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Sobre a canção “AFRICAR” do botAfala (trecho com pressupostos de filosofia africana)

Estamos construindo um livro compilando as letras e alguns textos sobre a trajetória do botAfala, projeto de extensão e pesquisa que se propõe a utilizar o hip-hop na composição de uma educação democrática, que completou 3 anos. Este é um trecho do ensaio “Compondo uma educação democrática: botAfala e a invenção de “Africar” que deve ter os seguintes passos:  (1) descrição de como o grupo estava num momento de esgotamento e de certa forma tinha acabado em Agosto de 2017, depois da gravação para o Conversa com Bial; (2) a importância da entrada de Eugênio Evandeco na reinvenção do grupo; (3) a conversa sobre o livro Na minha pele de Lázaro Ramos e a decisão de participar do desafio do programa Lazinho com você; (4) o processo de construção da canção Africar; e (5) sua repercussão, apropriação e tradução feita pela equipe do programa Lazinho com Você e  a reinvenção do botAfala; (6) a proposta da produção do programa Lazinho com Você, o Bota a fala e a educação democrática proposta por Cornel West.   Esse trecho é parte do ponto (4).

 

Na sexta, levei o equipamento de gravação, Eugênio conseguiu um notebook emprestado de um amigo, Magno apareceu com alguns versos para a letra, o refrão que dizia “Me leva, me leva, me leva pra África” era uma criação antiga feita em cima de uma base enviada pelo DJ Sankofa, mas essa música tinha seus direitos reservados e não poderia ser utilizada. A solução seria então deixar a criação do beat a cargo do Eugênio, que com sua experiência misturando ritmos poderia criar algo dançante. Magno já havia chamado Patrícia Nzalé para cantar Bota a Fala, mas essa participação não tinha se efetivado, pela própria inércia do grupo. Convidou também Juciane Aparecida, caloura que estava naquela manhã na UNILAB e que já havia se destacado cantando samba em um evento de recepção de novos estudantes. Nem Patrícia, nem Juciane cantavam hip-hop; mas o desafio pedia algo diferente, dançante…
Era preciso acertar a letra, aperfeiçoar, problematizar: fazemos isso conversando. Uma objeção sobre o refrão era de que a ideia de “back to Africa”, de Marcus Garvey (como algo físico) a Negritude (como uma reafricanização), me parecia tão gasta e repetitiva quanto a afirmação da “Mama África”. Sugeri que mudássemos esse sentido nos versos, pensando como Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas, quando diz que o sertão está em toda parte: poderíamos parafraseá-lo dizendo que a África está em todo lugar e inventamos a nossa aqui. Isso redescrevia a volta para África. Mas a multiplicação de sentidos podia ser maior, com uma multiplicação de vozes. Propus um jogo de perguntas e resposta em que a “dança”, a “música”, a “cabeça” é o que levariam para África. Essa ideia ruim foi – ainda bem – ignorada. A polifonia estaria em combinar as vozes, sotaques e línguas, cantando o refrão em português e crioulo guineense. Mais do que isso, aproveitariam para também no refrão dizer “Me leva pra ficar”. Márcio Valverde, compositor, produtor e músico, que é técnico na UNILAB e participa do Bota a Fala, sugeriu que o som polifônico do refrão também poderia gerar um verbo, “africar”, misturando “África” e “pra ficar”. Este “verbo” era perfeito para redescrever a relação com a África, fugindo de qualquer fixação, mas tornando-se uma atividade. Africar era também um ótimo título para a canção. 
Magno passou a primeira parte da letra para Juciane, que foi montando a melodia e já demonstrando o que é óbvio: é uma cantora de mão cheia. Criou uma melodia dançante, para a abertura das estrofes que descreve uma situação confusa, em que o eu-lírico diz não saber onde estar, desconhecer e questionar o motivo que a levou para aquele lugar e rejeitar, afastando pra longe, os “cabeças quadradas” sem imaginação. 
A segunda estrofe, que seria cantada por Patrícia, deveria dialogar com esta primeira, mas não estava pronta. O sotaque de Juciane e Patrícia gerou um contraste entre as duas estrofes, com caminhos melódicos distintos, como se as duas dialogassem, na diáspora e vindo de África, as vozes se encontram e se misturam no refrão. Na letra, Magno queria colocar algo sobre o movimento “vidas negras importam”, falar do genocídio negro. Conversamos e foi consenso de que esse tema não caberia numa canção dançante, porque pedia uma fala mais prosaica e grave como a do rap. Certo, mas a perspectiva tragicômica faz parte da cultura negra e o blues, o jazz, o samba são mesmo fruto da “tristeza que balança”. A solução de Magno veio nos versos “criatividade não pode faltar/ é ela que nos faz sobreviver”, que cantados em crioulo guineense reafirmavam o enraizamento e a presença deste “outro” lugar como pátria utópica que precisa ser construída. 
Esse “outro” lugar não cabe na Lusofonia, mas talvez se encaixe como a promessa daquilo que Achille Mbembe chama de Afropolitanismo, “o nome para o compromisso com uma reflexão crítica sobre os muitos modos pelos quais de fato não existe nenhum mundo sem a África e também não existe África que não seja parte deste [mundo]” ou o “modo – ou aos muitos modos – com os quais os africanos ou povos de origem africana entendem a si mesmos como sendo parte do mundo ao invés de pertencerem a um mundo à parte” (p.29). No entanto, me parece que, de modo diverso da proposta de Mbembe, a afirmação da “língua guineense” propõe um tipo de enraizamento de lealdades ampliadas, que não se identifica imediatamente com o cosmopolitismo em sua visão mais universalista e desenraizada. Em verdade, sempre partimos de algum lugar ou de alguns lugares, mas é preciso ter em conta e tentar desvendar o sentido do aforismo Asante que diz “Kuro kory mu nni nyansa”. Para se aproximar do significado de “kuro”, que se refere ao “povo” ou “povo natal”, levando em conta a relativa autonomia das cidades Asante o filósofo Kwane Anthony Appiah se vale da palavra grega “polis”, traduzindo assim este provérbio: “numa polís única não existe sabedoria”. Africar é partir de um lugar e ir além, na busca da sabedoria.
Falar de “busca da sabedoria” parece ser um exagero, e é quando partimos de uma concepção de conhecimento que separa o sujeito, que conhece e o objeto, que é conhecido. Porém, se tentarmos tomar como perspectiva a proposta de Leopold Senghor o exagero parece menos. Senghor identifica ser e ritmo, e pedi para que na busca do conhecimento tenhamos uma “atitude rítmica”, de aproximação e internalização do que se quer saber. Essa perspectiva “ontológica” do ritmo está presente na parte do rap cantada por Suleimane (que escrevi, ele criou a melodia e finalizou os versos): na medida em que você dança Africar, se aproxima da África pelo ritmo da pulsação, internalizaria a condição desta “sabedoria rítmica”.

 

Marcos Carvalho Lopes

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