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A “Questão de Angola”: Da História ao problema jusfilosófico – I


Luís Kandjimbo |*


Ora, “a questão de Angola” referida em epígrafe constitui, do ponto de vista histórico, um dos mais importantes momentos genéticos da agência dos Africanos nas tribunas jurídicas e relações internacionais, quando se trata do Direito à Descolonização e da aplicação da Carta da ONU.

Há mais de meio século, o topónimo de Angola, enquanto enunciado representativo de uma população, uma identidade, uma civilização e um território, tornava-se símbolo de um caso do Direito Internacional. Em disposições e deliberações dos órgãos da Organização das Nações Unidas, era categorizado como “a questão de Angola”. Apesar da sua importância para a doutrina e jurisprudência internacional, em matérias respeitantes ao Direito Internacional da Autodeterminação e Direito Internacional Humanitário, no contexto afro-asiático, “a questão de Angola”tem sido negligenciada, parecendo ter caído no esquecimento. Trata-se de um caso que apresenta um forte potencial para suscitar debates em torno de problemas conceptuais e normativos no domínio da Filosofia do Direito Internacional, mas igualmente da Filosofia da História. Um dos mais controversos exemplos do cruzamento dessas áreas da filosofia com problemáticas da periodização, diz respeito a denominações disciplinares do Direito Internacional, tais como Direito Internacional clássico, Direito Internacional moderno, Direito Internacional contemporâneo e Direito Internacional geral.

Razões do silêncio

A hegemonia da matriz ocidental do “ius gentium” na sua versão moderna e do modelo vestefaliano, bem como as bolsas de mimetismos existentes no nosso continente, além dos preconceitos da glossobalcanização, podem aqui ser invocadas como razões do silêncio e da negligência que pesam sobre “a questão de Angola”. Numa outra perspectiva, como bem diagnosticou Allen Buchanan, o problema emerge quando se procura avaliar a dedicação dos filósofos políticos contemporâneos às Relações Internacionais ou dos jusfilósofos contemporâneos ao Direito Internacional, sem esquecer o silêncio predominante no capítulo da Filosofia da História.

No dizer do jusfilósofo norte-americano Allen Buchanan, as principais figuras contemporâneas no domínio da Filosofia do Direito ignoraram pura e simplesmente a existência de um sistema jurídico internacional. Em África, regista-se uma tendencial autonomização de alguns domínios específicos. É o caso da Teoria das Relações Internacionais Africanas, Sociologia das Relações Internacionais Africanas ou História das Relações Internacionais Africanas. Apesar disso, a matriz ocidental do “ius gentium” e os seus mimetismos ainda são visíveis. A preferência que, em alguns meios intelectuais, se cultiva por doutrinas do tipo “pronto a vestir” de origem ocidental é uma das suas manifestações.

Agentes do conhecimento
Estou de acordo com o cientista político ganense-canadiano Thomas Kwasi Tieku, quando afirma que a inscrição de África como objecto de estudo e dos Africanos como potenciais agentes do conhecimento de Relações Internacionais Africanas consiste em explorar as interpretações e articulações africanas de conceitos usados, bem como de conceitos que podem não ser encontrados nos discursos ocidentais. Assim, é necessário estudar o processo de adaptação das teorias de Relações Internacionais, nos casos em que tal acontece com sucesso. Por outro lado, deve ser reconhecido o facto de as relações internacionais africanas serem distintas da política internacional das chamadas grandes potências. O continente africano e as suas instituições de ensino superior têm vindo a ser, cada vez mais, lugares a partir dos quais se produz conhecimento. Deixaram de ser um mero lugar de depósito do que se produz em outras partes do mundo.

Tematização jusfilosófica
Ora, “a questão de Angola”referida em epígrafe constitui, do ponto de vista histórico, um dos mais importantes momentos genéticos da agência dos Africanos nas tribunas jurídicas de relações internacionais. A tematização jusfilosófica do lugar que “a questão de Angola” ocupou na agenda da ONU, no princípio da década de 60 do século XX, pressupõe uma consciência acerca da erosão que a matriz “universal” do Direito Internacional Geral começava a sofrer, em pleno contexto do anticolonialismo afro-asiático. Por outro lado, a aplicação das normas convencionais e do costume internacional ao caso de Angola, naquele contexto, deixou zonas cinzentas que hoje, a uma distância de meio século, ainda pairam sobre o aparato conceptual nuclear. Quando se lê as partes preambulares e dispositivas das resoluções da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança da ONU, durante o ano de 1961, percebe-se o que lhes está subjacente. Há uma certa apologia da coexistência entre a moral e o direito. É o que acontece quando se invoca o conteúdo de normas do direito internacional e, ao mesmo tempo, são feitas remissões à normatividade moral. Deste modo, admitia-se também a possibilidade de coexistência entre posições jusnaturalistas e juspositivistas. Num texto publicado postumamente, o filósofo norte-americano Ronald Dworkin (1931-2013) considerava que discutir questões sobre o direito internacional significava levantar questões morais. Isto quer dizer que os fundamentos subjacentes ao direito internacional são de ordem moral. Este problema é frequentemente debatido na Filosofia do Direito. No caso em análise, consiste em fornecer respostas acerca dos fundamentos morais do direito positivo, isto é, as resoluções da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança. O problema não tem mobilizado muitas atenções na área da Filosofia Africana Contemporânea do Direito Internacional. Entre as honrosas excepções figura o nome e a obra do jusfilósofo nigeriano Taslim Olawale Elias (1914-1991), um dos juristas Africanos da primeira geração a aflorar a questão da euro centricidade do Direito Internacional, tal como ficou plasmado no seu livro “Africa and Development of International Law”, 1974,[África e o Desenvolvimento do Direito Internacional].

1961 – Angola na ONU

No primeiro trimestre de 1961, desencadearam-se em Angola sucessivos acontecimentos políticos que abalaram o poder colonial: a) Revolta da Baixa de Kassanji, 4 de Janeiro; b) Ataques às instituições policiais e prisionais em Luanda, 4 de Fevereiro; c) Acções de violência revolucionária contra os fazendeiros portugueses na região norte, 15 de Março. Sobre esses acontecimentos, têm vindo a ser produzidos discursos historiográficos que reduzem o seu alcance, sendo qualificados como um conjunto de acções descoordenadas, destituídas de qualquer sentido estratégico. No plano conceptual, o sentido da definição de autodeterminação e de povo permitirá clarificar a natureza teleológica da acção anticolonial que os três acontecimentos traduzem, analisados em articulação com as suas repercussões internacionais.

Em 20 de Abril desse ano, a Assembleia Geral da ONU tomou medidas sobre a “situação em Angola”, através da Resolução 1603 (XV). No texto fazem-se referências aos “recentes distúrbios e conflitos em Angola que resultaram na perda de vidas de habitantes, cuja continuação é susceptível de pôr em perigo a manutenção da paz e segurança internacionais”. Alude-se à vaga de reivindicações para a conquista da auto-determinação e independência, sublinhando o facto de ser necessário “agir com rapidez, eficácia e tempo para melhorar as deficiências dos povos africanos de Angola […]”. Por conseguinte, instava-se o Governo de Portugal a realizar reformas em Angola, tendo em vista o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais e de acordo com a Carta das Nações Unidas e implementação da Resolução da Assembleia Geral 1514 (XV).

Subcomité e quadro normativo

Por força da referida Resolução 1514 (XV), de 14 de Dezembro de 1960, a Assembleia Geral da ONU decidiu criar um subcomité constituído por cinco membros que se encarregariam de examinar os depoimentos prestados sobre Angola, receber informações e documentos adicionais, realizar investigações que julgassem necessárias. O Subcomité tinha o mandato para exigir a observância e aplicação desse instrumento. A situação em Angola configurava um caso de “sujeição dos povos à subjugação, dominação e exploração estrangeiras, além de constituir uma negação dos direitos humanos fundamentais, e ser contrária à Carta das Nações Unidas”. Por isso, Portugal tinha a obrigação de tomar medidas imediatas para transferir incondicionalmente todos os poderes para o povo angolano, a fim de permitir o gozo de total independência e liberdade, de acordo com sua vontade e desejo livremente expressos, sem distinção de raça, credo ou cor.

Pode dizer-se que “a questão de Angola” contava com um quadro normativo específico. 1) Resolução1314 (XIII), de 12 de Dezembro de 1958, que aprova as “recomendações relativas ao respeito internacional pelo direito dos povos e nações à autodeterminação”; 2) Resolução 1514 (XV), de 14 de Dezembro de 1960,relativa à”Declaração sobre a concessão de independência aos países e povos colonizados”; 3) Resolução 1541 (XV), de 15 de Dezembro de 1960, com a qual são aprovados princípios que devem orientar os Estados membros a respeito da obrigação de fornecer informações sobre a observância do artigo 73º da Carta, além da imposição de uma outra obrigação internacional, a que estavam vinculadas as potências coloniais, relativamente aos territórios geograficamente separados e etnicamente ou culturalmente distintos dos países que os administravam; 4) Resolução da Assembleia Geral 1542 (XV), de 15 de Dezembro de 1960, que clarifica a situação de Angola cujo estatuto jurídico correspondia ao de qualquer outro “Território Não-Autónomo”, de acordo com o disposto no Capítulo XI da Carta das Nações Unidas; 5) Resolução da Assembleia Geral 1603 (XV) de 20 de Abril de 1961, reitera as orientações para o Subcomité, no sentido de proceder à apreciação de todos os depoimentos sobre a situação em Angola, prestados nas sessões da Assembleia Geral, a recolher documentos, efectuar inquéritos que se revelassem necessários e apresentar os respectivos relatórios; 6) Resolução do Conselho de Segurança, [S/4835], 163 (1961) de 9 de junho de 1961, através da qual se interpela o Subcomité para a Situação em Angola, no sentido de desenvolver acções urgentes, tendo em conta o cumprimento do seu mandato; 7) Resolução da Assembleia Geral 1654 (XVI) de Novembro de 1961, sobre o estado de implementação da “Declaração sobre a concessão de independência aos países e povos colonizados”, resultando daí a decisão de criar um Comité Especial para o efeito; 8) Resolução da Assembleia Geral, 1742 (XVI), de 30 de Janeiro de 1962, que reforça os poderes e o mandato do Subcomité para a Situação em Angola; 9) Resolução da Assembleia Geral 1803 (XVII), de 14 de dezembro de 1962, que aprova a “Declaração relativa à soberania permanente sobre os recursos naturais”, tendo em conta que “a soberania sobre os recursos naturais constitui um elemento fundamental do direito dos povos à autodeterminação”.

Conceitos, interpretação e aplicação

A interpretação das resoluções que constituem o quadro normativo da “questão de Angola” permite detectar o tipo de problemas conceptuais e normativos que podem ser analisados à luz da Filosofia do Direito Internacional.

Em primeiro lugar, os conceitos de povo e autodeterminação. Em segundo lugar, o ónus da descolonização que impende sobre Portugal. Em terceiro lugar, o estatuto jurídico de “Território Não-Autónomo”, atribuído a Angola. Em quarto lugar, o conceito de povo e o reconhecimento da identidade civilizacional e cultural distinta da de Portugal. Em quinto lugar, estatuto de sujeito do direito internacional e o direito à independência. Em sexto lugar, perspectiva de reconhecimento dos movimentos de libertação nacional.

As resoluções associam “a questão de Angola” à operacionalização dos seguintes conceitos: a) povo; b)direito dos povos; c) princípio de autodeterminação; d)direito à independência; e) território não-autónomo; f)identidade civilizacional do povo; g)movimentos de libertação nacional; h) sujeito do direito internacional; i) ónus da descolonização.

Portanto, a doutrina e jurisprudência resultantes da interpretação e aplicação desses conceitos constituíram-se como bases para o seu desenvolvimento. Os ramos do Direito Internacional Geral demonstram a importância da actividade hermenêutica empreendida especialmente pelos juristas do chamado “Terceiro Mundo”. Assim se compreende o processo de consagração de novos princípios e ramo sobretudo em matéria de conteúdo dos direitos dos povos: i) Direito à Descolonização; ii) Soberania Permanente sobre os Recursos Naturais; iii) Direitos Económicos, Sociais e Culturais; iv) Direito Internacional dos Direitos do Homem e dos Povos; v) Direito Económico Internacional; vi) Direito Internacional ao Desenvolvimento; vii) Direito Internacional do Ambiente.

Chegados aqui, verificamos que há perguntas por responder. Por isso, o tópico da próxima conversa continuará a ser “a questão de Angola”. Procurarei explorar os caminhos que dos conceitos inventariados e das normas aplicáveis nos conduzam às razões que podemos invocar para considerar “a questão de Angola” como um caso exemplar digno de uma abordagem jusfilosófica e a singularidade que apresentava relativamente ao modo como era tratado pelo Comité Especial, o Comité dos 24, também denominado “Comité de Descolonização”, criado ao abrigo da Resolução da Assembleia Geral 1654 (XVI) de Novembro de 1961, que avalia o estado de implementação da “Declaração sobre a concessão de independência aos países e povos colonizados”.Retomarei igualmente a reflexão sobre as denominações disciplinares do Direito Internacional, tais como Direito Internacional clássico, Direito Internacional moderno, Direito Internacional contemporâneo e Direito Internacional geral.


*Doutorado em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.

[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 25/06/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/a-questao-de-angola-da-historia-ao-problema-jusfilosofico-i/

Marcos Carvalho Lopes

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