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A filosofia anti-colonial nos PALOP – IV

Luís Kandjimbo |*Escritor

Ao antetítulo podem ser associadas várias questões. Todas elas já enunciadas em algum momento das nossas conversas anteriores. Mas são necessárias para a clarificação que parece ser relevante. De que falamos, afinal, quando nos interrogamos acerca da classificação a atribuir à Filosofia Anti-colonial nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa? Trata-se de uma escola filosófica ou apenas de uma família filosófica? Uma taxonomia ou classificação do que pode ser Filosofia Anti-colonial dos PALOP não corresponderá, mais propriamente, ao trabalho típico da História das Ideias?

 
Também é história das ideias

Nos meios académicos ocidentais anglófonos, onde se desenvolve o ensino da Filosofia numa perspectiva interdisciplinar, refere-se o nome do norte-americano Arthur Lovejoy (1873-1962), o filósofo e especialista da história intelectual, quando se pretende falar da autonomia disciplinar da História das Ideias de que é um dos pais fundadores. Ele traça a linha divisória entre a História da Filosofia e a História das Ideias, nos seguintes termos. A História das Ideias, simultaneamente mais específica e menos restrita do que a História da Filosofia, trabalha com o mesmo material. Mas a diferença reside no facto de a história das ideias operar com as partes desse material, concentrando-o em novas classificações. Na Europa, há duas tradições da História das Ideias, uma britânica e outra germânica. A anglófona é representada pela chamada “Escola de Cambridge” em que pontificam muitos filósofos e historiadores das ideias, tais como Isaiah Berlin (1909-1997), Quentin Skinner, John Dunn e John Pocock. A germanófona tem os seus vultos em Eric Voegelin (1901-1985), Karl Löwith (1897-1993) e Hans Blumenberg (1920-1996). Segundo Marc Angenot, no espaço francófono europeu, não se reconhece legitimidade disciplinar e académica à História das Ideias, apesar da forma pessoal como a assumiu Pierre-André Taguieff e da fortuna editorial e crítica da obra de Michel Foucault (1926-1984) que se inscreve nesse campo disciplinar.

Portanto, pode dizer-se que nas referidas tradições europeias a tensão entre a Filosofia e a História das Ideias analisa-se na oposição entre a perspectiva sistemática da primeira que vai em demanda da identificação das bases para práticas e conceitos e a perspectiva histórica da segunda que consiste em recortar o recorrente nos sistemas construídos, organizando seus elementos constituintes a que Marc Angenot designa por “ideias colectivas”, “representações” ou “discursos”. O inglês Mark Bevir resume isso, ao afirmar que a História das Ideias “estuda as relíquias do passado na esperança de recuperar o seu significado”.

Ora, a separação da Filosofia e da História das Ideias no espaço europeu não significa que os campos das duas disciplinas se revelem igualmente cindíveis no contexto africano. A produção filosófica e historiográfica da segunda metade do século XX prova a inutilidade de qualquer tipo de cisão epistemológica. Em África, a História da Filosofia confunde-se com a História das Ideias, no plano metodológico. Isso pode ser demonstrado através da leitura das obras do sociólogo e crítico literário angolano, Mário Pinto de Andrade (1928-1990), do filósofo e crítico literário nigeriano, Abiola Irele (1936-2017), do filósofo e historiador congolês, Théophile Obenga, e do filósofo, crítico literário e escritor democrata-congolês, V. Y. Mudimbe. Faz sentido concluir que a Filosofia Anti-colonial dos PALOP, suportada por uma forte base de História das Ideias, desestabiliza duas famílias filosóficas africanas, nomeadamente, a ideológica nacionalista e a literária e artística.
Um problema de taxonomia filosófica

Já me referi ao espectro de cepticismo que paira sobre a Filosofia Anti-colonial dos PALOP, enquanto família ou escola filosófica africana. Nos termos em que se tem vindo a metamorfosear, esse cepticismo levanta efectivamente um problema de taxonomia filosófica. De certo modo, remete-nos para a reconstituição de um antigo debate, relativamente ao qual alguns filósofos Africanos, tal como o nigeriano Akin Makinde, manifestam uma indiferença total, considerando-o encerrado. Em todo o caso, é ainda necessária a reformulação de questões e respostas, adequando o antigo debate aos novos contextos, em vez da defesa imediata do seu encerramento, esquecendo a necessidade de renovar as definições de quem é filósofo Africano ou sujeito titular da capacidade de exercício do direito à filosofia.

Num texto já publicado nesta coluna, considerei que a tarefa deve ser levada a cabo por qualquer Africano que encontrar aí uma justificação para pensar em profundidade a prática filosófica sistemática, no nosso continente. A esta actividade reflexiva chama-se “meta filosofia”, isto é, o tratamento sistemático de métodos e conteúdos filosóficos ou pensar filosófico sobre a própria filosofia. Entretanto, é sabido que do ponto de vista da autonomia disciplinar universitária, a meta filosofia é um domínio negligenciado. Apesar disso, há autores que têm produzido uma meta filosofia explícita em torno desse tipo de problemas, tais são os casos de Godwin Sogolo, “In Search of African Philosophy” (Em busca da Filosofia Africana); Kwasi Wiredu (1931-2022), “On Defining African Philosophy” (Sobre a Definição da Filosofia Africana); Innocent Onyewuenyi, “Is There an African Philosophy?” (Existe uma Filosofia Africana);e Peter O. Bodunrin(1936-1997),  “The Question of African Philosophy” (A Questão da Filosofia Africana). Semelhantes formulações revelam bem as tendências para reflexões meta filosóficas de carácter descritivo ou normativo das produzidas nos países africanos de língua inglesa. Não encontram equivalentes nos países africanos de língua francesa ou de língua portuguesa, onde predomina a influência da chamada tradição continental ou especulativa europeia.
Mapeamento da filosofia africana

Bruce Janz é um professor canadiano, especializado em Filosofia Africana que reconhece a importância do seu mapeamento. Em seu entender, é um processo que serve para sustentar a resistência contra um preconceito de longa duração, quando se trata da vida intelectual em África. Tal preconceito aponta para a ideia segundo a qual o nosso continente é um deserto. Janz sublinha o facto de a definição da Filosofia Africana equivaler a uma demarcação territorial contra territórios hostis. As taxonomias de tendências e correntes, por um lado, e de escolas, por outro lado, propostas pelo filósofo queniano Odera Oruka (1944-1995) constituem uma prova dessa resistência. Os seus critérios das taxonomias baseiam-se na estrutura temática e metodológica que permite identificar escolas, tendências ou correntes. São seis correntes filosóficas: 1) Etnofilosofia; 2) Filosofia ideológica nacionalista; 3) Filosofia profissional; 4) Filosofia da sagacidade; 5) Filosofia Literária e Artística; 6) Hermenêutica.

A taxonomia das quatro escolas é uma outra proposta de Oruka: 1) Escola Etnográfica; 2) Escola Racionalista; 3)Escola Histórica; 4)Escola Hermenêutica.

Geopolítica anti-colonial

Admite-se, no entanto, a possibilidade de outras taxonomias. Para o tópico da nossa conversa, tratar-se-á da tematização geopolítica do anti-colonialismo no século XX, que pode ser fecundo do ponto de vista analítico. A partir de quatro critérios – o territorial, o histórico-político, o linguístico e o religioso –, procede-se à classificação de correntes filosóficas que podem dar lugar a uma distribuição sub-regional, estendendo-se pelos universos civilizacionais africanos. O critério territorial permite identificar seis sub-regiões continentais, englobando as diásporas da África Global. O critério histórico-político traz à colação afinidades das anti-colónias, isto é, territórios onde ocorreram resistências contra ameaças e que estiveram expostos à ocupação colonial.   O critério linguístico tem uma dupla relevância, na medida em que permite avaliar a função instrumental do uso das línguas oficiais e a complexidade do pluralismo linguístico africano, além de tornar possível a determinaçãodas fronteiras estaduais, as dinâmicas dos movimentos populacionais transfronteiriços das comunidades exiladas nos territórios vizinhos e o papel das diásporas durante a guerra de libertação nacional. O critério religioso inscreve o discurso e a luta anti-colonial na agenda do diálogo ecuménico das diferentes religiões professadas no continente. Além disso, o pluralismo inter-religioso e o pensamento teológico que lhe corresponde, constituem factores de mobilização para o desenvolvimento da guerra de libertação nacional, por força dos fundamentos éticos da guerra justa. Em conclusão, na geopolítica do anti-colonialismo africano do século XX, os diferentes actores não-estatais do que viriam a ser os Cinco PALOP protagonizaram uma acção colectiva anti-colonial ímpar, comparável apenas à guerra de libertação nacional desenvolvida pela Frente de Libertação Nacional na Argélia, o caso único de uma anti-colónia da França, em África. É aí que emerge a filosofia anti-colonial de Frantz Fanon (1925-1961), inaugurando uma teoria da violência revolucionária.

 Libertação nacional e guerra justa

A estrutura temática da Filosofia Anti-colonial dos PALOP, que é um tipo de filosofia política, caracteriza-se pelo seu pluralismo de meios e discursos. Comporta dispositivos que podiam permitir a resolução de problemas de ordem cultural, moral, política e jurídica. Não podendo, por essa razão, confinar-se exclusivamente à produção textual escrita, os textos orais, a fotografia e o cinema, constituem igualmente dispositivos de luta, em virtude de suportarem uma semiótica cultural da guerra de libertação nacional. Mas a partir da década de 60 do século XX, o recurso à violência passou a representar uma transformação do sentido monista da luta anti-colonial, assumindo a forma de uma guerra justa caracterizada pela sua pluralidade de dispositivos. A compreensão desta mutação requer  o domínio dos fundamentos culturais, morais, jurídicos e políticos da guerra justa. O que nos vai conduzir ao diálogo com Odera Oruka, no sentido de se proceder à revisão da sua taxonomia filosófica. A tipificação da referida acção colectiva traz cumulativamente três elementos novos: 1) a cultura como meio de mobilização política, apoio internacional e difusão da luta anti-colonial, destacando-se a literatura e o cinema; 2) a dimensão estratégica de condução da guerra de guerrilha em três teatros operacionais; 3) o exercício da soberania e do direito à autodeterminação nas zonas libertadas dos territórios das anti-colónias. Para o efeito, faz-se aqui apelo a três tipos de fundamentos filosóficos.O fundamento cultural para a afirmação da identidade dos povos contra a hegemonia colonial, apesar da descontinuidade dos territórios. O fundamento ético para a prossecução da guerra de libertação nacional, qualificada como guerra justa devido à sua legitimidade.O fundamento jusfilosófico que sustenta a personalidade jurídica dos Movimentos de Libertação Nacional, enquanto actores não-estatais, legítimos representantes dos povos, e a aplicação do direito internacional público e humanitário.

 
Conclusão

Portanto, verificaremos que à corrente filosófica da ideologia nacionalista, proposta por Odera Oruka, junta-se uma nova, a Filosofia da Guerra Justa Anti-colonial. Tem as suas fontes primárias nos textos programáticos e doutrinários dos Movimentos de Libertação Nacional, nos discursos, livros, antologias de documentos, diários, cartas, biografias e autobiografias dos líderes políticos e chefes militares, além de narrativas de presos políticos e textos literários do “canto armado” como os designou Mário Pinto de Andrade (1928-1990), que vemos na imagem ao lado de Nelson Mandela, em 1962, na cidade de Rabat. Por outro lado, com a categorização dessa corrente filosóficas  surge a Escola da Guerra de Libertação. Assim, quer a corrente da guerra justa, quer a escola que lhe corresponde são desdobramentos que compreendem  o pensamento, as ideias, as acções e experiências de todas as guerras africanas de libertação nacional, incluindo as levadas a cabo pela ZANU e ZAPU, no Zimbabwe e pela SWAPO, na Namíbia, até às décadas de 80 e 90 do século XX,culminando com a luta empreendida contra o apartheid na África do Sul, sob inspiração da Filosofia Anti-colonial dos PALOP, tal como anunciavam o moçambicano Aquino de Bragança (1924-1986) e o norte-americano Immanuel Wallerstein (1930-2019), em 1975.

Ph.D. em Estudos de Literatura, M.Phil. em Filosofia

Publicado originalmente em 05/02/2023  no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/a-filosofia-anti-colonial-nos-palop-iv/

Marcos Carvalho Lopes

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