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A filosofia anti-colonial nos PALOP – V

Luís Kandjimbo |* Escritor

A compreensão aprofundada da luta anti-colonial e subsequentes procedimentos de natureza filosófica, tais como a apologia da guerra justa, a definição do colonialismo e do inimigo, implica o conhecimento do contexto político e intelectual de que emanam as ideias que inspiraram a criação da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP).

Dos conceitos de guerra justa e de inimigo, expressões de uma actividade cognitiva, inscritas nos campos da Filosofia Moral e da Filosofia Política, trataremos na próxima semana.

Tópicos da conversa

Neste momento, importa ilustrar a dimensão narrativa das nossas reflexões com os factos relevantes que conformam os contextos políticos e intelectuais posteriores à Conferência Intergovernamental dos Países Afro-Asiáticos de Bandung (1955); à criação da Organização de Solidariedade dos Povos Afro-Asiáticos (1957); e às Conferências Pan-africanas de Accra(1958) e de Túnis (1960). Mas chamo a atenção para as conclusões do II Congresso de Escritores e Artistas Negros de Roma de 1959. É para ele que remetem os tópicos da nossa conversa. Na presente ilustração,uma fotografia de família do I Congresso de Escritores e Artistas Negros de 1956, temos a presença deJoaquim Pinto de Andrade, Manuel dos Santos Lima, Marcelino dos Santos e Mário Pinto de Andrade.

Contra-discursividade

Levantam-se problemas de ordem metodológica, quando se trata de saber se a Filosofia Política Anti-Colonial é estrutura da, efectivamente, pelo tipo de correntes filosóficas propostas pela classificação de OderaOruka (1944-1995).  Tais problemas são suscitados por aqueles que qualificam as actividades desenvolvidas pelos pensadores Africanos e líderes dos Movimentos de Libertação Nacional dos PALOP como práticas de senso comum. Por essa razão, esses oponentes negam a existência dessa e de outras correntesfilosóficas. Paradoxalmente, reconhecem que a filosofia pode ter as suas origens no senso comum. Neste sentido, o verdadeiro problema diz respeito aos fundamentos que se afiguram relevantes para qualificar acções, crenças e o pensamento sistemático como um discurso filosófico. Na verdade, mais do que os agentes, as práticas e os eventos configuradores da acção anti-colonial, devem, especialmente, ser tidos em conta os conceitos e os argumentos porfiados contra o sistema colonial e correspondente filosofia do colonialismo. Como vimos, do contexto da luta anti-colonial emana uma narrativa histórica que fornece provas irresistíveis para os argumentos adversariais. Isto quer dizer que há uma contra-discursividade refutante através da qual são questionadas as fontes das formulações legitimadoras do colonialismo e do racismo ocidental, nomeadamente, as obras dosingleses John Locke (1632-1704) e David Hume (1711-1776),dos alemães Immanuel Kant (1724-1804) e G. W. Friedrich Hegel (1770-1831), edo francês LucienLévy-Bruhl (1857-1939), além dos epígonos como Arthur de Gobineau (1816-1882), um dos mais ferozes teóricos do racismo, que tem seguidores em Portugal, entre os quais se destacam os especialistas do direito administrativo e das chamadas “políticas coloniais e ultramarinas”.

 
Fontes históricas do pensamento

Deixaram de ser escassas as fontes arquivísticas e documentais do pensamento sistemático elaborado nessa década e que suportam a existência da Filosofia Anti-Colonial. Além das colectâneas de Aquino de Bragança (1924-1986) e Immanuel Wallerstein (1930-2019), a quantidade de documentos e de informação tem vindo a aumentar com a disponibilidade pública de arquivos pessoais dos intelectuais, militantes e líderes dos Movimentos de Libertação Nacional. A título de exemplo, vale mencionar o acervo documental dos Angolanos, Mário Pinto de Andrade(1928-1990) e Lúcio Lara(1929-2016), abertos à consulta. A sua diversidade permite concluir que o valor da produção textual reflexiva da Filosofia Anti-Colonialrequer um bom conhecimento da teoria dos géneros literários e, particularmente, do ensaio devido à sua vocação argumentativa.


Do anti-colonial ao pós-independência

Subscrevo o ponto de vista do nigeriano Olufemi Taiwo, quando afirma que as filosofias políticas dos líderes africanos no período pós-independência não têm merecido estudos académicos sérios. Por maioria de razão, diremos o mesmo acerca da Filosofia Anti-colonial dos líderes e pensadores dos PALOP. Quando se estuda a história das ideias e a difusão do pan-africanismo, durante a primeira metade do século XX, compreende-se que as elites anti-coloniais revelam uma extraordinária fecundidade ideológica e doutrinária. Trata-se de um movimento que tem as suas âncoras igualmente nos territórios das colónias portuguesas. É expressiva a presença de Angolanos, Cabo-verdianos, Guineenses, Moçambicanos e Santomenses nos círculos intelectuais, académicos e políticos Africanos que emergem nos Estados Unidos da América e em capitais europeias como Bruxelas, Londres, Paris e Roma. De igual modo, nas capitais dos novos Estados africanos independentes cujos presidentes se revelam como protagonistas de um novo pensamento filosófico e político, designadamente, Accra, Cairo, Conackry, Rabat e Túnis.

Por conseguinte, há razões para considerar que a tradição filosófica anti-colonial no continente africano e nas diásporas, transmitida ao longo de séculos, tenha atingido o seu apogeu na década de 50 do século XX, com a realização de dois eventos que assinalam a consolidação do pan-africanismo e uma viragem na Filosofia Anti-Colonial, em geral.


Contexto político da década

Com efeito, os contextos políticos e intelectuais caracterizavam-se pelos impactos positivos das conferências pan-africanas de Accra, 1958, e de Túnis, 1960. De igual modo, o I Congresso de Escritores e Artistas Negros, em 1956,e o II Congresso de Escritores e Artistas Negros, em 1959.Portanto, os membros das elites intelectuais e artísticas do continente e das diásporas reuniram-se, sucessivamente, nas cidades de Paris, Accra e de Roma. A presença de intelectuais, escritores e artistas dos PALOP era notória. Os documentos escritos e iconográficos atestam a participação activa de Aquino de Bragança (Índia,1924-1986), do padre Joaquim Pinto de Andrade (Angola,1926-2008), Lúcio Lara (Angola,1929-2016), Manuel dos Santos Lima(Angola, 1935), Marcelino dos Santos (Moçambique, 1929-2020), Mário Pinto de Andrade(Angola, 1928-1990), Viriato da Cruz (1928-1973), especialmente no congresso de Roma.

A referida viragem verifica-se ao avaliarmos a qualidade do discurso e das actividades de carácter cultural, político, filosófico e literário. Há uma longa experiência acumulada por diferentes gerações de intelectuais, escritores e artistas que, impregnando os seus comportamentos, transportavam a partir dos seus países de origem. Na sua génese estão igualmente as intensas lutas clandestinas empreendidas no centro do “império colonial”. O cruzamento das experiências e das diferentes gerações de intelectuais e escritores representadas por aqueles que tomam parte nos congressos de Paris e de Roma faz prova disso, quando se começam a formar organizações políticas demonstrativas de elevado nível de consciência colectiva. De resto, as conclusões e recomendações das sessões de debates, bem como as comunicações apresentadas no decurso dos dois congressos traçam o rumo das tendências e acontecimentos que já tinham ocorrido e os seguintes. Existiam apenas oitos países independentes em África: Egipto, Etiópia, Libéria, Líbia, Marrocos, Sudão, Tunísia e o Ghana que, em 1957, tinha alcançado a independência. O Presidente ganense, KwameNkrumah(1909-1972), foi um filósofo e um dos mais activos líderes políticos pan-africanistas. Nesse contexto,SekouTouré (1922-1984) viria a ser outro novo líder do nono Estado independente de África, em Setembro de 1958.

 
Congresso de Roma e suas resoluções

A Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesasfoi constituída após a dissolução do Movimento Anti-Colonialista (MAC). Em sua substituição surgiu a Frente Revolucionária Africana para a Independência das Colónias Portuguesas (FRAIN),sob inspiração das resoluções das Conferências Pan-africanas de Accra, 1958 e de Túnis, 1960.O II Congresso de Escritores e Artistas Negros, em 1959, representou um outro tipo de influência. Sob o signo da produção de uma “política da cultura”, as comunicações e debates proporcionaram oportunidades para a aprovação de resoluções temáticas que enumero em seguida: 1) independência e unidade; 2) literatura; 3) ciências políticas; 4) linguística; 5) história; 6) filosofia; 7) sociologia; 8) teologia; 9) técnicas e medicina; 10) artes. Além destas resoluções foram aprovadas duas moções, a dos marxistas africanos e outra sobre as “guerras coloniais”.

No que diz respeito à filosofia, interessa aqui referir o teor da resolução da subcomissão de filosofia doII Congresso de Escritores e Artistas Negros. O que aí se defende viria a ser resumido numa formulação lapidar do cientista político queniano, Ali Mazrui (1933-2014), quando se debruçava sobre a problemática da ideologia e da cultura política africana, afirmando o seguinte: “O estudo do pensamento político africano tem sido excessivamente prisioneiro de categorias do pensamento europeu e de ideologias europeias”.

Partindo do pressuposto segundo o qual a reflexão filosófica ocupa um lugar importante no processo de elaboração da cultura, a resolução da subcomissão de filosofiacontém declarações úteis à definição do que devia ser o perfil do filósofo africano e suas tarefas: 1) o filosofar do filósofo africano não pode confinar a realidade africana aos esquemas conceptuais ocidentais; 2) o filósofo africano deve sustentar a sua pesquisa na certeza fundamental de que a abordagem filosófica ocidental não é a única possível; 3) o filósofo africano deve,  perante os filósofos totalitários e egocêntricos do Ocidente, despojar-se dos possíveis complexos de inferioridade que o impedem de partir do seu ser africano para avaliar os contributos estrangeiros; 4) o filósofo africano deve ultrapassar posições de fechamento sobre si mesmo e suas tradições de modo a desenvolver os verdadeiros valores universais, no quadro de um verdadeiro diálogo com todas as filosofias.

As moções dos marxistas africanos e a dedicada às “guerras coloniais” do II Congresso de Escritores e Artistas Negros traduzem de alguma forma o perfil dos intelectuais e escritores dos PALOP que iniciavam o seu engajamento directo na luta pelas independências. Não é casual que o discurso de alguns intelectuais e líderes políticos representativos da Filosofia Anti-Colonial dos PALOP seja conotado com as correntes ideológicas marxistas, à luz das reservas recomendadas pela moção, na medida em que os marxistas Africanos são convocados a desenvolver as suas doutrinas recorrendo à história, às reais aspirações e situação económica dos seus povos, fundadas na sua cultura. Por outro lado, a referência expressa feita a Angola, em 1959, na moção sobre as “guerras coloniais”, ao lado da Argélia, Quénia, Niassalândia, Congo, Rodésiae União Sul-Africana, consagra o reconhecimento qualitativo dos discursos dedenúncia contra o colonialismo português e as ideias defendidas pelos intelectuais e escritores que integravam o MAC e a CONCP. Recomendava-se uma solução rápida e pacífica desses conflitos violentos que vinham tendo lugar no continente africano.

Portanto, numa perspectiva histórica, pode dizer-se que no II Congresso de Escritores e Artistas Negros, Viriato da Cruz (1928-1973), um dos oradores do II Congresso, evidenciou-se com a sua reflexão sobre a responsabilidade dos intelectuais. Tal como já demonstrava nas suas finas análises filosóficas, plasmadas nas cartas que endereçava aos seus correligionários, deu um contributo relevante para o que pode ser considerado como tradição de filosofia anti-colonial, ao lado de Frantz Fanon (1925-1961) que apresentou uma comunicação sobre o fundamento recíproco da cultura nacional e das lutas de libertação.Assim, concluo a presente proposta. A próxima conversa será dedicada à tematização da apologia da guerra justa e definição do inimigo, glosando sempre que for necessário os respectivos textos demonstrativos.

*Ph.D. em Estudos de Literatura, M.Phil. em Filosofia

Publicado originalmente em 12/02/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/a-filosofia-anti-colonial-nos-palop-v/

Marcos Carvalho Lopes

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