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Utopia II: A violência no campo

Inglaterra 1515 ou América Latina hoje*?

por Gonçalo Armijos Palácios

            Na Utopia de Thomas More, escrita em 1515, plasmam-se as críticas à velha Europa e as esperanças de um mundo diferente. O livro, com efeito, está dividido em duas partes. O relato de Rafael Hitlodeu sobre a ilha de Utopia, o Não-lugar ou Nenhures, só aparece depois de os interlocutores discutirem sobre alguns dos problemas que afligiam a Europa da época. Alguns desses problemas, é bom notar, ainda são problemas para nós, como a questão da terra e das propriedades rurais, a miséria, a violência, a delinqüência e a pena de morte (oficial ou não).

            A Inglaterra da época estava sendo assolada pelo problema do desemprego forçado de trabalhadores rurais e das conseqüentes vagabundagem e delinqüência. Os nobres tinham expulsado os camponeses da terra para transformar vastas áreas cultivadas em áreas de pastoreio. Criar ovelhas para produzir lã era muito mais barato e rentável que trabalhar os campos, arar, semear e colher. Milhares de pessoas foram expulsas das terras que trabalhavam e, para evitar a fuga de animais, o  que até então era domínio público foi aos poucos sendo apropriado pelos grandes senhores e cercado. Os camponeses ficaram sem trabalho, perambulavam sem rumo uns, outros se dirigiam às cidades. Eram tantos que uma das soluções para eliminar seu número foi criar leis proibindo a vagabundagem, delito que passou a ser castigado com pena de morte. O aumento explosivo da população desempregada provocou o aumento da delinqüência. Os camponeses, para comer, eram forçados a cometer pequenos furtos que, também, eram punidos com enforcamento. Milhares de ladrões eram enforcados nos caminhos e, seus corpos, deixados pendurados das árvores para servir de exemplo e coibir novos furtos. Apesar de o castigo ser tão desproporcional ao crime, a pena de morte por roubo não coibiu os famintos camponeses de roubar para alimentar seus famélicos filhos e esposas. (Uma publicação de 1807 afirma que só no reinado de Henrique VIII foram enforcados 72.000 ladrões!)

            Imaginemos como deveriam ter sonhado com outro país aqueles que viviam num reino que, sem contar as execuções dos homicidas, só os ladrões executados chegavam aos milhares. Como nós hoje fazemos, os interlocutores de Utopia se perguntam pelas razões disso tudo. Rafael, personagem central da Utopia e quem depois faz o relato sobre sua viagem à ilha, diz:

Um dia, quando jantava com o cardeal, estava presente à mesa um certo advogado inglês. Não me lembro exatamente de como o assunto veio à tona, mas ele falava com grande entusiasmo sobre as rigorosas medidas que, na época, eram tomadas contra os ladrões. Estão sendo enforcados por toda parte, disse ele, e já vi mais de vinte irem de uma só vez para o cadafalso. Mas afirmou não entender como tantos ladrões continuavam a surgir num momento em que tão poucos escapavam ao enforcamento.[1]

Essa é uma pergunta que ainda hoje se escuta nos países em que há pena de morte. Nos Estados Unidos, por exemplo, os estudos mostram que nos estados em que há pena capital a existência desta não diminui o número de homicídios. E os dados mostram, também, que a quantidade de homicídios é maior nos lugares mais pobres. Continuando aquele trecho, Rafael Hitlodeu pondera:

Não há com que se espantar: esse modo de lidar com os ladrões é tão injusto quanto socialmente indesejável. Enquanto punição é severo demais, e, enquanto meio de intimidação, ineficaz. O pequeno furto não é crime tão grave que mereça a pena de morte, e não há no mundo nenhum castigo que faça as pessoas pararem de roubar quando é esta a única forma de que dispõem para conseguir alimento. (Loc. cit.)

Esse, de fato, era e continua sendo um dos problemas da delinqüência: desemprego, falta de oportunidades, fome… Mas Rafael Hitlodeu não pára aí:

A esse respeito, vós, os ingleses (como, de resto,  quase todos os outros povos), vos assemelhais aos maus professores, para os quais é melhor bater nos alunos do que ensiná-los. Em vez de infligir esses castigos horríveis, seria muito mais apropriado assegurar a todos algum meio de subsistência, de tal modo que nenhum homem se visse compelido por terrível necessidade a roubar e depois pagar por isso com a morte. (Loc. cit., meus grifos)

            Segue uma discussão sobre as razões que levam as pessoas a roubar e, alguns trechos depois lemos: “‘Existem outros motivos que induzem a essa prática e são peculiares ao vosso país.’ ‘E quais são eles?’, perguntou o cardeal. ‘Os carneiros’, respondi-lhe.” (p. 31) Permitam reproduzir o longo mas belo trecho em que se explica o que é os carneiros têm a ver com tudo isso e se descreve o processo conhecido como ‘cercamento’ (“enclosure”):

Naquelas partes do reino onde se produz a mais bela e mais cara lã, os nobres e os fidalgos … deixaram de contentar-se com os rendimentos que seus antepassados extraíam de suas propriedades. Não mais lhes basta levar uma vida cheia de ócio e conforto, que em nada contribui para o bem da sociedade – precisam, agora, fazer-lhe mal, e para isso cercaram toda a terra arável para convertê-la em pastagens, nada deixando para o cultivo. Estão demolindo casas e destruindo cidades inteiras, com a evidente exceção das igrejas – que utilizam como apriscos. E, como se já não tivesse desperdiçado terra suficiente com suas florestas e reservas de caça, esse tipo de gente começou agora a destruir todo e qualquer vestígio de habitação humana e a transformar em desertos incultos tudo o que ainda restava de terras cultiváveis. E qual é o resultado de tudo isso? Todo homem avaro cai feito ave de rapina sobre sua terra, e, como uma praga incontrolável, vai se apoderando de todos os campos que ainda restam e cercando milhares de hectares com um único muro. Assim, centenas de camponeses são escorraçados. São enganados ou forçados pela violência a abandonar suas propriedades, quando não perseguidos implacavelmente até que não lhes reste outra saída a não ser venderem tudo o que têm. Seja qual for a tática adotada, essas pobres criaturas são obrigadas a partir – homens e mulheres, maridos e esposas, viúvas e órfãos, mães com crianças de peito e famílias inteiras… (…) São forçadas a abandonar os lares que tão bem conheciam, e não encontram nenhum outro lugar para viver. (…) Depois de perambularem por toda parte, esvaem-se os seus parcos recursos, e então o que lhes resta a não ser roubar e terminar seus dias na forca – com justiça, como diríeis? (pp. 31-2)

Essa história nós, cidadãos latino-americanos, conhecemos bem. Enquanto lia essas passagens perguntava-me: Sobre o que mesmo está falando Rafael Hitlodeu, da Inglaterra de 1515 ou da América Latina de hoje*?


[1] Thomas More, Utopia, São Paulo : Martins Fontes, 1999, p. 25.

*O texto fala da “América Latina de 2002” data em que foi escrito. Na edição fiz essa pequena alteração para que o impacto pretendido não se perdesse.

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2002

Marcos Carvalho Lopes

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