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A filosofia anti-colonial nos PALOP – VI

Luís Kandjimbo |* Escritor

No dealbar da década de 60, a actividade tribunícia dos intelectuais, activistas políticos e escritores das colónias portuguesas multiplicava-se.

A luta política contra o colonialismo português tornava-se irreversível pela notoriedade pública das acções de resistência que ocorriam no interior e pela crescente sofisticação das suas formas no exterior. No plano interno, tais são os casos de reacções violentas contra as manifestações reivindicativas como os massacres de Batepá, em São Tomé (1953), de Pidjiguiti na Guiné (1959), bem como as prisões massivas, em Angola (1959)e o massacre de Mueda, em Moçambique (1960). No plano externo, a acção diplomática conquistava simpatias pela causa.

Contexto da década de 60

Como vimos, a moção do II Congresso de Escritores e Artistas Negros,dedicada às “guerras coloniais”, recomendava a solução rápida e pacífica dos conflitos violentos que vinham tendo lugar no continente africano. Esse é o princípio em que assentam as linhas programáticas do Movimento Anti-Colonialista (MAC) constituído em 1957, em Lisboa. Na reunião constitutiva estiveram presentes Agostinho Neto (Angola, 1922-1979), Amílcar Cabral (Guiné/Cabo Verde, 1924-1973), Eduardo Macedo dos Santos (Angola, 1925-2001), Humberto Machado (Angola, 1917-2002), e Lúcio Lara (Angola, 1929-2016), Marcelino dos Santos (Moçambique, 1929-2020) e Noémia de Sousa (Moçambique,1926-2002).

Ora, em Dezembro de 1960, a Assembleia Geral da ONU tinha aprovado por unanimidade (com a abstenção dos Estados Unidos, Reino Unido e outras potências coloniais) a Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais (Resolução 1514/ XV). Por isso, o início da segunda  metade do século XX foi auspiciosa para a caracterização da Filosofia Anti-Colonial nos PALOP. Com a referida resolução da ONU, o Direito Internacional Público tematizava a autodeterminação e a independência  dos povos colonizados.Por outro lado, a repressão das autoridades coloniais revelava cada vez mais elevados níveis de uma paranóica vigilância política. Passara a ser ilegal, à luz das convenções internacionais. Entretanto, consolidava-se um pensamento teórico robusto que alimentava estratégias políticas de carácter unitário, designadamente, a Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas (FRAIN), constituída em Janeiro de 1960, na cidade de Túnis.  Trata-se de um pensamento que circulava através de redescruzadas existentes. A sua expressão mais visível é o núcleo de patriotas que se encontrava no exílio, formado por intelectuais que em diferentes tribunas políticas internacionais difundia os valores em que se fundava a luta pela autodeterminação. A perspectiva frentista alargava a sua base de apoio, ao incluir representantes de outras colónias portuguesas, nomeadamente, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Goa (Índia). Assim, surgiu a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), em Abril de 1961.

Aparelhos coloniais

Na sua progressiva evolução e transformação, o anti-colonialismo africano que viria a ser o mais longo, com a CONCP transitou do isolamento à cena continental. Para todos os efeitos, foi a partir daí que se consolidou o discurso político do chamado nacionalismo moderno, tendo assumido inteiramente a forma de contra-discurso perante sete poderosas instituições  do sistema colonial português: 1) a administração colonial; 2) a ideologia colonial; 3) a política colonial; 4) o direito colonial; 5) a literatura colonial; 6) a polícia de vigilância e repressão política; 7) o dispositivo militar.

Entre os sete elementos constitutivos do aparelho colonial, interessa destacar o ordenamento jurídico colonial. A título de ilustração, o Estatuto do Indigenato, centrado na injustiça e negação da dignidade humana,foi um dos mais aviltantes instrumentos do colonialismo português que, desde o fim do republicanismo e a instauração do Estado Novo em Portugal, vigorou em Angola, Guiné e Moçambique, até 1961, após o início da guerra de libertação nacional no primeiro dos três territórios. Os documentosque veiculam a ideologia, o pensamento programático e doutrinário que está na génese da Filosofia Anti-Colonial, permitem concluir que a justificação da luta pela autodeterminação e pela independência, suportada por resistências, revoltas e rebeliões, fundava-se na eliminação da discriminação e vilipêndio da dignidade dos povos das colónias portuguesas. A opressão discriminatória é múltipla, sendo a privação de liberdade e as condenações por razões de ordem política uma das suas manifestações.

Solução pacífica

Ao intervir na II Conferência de Solidariedade dos Povos Afro-asiáticos, realizada em Conackry, de 11 a 16 de Abril de 1960, Viriato da Cruz (Angola, 1928-1973) considerava que “a natureza do colonialismo português é de tal ordem que não pode admitir apenas a via pacífica que gostaríamos de seguir para obter a nossa independência”. E acrescentava: “A resposta directa do nosso povo à dominação colonial poderá então transformar-se de esporádica em sistemática. Seria a guerra; uma guerra imposta pela bárbara tirania de Portugal”. Por isso, instava a que Portugal fosse declarado inimigo de todo o “Mundo Afro-asiático”.Reivindicando a apropriação dos princípios da tradição ocidental da guerra justa, Viriato da Cruz reconhecia a sua utilidade. De resto, isso é comprovado pela teleologia das iniciativas de unidade dos vários movimentos de libertação nacional.

Portanto, há três ideias fundamentais, recorrentes nos discursos dos  intelectuais e escritores que desempenham funções de liderança nas organizações políticas dos PALOP. Em primeiro lugar, a enunciação da proposta de solução pacífica da questão colonial. Em segundo lugar, a definição do inimigo, isto é, o Estado Novo português, a administração colonial e seus responsáveis políticos. Em terceiro lugar, o desencadeamento da guerra, como único recurso, devendo ser caracterizada como guerra justa.

A guerra opõe o regime político existente em Portugal aos povos africanos das colónias e ao próprio povo português. Entre as forças de oposição à ditadura salazarista existia, por exemplo, a Frente de Libertação Portuguesa que, tal como a CONCP, tinha os seus escritórios em Argel. Portanto, o inimigo era comum.

O inimigo e suas posições

O inimigo é o sistema colonial e o seu regime político. Mas não basta descrevê-lo. Importa analisar a sua natureza, os seus fundamentos, isto é, a filosofia do colonialismo português e as teorias dos pensadores que a sustentam. Facilmente podem ser identificados, se tivermos em conta as duas dimensões da guerra justa, a realidade moral e a realidade estratégica. Do ponto de vista estratégico, o general Kaúlza de Arriaga (1915-2004), um dos mais importantes estrategistas portugueses do Estado Novo, desenvolveu um pensamento em torno destas duas dimensões. Por essa razão,contribuiu para a clarificação da condição do regime político português, enquanto inimigo dos povos Africanos, corroborando a legitimidade da guerra de libertação nacional, enquanto guerra justa. Ele defendia uma “política ultramarina e solução portuguesa”, através da formulação daquilo a que chamou “teses ultramarinas portuguesas modernas”.A              “solução portuguesa” de Kaúlza de Arriaga, inspirado por um inevitável realismo com base no qual se definia o destino de Portugal, tomava de empréstimo os fundamentos teóricos formulados pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987) com a sua teoria do  lusotropicalismo.

Guerra, único recurso

Essa qualificação da guerra exige o manejo de dispositivos conceptuais da Filosofia da Guerra, campo disciplinar que suscita abordagens interdisciplinares, cruzando a Filosofia Política, a Filosofia Moral e a Filosofia da História. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, os conceitos mais correntes de guerra provinham da História Militar, do Direito Internacional Público e Humanitário e da Teoria das Relações Internacionais. Assim, a definição da guerra pode obedecer a três requisitos: a) existência de uma situação de conflito político; b) oposição entre unidades políticas, grupos políticos independentes e actores não-estatais; c) solução do conflito  político associada à violência organizada. Recorrendo à classificação do filósofo italiano, Norberto Bobbio (1909-2004), as guerras podem ser analisadas em quatro tipos: guerra externa entre Estados soberanos;guerra civil dentro das fronteiras territoriais do Estado soberano; guerra colonial ou imperialista; guerra de libertação nacional.

O quarto tipo de guerra, a guerra de libertação nacional, é aquele que do ponto de vista da temporalidade histórica, corresponde ao que se enuncia nas deliberações das organizações políticas da CONCP, naquele contexto. Verifica-se que nos referidos documentos opera-se com os pressupostos filosóficos da guerra justa, a guerra como mal necessário por oposição à guerra injusta.


Justa causa 
e legítima defesa

A guerra movida pelos actores não-estatais, neste caso os movimentos de libertação nacional,visava a autodeterminação dos povos e comunidades políticas das colónias portuguesas, de tal modo que o seu desencadeamento, na década de 60 do século XX,acontecia de acordo com as teorias da guerra justa, compreendendo a legítima defesa e a justa causa para o início da guerra, “jus ad bellum”, pelas seguintes razões: 1)o facto de os movimentos de libertação nacional e os seus dirigentes políticos serem detentores de autoridade legítima;  2) a justificação moral da guerra permite invocar justa causa;  3) em virtude de a guerra ser oúltimo e único recurso;  4) a guerra tem  subjacente uma intencionalidade,moralmente justificável; 5) a proporcionalidade dos fins, devendo a alternativa da guerra superar os custos dela resultantes; 6) a razoabilidade de sucesso como critério que permita evitar a violência gratuita, tendo em vista a paz.Em 1965, a Organização das Nações Unidas reconhecia a legitimidade da luta armada dos povos das colónias portuguesas.

Quando o filósofo norte-americano, Michael Walzer, se propôs reflectir sobre a argumentação moral das guerras justas e injustas com exemplos históricos, explorou o conceito de autodeterminação e de liberdade política no âmbito da teoria da agressão a uma ou várias comunidades políticas representadas por actores não-estatais. Mas os seus exemplos históricos não cobrem experiências comuns à guerra de libertação nacional levada a cabo pelos referidos actores não-estatais africanos.

Acção diplomática anti-colonial

Em Junho de 1970, por ocasião da Conferência de Solidariedade com os Povos das Colónias Portuguesas, realizada em Roma, os três movimentos de libertação nacional que integravam a CONCP, designadamente, MPLA (Angola), FRELIMO (Moçambique) e PAIGC (Guiné e Cabo Verde), representados ao mais alto nível por Agostinho Neto, Marcelino dos Santos e Amílcar Cabral, respectivamente, foram recebidos em audiência  no  Vaticano pelo Papa Paulo VI (1897-1978), que vemos na imagem.Era a época em que se sentiam as repercussões da carta encíclica “Populorum Progressio”, consagrada ao tema do desenvolvimento dos povos, promulgada em 1967.De acordo com as ideias sobre colonização, colonialismo e direitos dos povos como artífices do seu destino, plasmadas na encíclica, ele recomendou, aos três líderes políticos, a observância da tradição teológica da guerra justa, isto é, aprossecução dos fins da guerra através de meios pacíficos.

Portanto, tal como se esperava, dessa acção diplomática anti-colonial resultou uma crise nas relações entre Portugal e o Vaticano.Estava-se em presença de um reiterado reconhecimento da legitimidade da guerra justa dos povos das colónias portuguesas e, ao mesmo tempo, verificava-se uma expressa qualificação do Estado português como inimigo da paz. Assim, a Igreja Católica fazia prova do respeito pela melhor tradição doutrinária clássicade que Santo Agostinho (354-430) é um dos mais distintos representantes. É ele que defendia o princípio segundo o qual o único motivo legítimo para a guerra é a demanda por justiça retributiva, devendo o inimigo merecer sempre tratamento humano.

Ph.D. em Estudos de Literatura, M.Phil. em Filosofia

Marcos Carvalho Lopes

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