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Submissão disfarçada

Mostra-me teu chavão preferido e te direi submisso de quem és

de Gonzalo Armijos Palácios

No saben el camino, Goya

Pela enésima vez escutei, num encontro acadêmico, que a filosofia é criação de conceitos. Ouvi que o professor de filosofia tem um papel e que ele consiste em tornar os estudantes contestadores, críticos e toda essa ladainha que se atribui aos pensadores considerados progressistas ou revolucionários. E esses — pelo que parece — seriam os bons pensadores, os verdadeiros filósofos. Está implícita a ideia de que o filósofo é, por essência, um contestador e um revolucionário. Não pode ser, de forma alguma, um conservador e menos ainda quem consideraríamos estar no extremo dessa posição: um reacionário, autoritário, antidemocrático etc. Defendeu-se que “o filósofo é um dissidente” e que o professor de filosofia deve ter o poder de contestar valores.

Devo confessar que ouvi da mesma pessoa considerações corretas, como o fato de, no estudo da filosofia, mantermos um interesse fundamental pela verdade. E a palestrante criticou com toda razão esse relativismo vazio segundo o qual na filosofia não há nada em que nos apoiar e que cada um pode atribuir a qualquer autor o que lhe vier à cabeça. Deu-se um exemplo como este: se Kant disse algo, então não disse o oposto. Ou, então, é falso afirmar que Platão era hegeliano. Se, no primeiro caso, por exemplo, Kant disse que não é possível conhecer as essências das coisas, então, não lhe podemos atribuir a tese oposta, assim como é equivocado dizer que um autor que viveu mais de três séculos antes de Cristo poderia ser discípulo de um filósofo do século 19. Concordo plenamente. Mas também penso que o interesse pela verdade vai além das meras interpretações. Se alguém mantivesse a tese de que as mulheres devem obedecer aos homens porque, como pensava Aristóteles, uns nascem para mandar e outros para obedecer, então eu deveria me posicionar claramente contra ele e, mesmo apesar de ter sido um dos maiores filósofos, não me furtarei a manter uma posição contrária que me parece verdadeira: homens e mulheres somos iguais. Nesse caso  devo dizer que Aristóteles está equivocado e Platão, seu mestre, que pensava que as mulheres eram iguais aos homens e igualmente capazes para governar uma polis,  completamente certo.

Nos últimos anos, ouvi de outro palestrante, pelo menos em três ocasiões diferentes, repetir a tese de que a filosofia é criação de conceitos. Afirmações como essas ocorrem geralmente quando se discute ensino de filosofia. E o que se pretende com isso, entre outras coisas, é mostrar que o professor de filosofia tem um papel. Quando ouço isso já começo a ficar arrepiado, porque, por que deve ter um determinado papel e não outro, ou vários? E esse papel não pode ser outro que, como disse acima, levar o estudante a assumir atitudes críticas, contestadoras e ser, em suma, um dissidente. Mas esse objetivo, imagina-se, se conseguiria defendendo a tese de que a filosofia não tem uma tarefa contemplativa, repetitiva, passiva, e sim criativa. Então, pronto, a filosofia tem de ser e só pode ser criação de conceitos.

No tipo de atividade intelectual que conhecemos como filosofia podem ser criados conceitos, mas não é isso que determina que um processo reflexivo seja filosófico, pois nas ciências também se criam conceitos. Concordo com o autor que defende essa concepção, Deleuze, que para pensarmos filosoficamente precisamos de um contexto problemático, mas discordo que toda tentativa de resolvermos problemas nos leve a criar conceitos.

Há vários problemas com essa definição de filosofia. Primeiro, ela é falsa, porque nem todo filósofo, cada vez que fez filosofia, criou conceitos. Em segundo lugar, e já dentro da atuação do professor de filosofia em sala de aula, especialmente com os mais jovens, ao se manter essa tese vai criar uma reação adversa à que quer provocar. Pois se pretende que com essa concepção de filosofia se estimularia o pensamento criativo, crítico. Estimular-se-ia, numa palavra, a ser filósofo. Ocorre que o seguinte raciocínio é o mais óbvio: se para filosofar devo criar conceitos, como diabos faço para criar um? Ou, então, se é verdade que filosofia é criação de conceitos, cadê os conceitos criados por meu professor ou professora? Se não me podem apresentar nem um, então, obviamente, não é nem filósofo nem filósofa, mas simplesmente um ‘professor’ de filosofia — como muitos gostam de ser chamados, livrando-se do ônus da prova que sua própria definição exigiria.

E justamente isso o que me deixa irritado. Nem se mata a cobra, nem se mostra o pau. Nas três oportunidades que pedi para aquele palestrante que citasse os conceitos que ele criou — ou levou seus estudantes a criar — nos, digamos, dez, quinze ou vinte anos de didática filosófica, o que achou melhor foi fazer uma brincadeira e sair pela tangente. No encontro ao que me referi no início do artigo, fiz o mesmo desafio. O resultado foi o mesmo. Uma pena, porque o que se está apresentado há vários anos como uma posição contestadora e estimulante não é mais  do que submissão castradora disfarçada de dissidência.

José Gonzalo Armijos Palacios - Possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás.

(texto originalmente publicado no Jornal Opção Edição 1919 de 15 a 21 de abril de 2012 )

Marcos Carvalho Lopes

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