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A crítica aos poetas — parte final: Platão e os Poetas

Ao que parece, tanto para Platão quanto para Hesíodo e Homero, a justiça estava além do interesse pessoal, seja dos homens, seja dos deuses, Zeus incluído

A série de artigos que termino hoje refletiu sobre a crítica de Platão aos poetas e fez algumas considerações sobre a natureza da justiça. Na República, com efeito, Platão critica tanto a concepção atribuída ao sofista Trasímaco (de que a justiça consiste no poder dos governantes) como a que estaria implícita nas obras dos poetas gregos, especialmente nos poemas de Hesíodo e Homero.

Tentei mostrar que, no que diz respeito a Hesíodo, a crítica de Platão pareceria ser improcedente. Tanto na Teogonia como em Os trabalhos e os dias vemos defendida uma concepção de justiça que não depende do arbítrio do poderoso e parece estar muito além do interesse humano. Aliás, o que vemos nesses poemas, e especialmente no último, é que a justiça em si não se identifica sem mais com o que os homens determinam, pois os homens podem promulgar leis ou tomar decisões que não poderiam ser admitidas como justas em si mesmas. Nesse segundo poema vemos claramente defendida a tese de que, à diferença dos animais, nos homens não vige a lei do mais forte. Isto é, o mais forte não tem o direito de fazer o que quiser com o mais fraco, como ocorre entre os animais. Vejamos: “Pois esta lei aos homens o Cronida [Zeus] dispôs:/ que peixes, animais e pássaros que voam/ se devorem entre si, pois entre eles Justiça [Díke] não há;/ aos homens deu Justiça que é de longe o bem maior;/ pois se alguém quiser as coisas justas proclamar/ sabiamente, prosperidade lhe dá o longevidente Zeus;/ mas quem deliberadamente jurar com perjúrios e,/ mentindo, ofender a Justiça, comete irreparável crime…” (vv. 276-283).

No caso de Hesíodo, a justiça está intimamente relacionada com o trabalho e com a racionalidade da produção. Trabalha-se para produzir, para satisfazer necessidades, para sobreviver, mas também para prosperar. Quem trabalha tem a esperança de melhorar e prosperar. Mas isso só pode acontecer num ambiente de paz e respeito. Isto é, só pode ocorrer se os demais fizerem o mesmo: trabalhando para si e respeitando o que é dos outros. Os costumes determinam o que é correto e incorreto — daí a etimologia de ‘‘ético’’ — condicionando, por sua vez, as leis. Pois os únicos costumes que podem garantir a sobrevivência de uma comunidade são aqueles que vão ao encontro das suas formas produtivas. As leis, conseqüentemente, não podem ser aleatórias nem depender da vontade de quem está no poder. Nesse sentido, está claro em Hesíodo que a lei não descansa no poder nem o poder gera direitos. Isso está claro na fábula do gavião e o rouxinol, que analisamos no artigo da semana passada.

Homero — O caso de Homero é diferente do de Hesíodo. Platão cita muito mais Homero do que Hesíodo e, proporcionalmente, cita muito mais favoravelmente Hesíodo do que Homero — pelo menos na República. A questão é determinar se as críticas nessa obra são justas no que diz respeito a este último poeta. Penso que forneci suficientes argumentos para mostrar que não o são a respeito de Hesíodo.

Na verdade, Platão fornece farto material dos poemas de Homero para provar que este não merece estar na sua cidade ideal. Mas há também passagens que podem sugerir o contrário, que Homero também concordaria com a tese de que a justiça não depende do arbítrio humano e que até os deuses, ou melhor, o deus, Zeus, a ela também devia se submeter.

O problema dos poetas, segundo Platão, é que passariam para as crianças (e inclusive aos adultos) a idéia falsa de que não existe justiça em si ou que os próprios deuses gregos não se submetiam a uma justiça superior que estivesse além de suas divinas vontades.

Escolhi um trecho da Ilíada que sugere exatamente o oposto. É a passagem em que Pátroclo luta e elimina o filho mortal de Zeus, Sarpédon, que o deus tivera com uma mulher e não com uma deusa, e que era o seu preferido entre os mortais. No episódio em questão, Sarpédon vê que alguns lícios, seus patrícios e aliados dos troianos, estavam sendo mortos por Pátroclo, amigo de Aquiles. Sárpedon desafia Pátroclo, que desce de sua carruagem para enfrentá-lo. A cena era presenciada por Zeus, que disse a Hera, sua irmã e esposa: “Ei!, sou eu mesmo, já que Sarpédon, o mais querido por mim entre os homens, é o destino que por Pátroclo seja morto, de duas maneiras meu coração está ansioso, o pensamento ponderando: ou vivo longe da cruel luta devo tirá-lo deixando-o na fértil terra dos lícios, ou que morra nas mãos de Pátroclo.” Hera lhe responde: “‘Reverenciado Cronida, que dizes, sendo os homens mortais, de muito tempo decidido pelo destino, queres libertá-lo da morte trazendo de volta sofrimento? Vá em frente! Mas, de verdade, nem todos os deuses aprovamos. E outra coisa te direi: põe isto em teu coração: se vivo envias Sarpédon a sua casa, pensa bem, os deuses não queiram também seu filho querido longe do poderoso combate enviá-lo, pois muitos filhos dos imortais em volta da cidade de Príamo [Tróia] lutam grandemente, nos quais inspirarás amargo ressentimento. Mas se é teu filho querido, teu coração sofre, então, de fato, permite que ele em poderoso combate morra nas mãos de Pátroclo; mas quando a alma dele deixe a vida, que o leve a Morte e o carregue o doce Sonho, até que dos lícios o amplo povo alcance. Ali ele será enterrado pelos irmãos e patrícios num túmulo com uma lápide, pois é o privilégio dos mortos.’ Assim falou, e não desobedeceu o pai dos homens e deuses. Gotas de sangue caíram na terra, honrando o filho querido, a quem Pátroclo estava prestes a matar em profundo solo troiano, longe da pátria.”¹

A passagem é sugestiva por várias razões. Primeiro porque o próprio Zeus duvida entre seguir o que está determinado e é necessário, que seu filho morra, e o que seu coração e seus interesses pedem: salvá-lo. Temos aqui o caso em que o deus dos deuses se encontra frente a um dilema. O dilema consiste em escolher entre o que lhe interessa pessoalmente e o que interessa a todos. Hera o chama a ponderar e decide pelo que não é de seu imediato interesse. Claramente, o que estava decidido pelo destino foi cumprido, a despeito do interesse do próprio Zeus. Se devêssemos extrair alguma conclusão desta passagem, tomando-a isoladamente, seria esta: nem o próprio Zeus agiu em proveito próprio! Noutras palavras, a justiça está além do que a homens e deuses, individualmente, convém.


¹ Homero, Ilíada, Livro 16, in: Joint Association of Classical Greek Teacher’s Greek Course: A Greek Anthology. Cambridge : Cambridge University Press.


Direitos da imagem do Metropolitan Museum of Art: www.metmuseum.org.


Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção

Marcos Carvalho Lopes

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