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Sophie Oluwole e o novo cânone filosófico

A ICONOCLASTIA DE UMA FILÓSOFA AFRICANA
Luís Kandjimbo*

Por gentileza do meu amigo, o embaixador Olabiyi Yai, recebi há algumas semanas quatro revistas de filosofia publicadas pela Sociedade Beninense de Filosofia, nos últimos três anos. A edição de 2019 traz o
artigo de uma filósofa nigeriana cuja leitura convida à busca de outras conexões discursivas. Lembrei-me das tarefas inscritas na minha fragmentária lista de trabalhos para os próximos anos.
É que quando terminei a redacção de um original de ensaios sobre filosofia, já entregue ao editor, senti uma profunda necessidade de completá-lo com uma secção dedicada a filósofas africanas e afro-descendentes. Não pretendendo ter o peso de consciência por apoio a actos misóginos e injustiça epistémica, decidi dar prioridade à escrita e um impulso à actualização da agenda. Mas ainda é muito cedo para fazer o balanço.
Conheço algumas filósofas africanas, leio livros de outras que não tive a sorte de conhecer e também
daquelas que não conhecerei nunca, tais como a nigeriana Sophie Oluwole (1935–2018) de que vos falo
hoje e a senegalesa Aminata Diaw Cissé (1959 –2017), já falecidas. No entanto, vou acompanhando o trabalho de outras filósofas africanas e afro-descendentes espalhadas pelos quatro continentes. Estou
a referir-me, por exemplo, a Nkiru Nzegwu, nigeriana; Ramatoulaye Diagne Mbengue, senegalesa; Safaa Fathy, egípcia; Soumaya Mestiri , tunisina ; Tanella Boni , ivoriense; Arminda Fernando Filipe, angolana; Mpho Tshivhase, sul-africana; e Nancy Meles Baffour-Gyamfi, ganense.
À luz da periodização da História da Filosofia Africana proposta pelo historiador Théophile Obenga, podemos encontrar as primeiras filósofas africanas no Egipto Antigo.
Mas, tal como denuncia Hassan Banhakeia, no seu livro sobre história do pensamento filosófico Amazigh do Norte de África, os preconceitos eurocêntricos dominantes nem permitem, no contexto da África Global, que o discurso historiográfico tenha em conta o território da actual Líbia como o berço da Escola Cirenaica, onde se revelou Aréte de Cirene, no século IV a.C (400 a.C.–340) que, sendo filósofa africana, não é identificada como tal. Era filha e discípula de Aristipo de Cirene, o fundador da referida escola e discípulo de Sócrates de quem era igualmente amigo. Aréte de Cirene dedicouse ao ensino da filosofia geral e da ética durante mais de trinta anos. Um dos seus mais ilustres alunos foi o seu filho, outro filósofo de Cirene, Aristipo, o Jovem, contemporâneo de Aristóteles. No século XX, a ilustração vem de uma afrodescendente. Trata-se de Joyce M. Cook (1933-2014), a primeira africana-americana doutorada em Filosofia pela Universidade de Yale em 1965 e a primeira professora de filosofia na Universidade de Howard, cujo nome não é referido em nenhum verbete do quarto volume da história das mulheres filósofas, publicado em 1995.
A excepção eurocêntrica da misoginia na filosofia é protagonizada pelo latinista francês Gilles Ménage,
que publicou um livro sobre “História das Mulheres Filósofas”, em 1690. Com longos lapsos de tempo,
três séculos depois, entre 1987 e 1995, é publicado nos Estados Unidos da América um conjunto de
quatro volumes como resultado de um projecto de investigação colectiva sobre a história das mulheres filósofas.


Injustiça epistémica
A injustiça epistémica de que falo exprime-se também através da exclusão de mulheres africanas e
afro-descendentes, mulheres asiáticas e latino-americanas dos manuais e cânones da história da
filosofia e do ensino da filosofia. Relativamente ao continente africano tal comportamento assume
outras formas. Aqui a misoginia corresponde a um preconceito de sentido duplo. Em primeiro lugar,
visa as mulheres de um modo geral. Em segundo lugar, o predomínio de modelos, métodos e ferramentas analíticas ocidentais nos espaços académicos e nas instituições públicas, por força da falaciosa argumentação helenocêntrica (centrada na Grécia) do berço da filosofia. Em Angola, isto é observável quando consultamos os manuais de ensino da filosofia. Entre as armadilhas de natureza cognitiva está a inexistência de referências a filósofas africanas, além do silêncio que paira sobre o
enquadramento histórico dos debates e correntes do pensamento filosófico africano em que participam as mulheres.
Por essa razão, gostaria de chamar a atenção do leitor para esta filósofa nigeriana, Sophie Obasede Oluwole. É uma das mais brilhantes e singulares vozes da filosofia africana, até à primeira década do século XXI. A sua fecunda produção bibliográfica comprova-o. Foi a primeira mulher nigeriana a obter o doutoramento em filosofia pela Universidade de Ibadan, na década de 80 do século XX com uma tese sobre metafísica e ética ocidental. Foi chefe de Departamento de Filosofia na Universidade de Lagos e Presidente da Associação Nigeriana de Filosofia. Publicou vários livros importantes de que destaco apenas um: “Socrates and Ọ̀rúnmìlà: Two Patron Saints of Classical Philosophy” (Sócrates eỌ̀rúnmìlà: Dois Santos Padroeiros da Filosofia Clássica), 2014.
Ora, é preciso saber o que a distingue de outros filósofos. Quais são os seus temas e problemas filosóficos recorrentes para se revelar como uma voz distinta?


Identidade do discurso
Ao proceder à caracterização da filosofia feminista num interessante capítulo publicado no compêndio
que conta com a contribuição de várias autoras, Sophie Oluwole nega a existência de uma filosofia
feminista em África. Por isso, considera que as problemáticas e discussões acerca de temas feministas e do gênero são tratadas como objecto de um domínio disciplinar específico, os “Estudos sobre Mulheres”.
Neste sentido, sustenta que a filosofia feminista africana poderá existir apenas a partir do momento
em que a mulher deixar de inspirar abordagens exclusivamente antropológicas ou sociológicas. Será
necessário formular questões respeitantes à situação da mulher e à condição humana, submetendo a
uma avaliação crítica os princípios que regulam a relação do homem e da mulher. No seu entender, não
pode ser negligenciada a investigação que permite compreender a expressão de crenças e ideias tradicionais e contemporâneas cujas fontes são os textos da tradição oral, porque é do pensamento africano que se trata.
Ao identificar o seu lugar no espectro da diversidade das correntes e escolas filosóficas continentais, ela inscreve o seu próprio discurso em duas correntes, a “tradicionalista crítica” e a “hermenêutica”, ao lado de filósofos como Kwame Gyekye, Akin Makinde e Lucius Outlaw.


Yoruba e descolonização conceptual
No seu conjunto, a obra de Sophie Oluwole traduz bem a reacção possível perante o apelo do filósofo
ganense Kwasi Wiredu, segundo o qual a produção de uma verdadeira filosofia africana requer o recurso
às línguas africanas, tendo em conta a necessidade da descolonização conceptual. Com essa perspectiva,
a sua obra contribui para o fim do debate estéril que durante décadas se concentrou em torno da existência da filosofia africana, roubando tempo aos filósofos profissionais apologistas da adopção de metodologias ocidentais, presumivelmente “universais”.
Sophie Oluwole parte do pressuposto que sustenta a perspectiva da hermenêutica filosófica
africana, cujo fundamento reside no postulado segundo o qual a prática da filosofia é um exercício criativo de interpretação da cultura a que se pertence. Por isso, notabilizou-se como especialista da Filosofia Yoruba, explorando a colecção de textos orais “Ifá” das tradições Yoruba, fontes dos
problemas filosóficos com que se ocupou ao longo de vários anos. O reconhecimento do seu pensamento filosófico tem a base no discurso argumentativo que constrói, nas problemáticas filosóficas que elege e no exame crítico a que são submetidas as referidas fontes. A morte colheu-a exactamente num dos momentos fulgurantes da notoriedade pública internacional enquanto filósofa.


Filosofia Comparada: Sócrates e Ọ̀rúnmìlà

Para uma perspectiva intercultural da filosofia, Sophie Oluwole aponta novos caminhos para a filosofia comparada e a história da filosofia. É o que acontece no livro “Sócrates e Ọ̀rúnmìlà: Dois Santos Padroeiros da Filosofia Clássica”.Traça o retrato de dois pensadores antigos de que se tem conhecimento como pessoas de carne, sangue e osso. Parte do pressuposto de que Sócrates e Ọ̀rúnmìlà viveram no século VI, antes de Cristo. Ambos dialogaram com outros interlocutores usando alegorias e mitos, recorrendo à poesia e à prosa, dificultando a discernibilidade da ficção, da verdade e da religião.
Sócrates foi condenado à morte, bebendo cicuta, por ser ateu e acusado de perverter os jovens.
Ọ̀rúnmìlà, decepcionado com o comportamento de seus seguidores “intelectuais”, partiu para o céu em vez de suportar uma sociedade irracional e incorrigível. Ambos são exemplos de integridade, por se dedicarem à promoção do desenvolvimento intelectual dos humanos. Não deixaram obra escrita. A melhor forma de referir as suas ideias filosóficas consiste no uso de enunciados através dos quais o
narrador ou o intérprete lhes atribui as falas.
Sócrates foi pobre. Ọ̀rúnmìlà era suficientemente próspero para alimentar os membros da sua família. Sócrates não foi polígamo. Ọ̀rúnmìlà era polígamo convicto. Uma das suas esposas era apresentada simbolicamente como “Igba Iwa”, “a cabaça da virtude”. Sócrates passou toda a sua vida em Atenas. Ọ̀rúnmìlà foi um professor que, viajando, ensinou e desenvolveu a arte de adivinhar para documentar elementos importantes da experiência humana.


Novo cânone filosófico
Paradoxalmente, Sócrates continua a ser estudado em África. Ọ̀rúnmìlà e gerações inteiras de seus descendentes são acusados de prática de “feitiçaria”, desqualificando-se o seu saber. Para Sophie Oluwole tal situação é deplorável. Por essa razão, exige-se com urgência um novo cânone filosófico para ensinar os jovens africanos a pensar de forma endógena sobre o seu legado cultural e intelectual.


* Ensaísta e professor universitário
Publicado originalmente no Jornal de Angola em 16 de agosto de 2020.

Marcos Carvalho Lopes

Um Comentário

  1. Grato por me apresentar a senhora Oluwole, tão.pertinenremente chamada Sophie. Creio que ela fará parte de minhas aulas em 2024, após pesquisa nas férias. Ótima contribuição a sua ao nos apresentar esta introdução ao pensamento dela.

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