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A “Questão de Angola” na ONU: Crise política ou diplomática?

Luís Kandjimbo |*

Ao ter passado a fazer parte da agenda dos órgãos e agências da ONU, a “Questão de Angola” tornou-se um problema jurídico internacional, adquirindo propriedades de uma crise que exigia a aplicação de normas suportadas por fundamentos do Direito Internacional. A “Questão de Angola” era efectivamente uma crise? De que tipo de crise se tratava? Era uma crise política ou diplomática? A procura de respostas para estas interrogações permite configurar o tópico da conversa.

Sociedade e sistema internacional

Para uma melhor qualificação da “Questão de Angola” – 1961, enquanto crise, interessa distinguir os conceitos de sociedade internacional e sistema internacional, tendo em conta as definições com que se operam nas áreas das Relações Internacionais e Filosofia das Relações Internacionais. Por sociedade internacional entende-se um grupo de Estados ou comunidades políticas independentes. Apesar de não formarem um sistema, o grupo de Estados e comunidades políticas criam instituições comuns para a condução de suas relações, e reconhecem seu interesse comum em manter os acordos celebrados. Abandonado que vem sendo o eurocentrismo, reconhece-se actualmente que as regras e instituições da sociedade internacional contemporânea contaram com a vontade da maior parte dos povos do mundo.

Por sua vez, o sistema internacional é constituído por unidades políticas interdependentes que não se subordinam a nenhum outro sistema considerado superior. O sistema internacional é integrado por grupos de unidades políticas que se caracterizam pela sua natureza e interdependência. Esses grupos de unidades políticas funcionam como subsistemas de base territorial, tais como as organizações internacionais regionais e sub-regionais africanas. É o caso da União Africana, CEDEAO, CEEAC e SADC.

Para todos os efeitos, importa afastar o persistente espectro do eurocentrismo. Do ponto de vista histórico, o sistema internacional global contemporâneo não tem as suas origens na Europa. As narrativas históricas de África fornecem provas abundantes, a esse respeito. Por essa razão, o modelo explicativo pluricêntrico e transcivilizacional é o mais adequado para tematizar o processo de formação do sistema internacional global contemporâneo.

Ideia de crise

Antes de a definir, ocorre-me esboçar uma ideia de crise que se deixa apreender na leitura de um poema do escritor irlandês William B. Yeats (1865-1939). Eis alguns versos extraídos do texto, “The Second Coming” [A Segunda Vinda]:

“Turningandturning in thewideninggyre / Thefalconcannothearthefalconer; / Thingsfallapart; the centre cannothold; / Mereanarchyisloosedupontheworld, / Theblood-dimmedtideisloosed, andeverywhere / Theceremonyofinnocenceisdrowned; / Thebestlackallconviction, whiletheworst / Are fullofpassionateintensity[…].”

[Girando e girando no giro crescente / O falcão já não ouve o falcoeiro / Tudo em colapso, o centro não aguenta /Uma mera anarquia assombra o mundo inteiro, / A maré turva de sangue anda solta, em todos os lugares / Abafa-se a cerimónia da inocência  / Os melhores carecendo de convicção, enquanto os piores / Estão cheios de intensidade apaixonada […].

William B. Yeats desvenda a crise, lá onde está “Tudo em colapso” e o “o centro não aguenta”.O poema, que foi escrito em 1919, na ressaca da I Guerra Mundial, é uma alusão à devastação da guerra que começa por abalar o centro dos poderes. Neste sentido, anuncia-se a ruína de todos os impérios. O primeiro sinal vem das capitais imperiais, em virtude de ser a partir delas que as guerras são comandadas. Imaginemos que o território do falcão indomável está situado em África. Da Europa, donde emanam os comandos, o falcoeiro revela a sua impotência, produzindo-se, consequentemente, a explosão do centro. O domínio e o controlo eram meras ilusões.

É possível identificar a analogia com as referências do poema de William B. Yeats, tal como acontece com o romance de Chinua Achebe (1930-2013), “Things FallApart”.O peso das ruínas excede a capacidade de Lisboa, o centro do Estado Novo, em Portugal. Mas a metaforização do centro que não aguenta remete para a crise do aparelho do Estado e dos dispositivos que o suportam, entre os quais a institucionalidade da Universidade, a disciplinaridade da Filosofia e do Direito.

 
Na “era dos direitos”

Na cadeia causal em que essa crise concreta se inscreve na agenda internacional está a humilhação de comunidades humanas históricas, uma população enraizada no território angolano. Os actos de humilhação foram sendo perpetrados pelos agentes do regime colonial, num arco temporal de longa duração. Perante a ausência de alternativas para o exercício do direito à autodeterminação são as ocorrências aviltantes para a condição humana que assumem a forma de uma humilhação internacional, ao abrigo do artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, segundo a qual “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos […]”. Assim, a humilhação internacional a que Portugal sujeita o povo angolano define-se como recusa de reconhecimento de dignidade humana, em flagrante violação dos instrumentos do Direito Internacional. No contexto temporal em que se tinha desencadeado a crise angolana já eram exigíveis acções de fundamentação e protecção dos direitos humanos. Para o jurisfilósofo italiano Norberto Bobbio (1909-2004), vivia-se a “era dos direitos”. Deste modo, por mais fundamentais que sejam, os direitos humanos são direitos históricos, isto é, “nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”.

Crisologia e ontologia política

Uma das mais interessantes análises do conceito de crise foi elaborada pelo filósofo francês, Edgar Morin (n.1921),num artigo publicado em 1976. Crisologia é a denominação que ele atribuiu ao estudo das crises. No dizer de E. Morin, o conceito de crise adquiriu um sentido abrangente no século XX. Essa generalização constituiu, ao mesmo tempo, um meio de esvaziamento. Do sentido original, “krisis”, em grego, significando decisão, passou a significar indecisão, perturbação ou incerteza. Ou ainda, diminuição e aumento.

A este propósito, Edgar Morin defendia a sua perspectiva teórica partindo do pressuposto de que o princípio de ordem sistémica é um daqueles que contribuem para a possibilidade de conhecer uma sociedade enquanto sistema capaz de gerar crises. Por sistema entende-se um todo organizado pela inter-relação de seus elementos constitutivos, devendo necessariamente fazer apelo à ideia de antagonismo. Se o colonialismo é um sistema, tal como dizia o escritor e filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), o anti-colonialismo é uma filosofia que articula um contra-discurso perante o sistema colonial que se apresenta como macros sistema. Nesse antagonismo configura-se o conflito de duas entidades políticas: 1) Os povos colonizados e suas civilizações, representadas pelos Movimentos de Libertação Nacional; 2) O Estado português e o seu aparelho político colonial, suportado por uma identidade cultural hegemónica.

Portanto, na “Questão de Angola”, o objecto principal da interpretação da crise como perda é o colapso do império português que começa na Baixa de Kassanji, em Malanje, com a revolta de 4 Janeiro de 1961.Esse colapso resulta da impotência do centro que não aguenta, em virtude de não possuir recursos cognitivos e culturais para a solução da crise.

 
Conceito de crise

Como se sabe, um dos traços distintivos do conceito de crise é a interacção dos elementos que integram o sistema em que ocorre. Para Edgar Morin, a enunciação do conceito de crise comporta, do ponto de vista descritivo, sete elementos: 1) A ideia de perturbação. Manifesta-se como um evento, acidente ou perturbação externa; 2) O aumento da desordem e da incerteza. Observável através da regressão dos determinismos, progressão de distúrbios, instabilidades e perigos; 3) Bloqueio/desbloqueio. Tomam a forma de decomposição, dispersão e retorno à desordem; 4)Retroacção positiva. Exprime-se por meio de distúrbios que agravam as flutuações, não implicando necessariamente correcção. A crisetorna-se antagónica; 5)Competições e antagonismos. Os antagonismos virtuais tendem a manifestar-se. Complementaridades passam a ser virtuais; 6)Surgimento e manifestações de personagens controversas. Afirmam-se as características antagónicas latentes. O carácter do conflito tende a tornar-sedominante; 7)Multiplicação dos duplos vínculos. As personagens que intervêm na crise correm riscos, além das ameaças e perigos de não ver satisfeitas as suas reivindicações.

 
Antagonismo

Analisado o conceito de crise no plano descritivo, através de uma daquelas unidades analíticas, por exemplo, compreende-se o alcance do antagonismo ontológico que opõe as duas comunidades. Por um lado, as comunidades dos povos colonizados e suas civilizações resistem, nos seus territórios. Por outro lado, o Estado colonial português com a imposição de uma civilização ocidental cuja hegemonia decorre de contingências históricas que as narrativas eurocêntricas ocultam. Nos nossos dias, isso manifesta-se como amnésia e repugnância relativamente ao pensamento e acção anti-colonial. É disso que trata Branwen Gruffydd Jones, uma especialista inglesa em Relações Internacionais, no capítulo em que aborda o “pensamento e a prática” de Agostinho Neto (1922-1979), Amílcar Cabral (1924-1973), Eduardo Mondlane (1920-1969) e Samora Machel (1933-1986), do livro “International Relationsand Non-Western Thought” [Relações Internacionais e Pensamento Não-Ocidental]. Privilegiando uma perspectiva “não-ocidental” Branwen Gruffydd Jones considera que no contexto da disciplina Relações Internacionais é devastador “o peso da amnésia eurocêntrica da academia e o silêncio intencional sobre a existência, originalidade e valor do discurso político de origem africana”. Ironiza, ao reflectir nos seguintes termos. Se o discurso político de origem africana é negligenciado por força da negação de reconhecimento epistémico, “raramente se lê que Maquiavel ou Hobbes não são mais dignos de estudo”.

Como vimos, a recusa do reconhecimento do direito à autodeterminação dos povos colonizados e do direito à descolonização, por parte dos arautos da suposta vocação imperial portuguesa, traduz a soberba de uma falsa superioridade civilizacional.

Da Baixa de Kassanji a Goa

O ano de 1961 expôs Portugal ao opróbrio, no contexto do sistema internacional, com a “Questão de Angola”, desde 4 de Janeiro, e a “Questão de Goa”, em 6 de Dezembro de 1961.Com a eleição do novo presidente dos Estados Unidos da América, John F. Kennedy (1917-1963), em Janeiro de 1961, a luta anti-colonial ganhou um outro impulso. Um dos líderes Angolanos que atraiu as atenções de John F. Kennedy, tendo em conta a luta contra o comunismo em África, foi Holden Roberto (1923-2007), Presidente da União das Populações de Angola (UPA).

As relações diplomáticas entre Portugal e os Estados Unidos da América foram abaladas, devido à orientação anti-colonial da nova administração. A leitura do diário do diplomata português que chegou a ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Franco Nogueira (1918-1993), fornece informação útil para quem pretende avaliar o estado da crise. No ambiente político de Portugal, ecoava o grito do presidente do Conselho, Oliveira Salazar (1889-1970): “Para Angola, rapidamente e em força”. No dia 14 de Abril, Franco Nogueira escrevia:

“Lisboa, 14 de Abril– Todo o país está vergastado por um temporal político que deve ser raro na sua história. Compreendem-se agora melhor os tumultos, os morticínios, o terrorismo que lavram no Norte de Angola desde há um mês. Há um propósito internacional claro, deliberado, de fazer ajoelhar o governo de Lisboa e de vergar, pelo medo e pelo desvario, o povo português. Se esta pressão se mantém, e apesar do gesto de Oliveira Salazar, por quanto tempo será suportável esta atmosfera? Firmeza, tenacidade, espírito de sacrifício e luta são coisas que desconhecemos entre nós”.

Na anotação diarística de 25 de Dezembro, lê-se o seguinte:

“Lisboa, 25 de Dezembro – E pronto: uma nova crise nacional por virtude do que aconteceu em Goa. Oh! O feitio português e as suas contradições! Uns dizem: deveria ter-se enviado muito mais tropas. Outros: parece impossível, sacrificaram-se tropas. Terceiros: se se tivesse negociado e conversado com Nehru, não teríamos perdido Goa. Ainda: para quê tentar manter Goa? Mais: o que nos perdeu foi a intransigência de Salazar. Ou: a culpa foi de Lisboa, que não forneceu armamento e munições bastantes, e a tempo; a culpa foi do comando local, em particular Vassalo e Silva, que não se bateu como devia; o comando local fez lindamente em não se bater, porque eram nenhumas as possibilidades de sucesso; e se se sabia que não era viável resistir com sucesso, por que motivo se quis resistir? […]”

Conclusão

Portanto, é mesmo de crise política e diplomática que se trata. O pessimismo íntimo de Franco Nogueira é sintomático. O tom que imprime ao texto do seu diário augurava penosas diligências e impossíveis diálogos de negociação. Como veremos, as principais batalhas diplomáticas sobre a “Questão de Angola” são travadas em várias frentes. Ao mais alto nível multilateral do sistema internacional encontram-se as frentes mais importantes, a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança da ONU.


Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 16/07/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/a-questao-de-angola-na-onu-crise-politica-ou-diplomatica/

Marcos Carvalho Lopes

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