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Pretorianismo – Um tema das literaturas e da filosofia – I

Luís Kandjimbo |*

Nos últimos dois anos, a actualidade política do nosso continente tem sido caracterizada por sobressaltos que constituem uma excepção nos processos de formação, organização e legitimação dos poderes conferidos ao Estado, na configuração que obedece aos modelos tomados de empréstimo ao Ocidente. Estamos a referir-nos às alterações inconstitucionais de regimes políticos causadas por golpes militares. Na história política ocidental, esse tipo de intervenção dos militares na vida política designa-se por pretorianismo. Do ponto de vista da filosofia política, representa uma excepção. Este é o tópico da conversa.

Filosofia e literaturas

A negligência de estudos interdisciplinares sobre a literatura como filosofia esteve na origem do livro da filósofa nigeriana M. S. Chike Okolo. Por isso, em 2007, publicou “African Literature as Political Philosophy”,[As Literaturas Africanas como Filosofia Política]. Reconhecendo as afinidades existentes entre Filosofia Política e Literatura, ou melhor, a possibilidade de as Literaturas serem veículos de tematização filosófica M. S. Chike Okolo empreende uma discussão sobre a literatura como filosofia política. Para o efeito, interpreta obras de escritores Africanos e junta pertinentes exemplos à sua abordagem. Procura fazer prova do fraco reconhecimento concedido à Filosofia e Literatura em Departamentos de Filosofia das universidades africanas. O tópico da nossa conversa convoca as crises políticas decorrentes do pretorianismo e dos golpes de Estado em África. Por conseguinte, no dizer de M. S. Chike Okolo, o diálogo entre filosofia e literatura é oportuno. É sabido que os escritores modelam as sociedades e os Estados. Deste modo, a sua vocação também contribui para efectivar a função da Filosofia Política, na medida em que o pensamento veiculado pelas literaturas africanas influencia a percepção das pessoas sobre a política e sobre os melhores meios de efectuar mudanças políticas. Por outro lado, defende M. S. Chike Okolo, a literatura também desempenha uma função normativa.

Temas das literaturas africanas

A recorrente tematização de golpes militares e alterações inconstitucionais de regimes políticos não tem merecido a devida atenção no nosso continente. Trata-se de uma negligência que pode ser comprovada. Para lá das narrativas da história política contemporânea de África, subsidiariamente, as provas respeitantes à negligência são fornecidas pelas literaturas africanas. O discurso literário é fonte de abundantes representações sociais e colectivas sobre a natureza maligna das intervenções de militares na esfera política. As literaturas africanas em língua inglesa constituem um dos mais fecundos universos dessas representações sociais. Trazemos dois exemplos, a título de ilustração. O escritor nigeriano, Chinua Achebe (1930-2013), com os seus dois romances “A Man of the People” [Um Homem Popular](1966),e “Anthills of the Savannah”[A Savana e Morros de Salalé],(1987), e o escritor ganense, Ayi Kwei Armah (n.1939)com o seu romance, “The Beautyful Ones Are Not Yet Born” [Os Mais Belos não Nasceram Ainda], (1968).

Em “A Man of the People” [Um Homem Popular], Chinua Achebe relata a ocorrência de um golpe de Estado militar, em determinado país africano, imediatamente a seguir à conquista da independência política. O regime militar instaurado acabou por extinguir os partidos políticos, até que a situação no país se tornasse estável. Eram feitas promessas acerca de julgamentos de todos os funcionários públicos que se tinham enriquecido, defraudando o Estado, na ordem de quinze milhões de libras. O acontecimento ficcional vaticinava um golpede Estado militar verdadeiro que teve lugar na Nigéria, em 1966. O romance foi publicado dois dias depois.

Em “Anthills of the Savannah”, [A Savana e Morros de Salalé],uma sátira fulminante contra a corrupção política em Kangan, país situado na África Ocidental, Achebe descreve o comportamento de jovens oficiais pertencentes às elites militares, especialmente do líder que ambiciona tornar-se presidente vitalício. Entretanto, os jovens militares, que afastam os civis do poder, não possuem qualquer visão programática, nem agenda articulada.

Por sua vez, com “The Beautyful Ones Are Not Yet Born” [Os Mais Belos não Nasceram Ainda], Ayi Kwei Armah narra uma história ficcional em que os militares tomam o poder em Koomson, um país africano, com a finalidade de fazer uma purga dos corruptos, mas sem sucesso. Ao invés, surgiu uma quadrilha de assaltantes que delapidavam o património da nação.

No seu livro de ensaios, “The Eloquence of the Scribes. A Memoir on the Sources and Resources of African Literature”, [A Eloquência dos Escribas. Memórias sobre Fontes e Recursos da Literatura Africana], 2006,Ayi Kwei Armah reflecte sobre o poder político e sua legitimidade, negando a fatalidade da violência política em África. A este propósito, escreve: “Uma vez que o poder político pós-conquista deriva de uma violência superior, a violência tornou-se o caminho para o poder efectivo na política africana. Por isso, é fácil supor que a busca de legitimidade política através da violência seja um traço cultural africano. A história conta uma narativa diferente. A propensão para tomada militar do poder tem fundamento histórico na adopção de modelos europeus. Isso verificou-se no antigo Egipto e nos Impérios africanos, tais como o Ghana”. Ayi Kwei Armah considera que o princípio do governo fundado na força como direito, não é universal, nem eterno. Por isso, lamenta o facto de existirem textos originais, tanto literários quanto científicos, que, apesar de inspirarem estudos, além da identificação de diferenças culturais, não atraem a atenção dos Departamentos de Literatura. São apenas estudados em disciplinas como História e Egiptologia.

 
Pretorianismo histórico

O modelo da intervenção militar para o exercício do poder tem as suas conexões históricas como a corte pretoriana do império romano, integrada por guarda-costas dos comandantes militares. Constituía a chamada “guarda pretoriana romana”, o contingente militar da capital imperial que tinha a responsabilidade de preservar a legitimidade do império, defendendo o Senado contra eventuais ataques militares e desempenhando tarefas administrativas. Essa “guarda pretoriana romana” caracterizava-se do seguinte modo:1)unidade constituída por soldados da elite privilegiadadas forças armadas; 2) responsabilidade pela segurança do imperador romano e sua família; 3) remuneração superior ao das restantes unidades do exército; 4) melhores condições de trabalho e uma relação próxima com o imperador. Nos tempos do imperador romano, Augusto (63 a.C. – 14 d.C.),era uma das instituições com maior notoriedade.

Na Europa, o Estado pretoriano moderno distingue-se pela intervenção dos militares na vida política, exercendo cargos governativos. Donde, admite-se que sejam eles os protagonistas de golpes militares e de mudanças inconstitucionais de regimes políticos. No campo de estudos sobre as relações entre civis e militares, reconhece-se que a Espanha teve o mais expressivo modelo de pretorianismo no século XIX. O cientista político Amos Perlmutter (1931-2001), um dos mais importantes especialistas do pretorianismo ocidental, entendia ser impossível definir esse fenómeno político, ignorando a relação existente entre o pretorianismo histórico e o moderno. Por isso, numa generalização que parece confinar-se ao mundo ocidental, defende o ponto de vista segundo o qual o pretorianismo existiu em todos os períodos históricos.

 
Conceito de golpe de Estado

O espectro do Estado pretoriano moderno, na Europa, encontra um dos seus originais teóricos no escritor e filósofo francês, Gabriel Naudé (1600-1653), autor do livro “Considérations Politiques sur les Coups d’État”,[Considerações Políticas sobre os Golpes de Estado], 1639. Naudé define, o “golpe de Estado”, destacando os seguintes aspectos:(1) carácter extraordinário a que correspondem circunstâncias extraordinárias; (2) acto envolto por sigilo e surpresa; (3) execução ilegal e contra interesses particulares; (4) justificação fundada no facto de ser realizado em nome do bem público, legitimando-se a posteriori; (5) manifestação associada a consequências boas ou más.

É evidente que Gabriel Naudé formula um pensamento que se inscreve na filosofia da acção política do italiano Nicolau Maquiavel (1469-1527).A definição de Naudé visa uma redefinição dos critérios de avaliação da acção política. Ignora a dimensão moral. Mas para a legitimidade do golpe de Estado, importa apenas a sua eficácia. À luz de algumas correntes da Filosofia do Direito e da Filosofia Política, o golpe de Estado constitui um facto jurídico e acontecimento político excepcional, em virtude de ser amoral e inconstitucional. Entram em cena dois jurisfilósofos ocidentais, Hans Kelsen (1881-1973) e Carl Schmitt (1888-1985). Levanta-se o problema da relação entre o regular e o excepcional. Para o cientista político sueco, Jens Bartelson, o conceito europeu clássico de golpe de Estado, definido por Gabriel Naudé, prefigurava o conceito moderno de revolução. O desdobramento da interpretação do golpe de Estado como revolução toma forma na teoria kelseniana da revolução bem-sucedida. Hans Kelsen defendia a teoria do efeito legal de um golpe de Estado, operando com os conceitos constitucionais numa perspectiva juspositivista.
Continuidade do direito nacional

Assim, na sua Teoria Geral do Direito e do Estado, Kelsen parte do pressuposto segundo o qual uma “revolução no sentido mais amplo da palavra, que inclui golpe de Estado, é uma mudança não-legítima da Constituição ou sua substituição por outra Constituição”. Não importa que a mudança da situação jurídica seja provocada pela aplicação da força contra o governo legítimo ou pelos próprios membros desse governo, seja por um movimento de massa da população ou por um pequeno grupo de indivíduos. Os critérios com que opera Hans Kelsen, nomeadamente, território, população e governo apontam para a necessidade de explorar os conceitos de reconhecimento do Estado no Direito Internacional. É a teoria da continuidade do direito nacional ou da identidade do Estado. Neste sentido, o reconhecimento de um governo revolucionário é possível. O mesmo não acontece com os actos do governo revolucionário que merecem reconhecimento parcial, de acordo com o princípio da necessidade do Estado, na medida em que se revela necessário garantir a ordem civil. Portanto, uma mudança ilegal na Constituição de um Estado é uma revolução. Nisto reside a teoria kelseniana da revolução bem-sucedida.

Teoria da descontinuidade

Por outro lado, a revolução tem sido igualmente abordada à luz da teoria da descontinuidade jurídico-legal. Na formulação da sua teoria, Kelsen equipara os golpes de Estado a revoluções que dão lugar à revogação de leis e criação de novos sistemas jurídicos. Em sentido contrário, estão aqueles que não reconhecem a categoria de actos inconstitucionais que implicam uma modificação das leis vigentes, sem dar origem a um novo sistema jurídico, porque esses actos não afectam a Constituição, enquanto critério de validade do sistema. Neste caso, tratar-se-á de “mero golpe de Estado”. É disso que se trata quando Kelsen usa o termo golpe de Estado.

Portanto, a teoria da descontinuidade jurídica sustenta o princípio segundo o qual toda a mudança ilegal que afecta a Constituição de um Estado é uma revolução, e que uma revolução extingue a totalidade da ordem jurídica, substituindo-a por um novo sistema. Deste modo, discute-se a pertinência dos critérios para categorizar os golpes de Estado como revoluções que conduzem à revogação das leis.

Ao interpretar essas teorias, o filósofo australiano, John Finnis (n.1940), considera que as revoluções que conduzem à revogação das leis e os meros golpes de Estado distinguem-se com base nos critérios seguintes: a) um mero golpe de Estado afecta apenas as regras que regem a sucessão de pessoas em cargos que exerçam; b) as regras que regulam o exercício de poderes e a hierarquia dos próprios estatutos não são afectadas.

Conclusão

O referido pretorianismo moderno chegou ao nosso continente na primeira década das independências políticas. Presentemente, são as típicas situações de excepção, por que passam quatro países da África Ocidental, que nos convocam. Estão em causa a continuidade da identidade do Estado e a teoria da descontinuidade jurídica. Por conseguinte, faz sentido reflectir sobre os fundamentos e a justificação dos golpes de Estado militares. Não é propriamente a perspectiva histórica que importa. Podendo estar subjacente, a história fornece subsídios para identificar os tipos de golpes militares, as suas causas, o perfil dos líderes golpistas, bem como o efeito de “contágio de cáqui” na sub-região em que se integram os países, a natureza da violência, a caracterização da reacção das populações.

A comparação e as interrogações acerca dos golpes de Estado mais recentes com os golpes do período que se seguiu  imediatamente às independências sugerem releituras de textos literários clássicos, num conjunto que comporta o romance, a poesia, o texto dramático, o ensaio e a escrita memorialística. Pretendemos reafirmar o valor da literatura enquanto filosofia política. Estamos de acordo com a argumentação da nigeriana M. S. Chike Okolo, na sua apologia das “Literaturas Africanas como Filosofia Política”.Portanto, pretendemos encontrar respostas acercadas relações que, em África, se devem estabelecer entre o poder político e os militares, além do profissionalismo assumido e papel que as forças armadas devem desempenhar como instrumento multidimensional que permite defender a soberania dos Estados e garantir a segurança das nossas comunidades políticas.


*Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 13/08/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/pretorianismo-um-tema-das-literaturas-e-da-filosofia-i/

Marcos Carvalho Lopes

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