidade?

O historiador britânico John Darwin, conhecido pelas suas pesquisas sobre impérios e a história do imperialismo, apresenta, no seu livro After Tamerlane: The Global History of Empire since 1405, alguns factores que podem contribuir para a queda (o desconseguimento) de impérios. Alguns desses factores incluem: excesso de poder, esgotamento financeiro, mudanças políticas internas, descontentamento e revoltas internas, concorrência de outros poderes (…).

No livro Os Miseráveis da Terra (Les Damnés de la Terre, 1961), Franz Fanon dedica um capítulo a antever os possíveis desafios para a recém-conquistada independência nacional em alguns países africanos. No capítulo que ele intitulou “as armadilhas da consciência nacional”, Fanon avança a suspeita de que a elite local poderia cair na armadilha de se tornar marioneta dos antigos mestres. Ele desconfia que a intelligentsia endinheirada está alienada e, por isso, incapaz de buscar soluções para os problemas emergentes. Ele estava longe de imaginar os mecanismos de endividamento pilotado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial (BM), a dimensão escandalosa do neocolonialismo do tipo França-África, e até de que entre os “irmãos traidores” (Jean-Marc Ela) estariam os pais da Negritude como Senghor, Houphouët-Boigny e, hoje os francófilos , Macky Sall e Alassane Ouattara, Patrice Talon (…).

É o que explica que, sessenta anos depois das independências, jovens como Ibrahim Traoré, Assimi Goïta, Abdourahamane Tchiani, Mamady Doumbouya se devam ainda levantar contra um colonialismo descarado e sem vergonha e contra elites políticas cooptadas para a causa da dominação e exploração dos povos africanos.

No Moçambique de 1975, apesar de todas as suas fragilidades de recursos humanos, dificuldades políticas e económicas, houve uma adesão e identificação muito forte com o seu projecto político e social da nação. A Primeira República conseguiu aglutinar pessoas que tudo separava, porque o foco era forte, porque conseguiu criar uma utopia na qual o Eu Era Nós (José Luís Cabaço), o que permitiu pensar que todos juntos construiríamos a nação moçambicana.

A distópica Segunda República inverteu o paradigma para Nós (partido, Estado) Sou Eu. Ela monetarizou as relações em todas as esferas, o que levou à fragmentação dos tecidos sociais em função da pecúnia e redundou na incapacidade hodierna de mobilizar as consciências colectivas. Se hoje não se consegue mobilizar a vontade de todos para trabalhar em prol de um objectivo comum, não é, in primis, por razões exógenas (apesar de fortes e substanciais), mas porque já não existe um projecto comum, aglutinador, capaz de mobilizar as vontades para um objectivo partilhado.

Quando há um desalinhamento entre o ethos da elite dominante – a sua prática político-económica – e os desejos e esperanças da maioria, instala-se uma crise de identidade colectiva, o que propicia a alienação, a ansiedade e uma insatisfação generalizada. Quando já não há um projecto capaz de aglutinar interesses e vontades, abre-se espaço para a emergência de etnicismos, regionalismos, racismos, a nação se desconsegue e entra em decadência.

O grande problema e ao mesmo tempo desafio para o Moçambique de hoje é o que fazer para que voltemos a ser uma nação, para que sejamos – de novo – um espaço nacional aglutinador das vontades e aspirações colectivas; não com leis, com polícias em todas as esquinas, com a cínica e hipócrita ladainha da defesa da ordem que só favorece os interesses dos mestres em detrimento das populações. Nenhuma presença maciça de “cinzentinhos” pelas ruas pode conseguir aglutinar vontades (nem matar um povo determinado a ser livre) somente pela sua capacidade militar de matar heróis e limitar os direitos.

Existem hoje razões (e vontade) susceptíveis de serem mobilizadoras para a continuação de um projecto comum de nação (e continente), não em termos de fronteiras e nem do passado histórico, mas em termos de presente e de futuro? O que podemos pôr na mesa para dizer que vale a pena permanecermos juntos, que existem vantagens em ser Moçambicano, mais do que pertencer à majestática Total, por exemplo? Fanon chamou a atenção da nação africana recém-libertada sobre os perigos que se avizinhavam. As armadilhas que impedem colocar a marcha do país por cima dos nossos interesses, porque as nossas aspirações são de uma classe privilegiada que quer ocupar o lugar colonial de domínio e vigilância sobre a maioria do povo.

Os acontecimentos em curso no continente africano, de um Total colonialismo sem vergonha (através do FMI, do BM e da dita comunidade internacional), da espoliação do Congo, da divisão e guerras por procuração no Sudão (que a nossa amnésia histórica não nos permite lembrar que foi o primeiro país a organizar uma conferência em solidariedade com os movimentos de libertação das colónias portuguesas em 1967) e Etiópia (como fora a nossa guerra de dezasseis anos), da atitude complacente em relação à pobreza flagrante e ao fosso cada vez maior entre as elites neocoloniais (internas e externas) e as massas miseráveis, deveriam prevenir-nos (depois da guerra de dezasseis anos e da guerra de Cabo Delgado) sobre os perigos futuros no nosso país. Deveríamos, sobretudo – contra a nossa resignação e apatia –, não cair na retórica do retorno à ordem constitucional que só interessa aos trapaceiros, adeptos da dupla moral (que defendem a democracia e os direitos humanos quando lhes serve) e supremacistas nortecentrados, mas colher a revolta popular em curso no Sahel como uma segunda oportunidade na longa luta do continente pela sua emancipação.

O período de anomia (Durkheim), de confusão axiológica e de falta de valores partilhados pelo qual estamos a passar exige uma retomada – pan-africana – através de novos valores consensuais (de soberania e solidariedade), susceptíveis de mobilizar os imaginários colectivos e criar uma nova ordem, um novo paradigma (Thomas Kuhn) de acção. Um paradigma que parta da profundeza da fossa – com os seus cheiros imundos –, dos desconseguimentos em que a prepotência nortecentrista e a nossa cobardia e egoísmo nos mergulham, para uma retomada no país, na região e no continente.

Ibrahim Traoré, Assimi Goïta, Abdourahamane Tchiani, Mamady Doumbouya (que o macronista intelectual orgânico Achille Mbembe chama neosoberanistas) são, na verdade, parte dessa retomada contra os desconseguimentos de África.

Se assistirmos impávidos e serenos as manobras em acto para o derrube e até assasinato destes jovens heróis -como fizemos com Patrice Lumumba, Thomas Sankara, Muammar Gadaafi (…)- estaremos a mandar a mensagem de que não estamos determinados a conseguir, mordicus, a nossa soberania.

ensaio de Severino Ngoenha, Samuel Ngale, Giverage do Amaral, Augusto Hunguana

Marcos Carvalho Lopes

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